domingo, 4 de novembro de 2018




TUTELA CAUTELAR


A par dos processos principais – urgentes e não urgentes –, encontramos os processos cautelares, cujo regime se encontra regulado nos artigos 112.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante CPTA.

Nos termos do artigo 112.º do CPTA, “quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adoção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo.”. Para compreender este preceito, é necessário explicitar e aprofundar a noção, finalidade e tipologia da tutela cautelar.

Em primeiro lugar, cabe afirmar que a tutela cautelar traduz o conjunto de medidas com caráter processual que visam assegurar a utilidade de um processo declarativo. Segundo o professor Mário Aroso de Almeida, “num processo cautelar, o autor num processo declarativo, já intentado ou ainda a intentar, pede ao tribunal a adoção de uma ou mais providências, destinadas a impedir que, durante a pendência do processo declarativo, se constitua uma situação irreversível ou se produzam danos de tal modo gravosos que ponham em perigo, no todo ou pelo menos em parte, a utilidade da decisão que ele pretende obter naquele processo”[1]. Por outras palavras, o processo principal é, por norma, mais moroso e pode dar lugar a situações mais complexas que põem a causa os interesses das partes. É imperativo que, face a esta caraterística inerente ao processo declarativo, se continue a assegurar a satisfação provisória dos interesses que resultam da relação material controvertida.

Em segundo lugar, é importante referir que o processo cautelar tem de assegurar o respeito pelos seguintes princípios: o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 2.º do CPTA; o princípio da prossecução do interesse público e, ainda, o princípio da separação de poderes.


Estamos, agora, em condições para apresentar e explicitar as caraterísticas do processo cautelar.
A tutela cautelar assenta em três caraterísticas:
1.      Instrumentalidade: A providência cautelar não é autónoma face à ação principal, uma vez que “depende, na função e não apenas na estrutura, de uma ação principal, cuja utilidade visa assegurar”[2]. Por outras palavras, a primeira encontra-se ao serviço da segunda, que tem como principal objetivo a decisão sobre o mérito da causa. É importante não confundir as duas. É possível que a parte consiga a título provisório aquilo que depois pretende adquirir a título definitivo[3], mas é crucial que o conteúdo da decisão cautelar não esgote o conteúdo da decisão definitiva[4]. Esta caraterística é evidenciada pelos artigos 112.º/1 e 113.º/1 do CPTA.
2.      Provisoriedade: A tutela cautelar pressupõe apenas uma decisão transitória, que caducará com a decisão definitiva, isto é, que perderá o seu efeito aquando da solução definitiva. Por outras palavras, não está em causa a resolução definitiva de um litígio. Segundo o professor Mário Aroso de Almeida, “a provisoriedade transparece da possibilidade de o tribunal revogar, alterar ou substituir, na pendência do processo principal, a sua decisão de adotar ou recusar a adoção de providências cautelares se tiver ocorrido uma alteração relevante das circunstâncias inicialmente existentes (artigo 124.º/1) (…)”.[5] Esta caraterística é evidenciada pelo artigo 124.º/1 do CPTA.
3.      Sumariedade: A tutela cautelar concretiza-se numa compreensão sumária dos factos apresentados, exigindo-se apenas um juízo de mera possibilidade sobre a existência do direito que se pretende salvaguardar. Segundo o professor José Vieira de Andrade, a providência cautelar manifesta-se numa “cognição sumária da situação de facto e de direito, própria de um processo provisório e urgente (…)”[6].

Chegados a este ponto importa referir que o artigo 112.º do CPTA constitui uma cláusula aberta em matéria cautelar, uma vez que atribui ao particular a possibilidade de utilização de todos os meios úteis e necessários para a satisfação dos interesses em causa. Na verdade, estamos perante um conjunto de regras que permite que todos os meios processuais possam ser criados, de acordo com o número 2 do artigo 112.º, que apresenta um elenco meramente exemplificativo. Segundo o professor Mário Aroso de Almeida, “a efetividade do amplo leque de pretensões substantivas que os particulares podem accionar, a título principal, perante os tribunais administrativos passa pela possibilidade de obter providências cautelares de conteúdo diversificado, em função das necessidades de cada caso”[7]. Ainda de acordo com o pensamento deste professor, interessa afirmar que o artigo 112.º do CPTA apenas “quer dar cumprimento”[8] ao artigo 268.º/4 da Constituição da República Portuguesa.

