domingo, 4 de novembro de 2018

A legitimidade activa individual na acção de impugnação dos actos administrativos – os requisitos do 55:/1:/a) CPTA



RESUMO: No presente post, começarei por expor, numa lógica introdutória,  as partes de um processo declarativo e, de forma mais aprofundada,  o requisito processual da legitimidade activa. Irei focar a minha análise numa derrogação do critério geral enunciado no 9°CPTA, consubstanciado na impugnação dos actos administrativos [55:/1:/a) CPTA].


Fazendo uma breve introdução, num processo declarativo, partes são os sujeitos jurídicos que nele figuram como autor e como demandados. O autor, aquele que desencadeou o processo, formulou a sua pretensão perante o tribunal, enquanto que aquele, ou aqueles, contra quem a acção foi proposta, tendo sido citado(s) para contestar a acção do autor, denomina(m)-se de demandado(s) [1].
Na generalidade os casos, os processos administrativos são suscitados por particulares que se dirigem aos tribunais administrativos declarando a ofensa a um direito subjectivo ou de um interesse legalmente protegido por parte de uma entidade pública. “As leis do processo administrativo são generosas” [2] no reconhecimento desta legitimidade, enquanto pressuposto processual relativo às partes. Assim, cabe analisar e densificar este requisito  para a propositura de acções junto dos tribunais administrativos.  
No que respeita à legitimidade activa, diz o 9:/1 CPTA que, salvo disposição em contrário, a regra é a de que a legitimidade para discutir qualquer relação jurídica controvertida corresponde a quem alegue ser parte nessa relação jurídica. Contudo, a questão da legitimidade activa não se esgota no art. 9º CPTA, até porque o artigo estabelece um critério que é derrogado por um amplo conjunto de soluções que o próprio Código determina em função de outros tipos especiais de pretensões.
A razão de ser da existência deste conjunto de situações especiais em matéria de legitimidade activa resulta da clara circunstância de o pressuposto da legitimidade ser um pressuposto em que o seu “preenchimento se afere em função da concreta relação que se estabelece”, ou não, “entre essas pessoas e uma acção com um objecto determinado” [3]. O que está em causa é determinabilidade de uma pessoa, em concreto, se encontrar em “posição de se figurar como parte nessa concreta acção, em função do objecto com que surge configurada” [4], admitindo-se que a legitimidade activa, ao pressupor a titularidade de um direito potestativo de acção, possa ser alargada a sujeitos que, no fundo, não são detentores da relação controvertida. Isto acontece de forma a que seja possível assegurar uma efectiva tutela a todos aqueles que se dirijam ao contencioso administrativo  
Para o caso, em relação às situações especiais de legitimidade activa em que o art. 9º CPTA é derrogado, cabe analisar o 55º CPTA, mais especificamente o 55:/1:/a) CPTA. 
Em primeiro lugar, a função da impugnação de actos administrativos é, falando genericamente, a do controlo da sua invalidade, sendo “requisitos da validade dos actos administrativos aqueles que a lei põe como condição de cuja observância depende que eles devam ser aceites como instrumentos incontestáveis de modificação da ordem jurídica” [5]. As duas formas que a invalidade dos actos administrativos pode assumir são a nulidade e a anulabilidade, sendo que a nulidade é excepcional (os actos administrativos só são nulos quando a lei expressamente o determine).
Deste modo, as duas modalidades de impugnação, de acordo com a nova definição introduzida pela revisão de 2015, têm por objecto a declaração de nulidade e a anulação de actos administrativos, tal como referido no 50:/1 CPTA. Quanto à inexistência de um acto administrativo, “apesar de não constituir um acto de impugnação (uma vez que o objectivo da declaração de inexistência é o de negar a existência desse mesmo acto)” [6], é aplicável, por força do 50:/2, o pressuposto processual da legitimidade. Pela lógica, aplica-se o regime do 55:/1:/a) CPTA.
Mas o que é um acto jurídico impugnável? Como resulta do 51:/1 CPTA, “as pretensões impugnatórias, por regra, têm por objecto um acto administrativo, pelo que se afigura necessário ter presente o conceito material de acto administrativo” [7] referido no 148º CPA, que se refere às decisões materialmente administrativas de autoridade que visem a produção de efeitos externos numa situação individual e concreta, mesmo que apareçam em forma de regulamento ou estejam contidas em diplomas legislativos (“independentemente da forma” sob que são emitidas). 