Em suma, com a Reforma do Contencioso Administrativo de 2015, transitámos de um mecanismo limitado e inacessível para um mecanismo plenamente vasto.

Quanto à tipologia das providências cautelares, podemos distinguir as providências cautelares conservatórias das providências cautelares antecipatórias. No caso das primeiras, o interessado pretende manter ou conservar o direito em perigo, “evitando que ele seja prejudicado por medidas que venham a ser adotadas”[9]; ao passo que nas segundas, o interessado pretende obter uma prestação, independentemente de envolver ou não a prática de atos administrativos. A suspensão da eficácia do ato administrativo, referenciada no artigo 112.º/2, alínea a) do CPTA, constitui o exemplo paradigmático das providências cautelares conservatórias.


Para terminar, cabe questionar quais são os requisitos, também designados de critérios gerais de atribuição, das providências cautelares. Estes critérios estão definidos nos números 1 e 2 do artigo 120.º do CPTA.

O primeiro requisito de que depende a atribuição de providências cautelares é o periculum in mora, que se traduz no “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal”, nos termos do artigo 120.º/1 do CPTA. Para afirmarmos que este requisito se encontra preenchido temos de efetuar um juízo de prognose, isto é, temos de verificar se existem razões para recear que a sentença venha a perder a sua utilidade por, no entretanto, se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela ou por se terem produzido danos irreparáveis. Neste caso, cabe ao requerente provar o fundado receio. Note-se que a tutela cautelar deve abster-se de critérios puramente abstratos, devendo primar-se apenas por critérios concretos em função da utilidade da sentença.
Importa ter presente o seguinte: nas palavras do professor José Alberto dos Reis, “um conhecimento completo e profundo sobre a existência do perigo pode exigir uma demora incompatível com a urgência da medida cautelar”[10].

O segundo requisito diz respeito à juridicidade material, também designada de fumus boni iuris. Segundo o professor Mário Aroso de Almeida, o “critério da aparência de bom direito” [11]pressupõe que “a atribuição das providências cautelares depende de um juízo, ainda que perfunctório, por parte do juiz, sobre o bem fundado da pretensão que o requerente faz valer no processo declarativo”[12]. Por outras palavras, este requisito traduz-se na exigência de que o direito que se pretende ver tutelado seja tratado como uma simples probabilidade, e não como um direito efetivamente existente. Cabe ao juiz avaliar o grau de probabilidade da procedência da ação principal, de forma a confirmar a existência de uma aparência de procedibilidade da decisão definitiva.

Por fim, referimo-nos ao critério da ponderação de interesses, segundo o qual, mesmo que se encontre preenchida a previsão do número 1 do artigo em análise, as providências podem ser recusadas “quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências”, nos termos do artigo 120.º/2 do CPTA. Neste preceito encontramos consagrado o princípio da proporcionalidade, que se encontra densificado pelos princípios da adequação e da necessidade – é também indispensável que as providências se limitem ao necessário “para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente” e que estas sejam adequadas ao caso concreto, isto é, à natureza dos diversos bens em conflito, de acordo com o artigo 120.º/3 do CPTA.

Em suma, podemos afirmar que a providência cautelar surge como meio de suprimir as consequências da demora dos processos declarativos. Importa salientar a natureza provisória da tutela cautelar e a indispensabilidade da decisão do mérito da causa, uma vez que o decretamento provisório se revela suficiente apenas durante a pendência da ação. Como futura reflexão, quais são as diferenças substanciais entre o decretamento provisório e o processo urgente de intimação? É o processo urgente de intimação o meio mais eficaz para salvaguardar os direitos dos particulares?



Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa (Lições), 13ª edição, Almedina, 2014
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2009






Micaela Costa Pinto
Número 28155
4º TA Subturma 8







[1] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017, página 423
[2] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa (Lições), 13ª edição, Almedina, 2014, página 307
[3] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017
[4] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa (Lições), 13ª edição, Almedina, 2014
[5] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017, página 424
[6] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa (Lições), 13ª edição, Almedina, 2014, página 307
[7] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017, página 430
[8]ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017, página 430
[9] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017, página 431
[10] REIS, Alberto dos, A figura do processo cautelar, Boletim do Ministério da Justiça n.º3, página 51
[11] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017, página 459
[12] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017, página 459

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