Com a revisão do CPTA de 2015, o conceito de acto administrativo impugnável tende a coincidir com o conceito de acto administrativo em duas vertentes. Por um lado, o conceito do CPA “não exige do autor a qualidade de órgão administrativo, assim como o conceito de acto impugnável, ao incluir decisões tomadas por entidades privadas que exerçam poderes públicos e actos emitidos por entidades públicas não integradas na Administração Pública” [8] (148º CPA e 51:/1 CPTA). Por outro lado, ambos abrangem apenas as decisões administrativas que visem produzir efeitos externos, devendo entender-se por estes os actos administrativos que visem constituir efeitos nas relações jurídicas administrativas na esfera jurídica dos destinatários, independentemente da respectiva eficácia concreta. 
Diz o 55:/1:/a) CPTA que tem legitimidade para impugnar um acto administrativo quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. De harmonia com o critério adoptado e analisado do 9:/1 CPTA, o preenchimento do requisito, “entendido como condição para a obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa” [9], não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica que o autor invoca. O que importa é a alegação dessa mesma titularidade, o que obriga o tribunal a julgar improcedente a acção de impugnação assim que verifique que o interessado não é o titular da situação jurídica alegada.
A jurisprudência admite que o interesse descrito na previsão normativa do 55:/1:/a) CPTA possa ser um interesse meramente de facto, não necessitando que a norma jurídica violada proteja interesses subjectivos ou um bem jurídico próprio. Esta afirmação resulta também  da letra do artigo que abre possibilidade de haver outras causas de interesse para impugnar que não se baseiam na ofensa de um direito ou interesse protegidos por lei. Retomando a ideia, a legitimidade activa para a impugnação dos actos administrativos no âmbito da acção particular é reconhecida a quem seja titular de um “interesse directo e pessoal” na impugnação “nomeadamente, mas não necessariamente, quando alegue a lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos” [10], isto é, a quem retire imediatamente da anulação ou declaração de nulidade um benefício específico para a sua esfera jurídica, mesmo que não invoque a titularidade de uma posição jurídica subjectivamente lesada. Nesta esteira, diz José Carlos Vieira de Andrade que “a norma pretensamente violada pela Administração [que] não vise a protecção de um bem jurídico do autor mas tão só um interesse simples”[11] será um interesse diferenciado que terá de ser comprovado. Por oposição, Rui Machete defende que se exija sempre uma posição jurídica.  
A utilização da fórmula que parafraseei acima, quanto ao “interesse directo e pessoal”, em contraposição à lesão de direitos ou interesses legalmente previstos, é apresentada como uma das suas formas de concretização possível, apontando no sentido de que a legitimidade individual para impugnar actos administrativos não tem de ter por base a ofensa de um direito ou interesse, sendo suficiente a “circunstância de o acto estar a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor” [12], de forma que a anulação ou declaração de nulidade desse acto lhe traz, pessoalmente a ele, uma vantagem directa. Dito isto, a anulação ou declaração de nulidade de actos administrativos pode ser pedida a um tribunal administrativo por quem nisso tenha interesse, na óptica em que requer para si próprio uma vantagem (à partida) jurídica que resultará dessa anulação ou declaração de nulidade.
Deve, então, ser feita uma distinção entre os dois requisitos da fórmula que parafraseei acima: os requisitos do carácter “directo” e “pessoal”. 
Apenas o carácter “pessoal” do interesse diz respeito ao pressuposto processual da legitimidade. Trata-se de exigir que a “utilidade que o interessado pretende obter com a impugnação do acto seja uma utilidade pessoal, que o interessado reivindique para si próprio” [13], de forma a que seja considerado parte legítima, uma vez que alega ser o titular do interesse em nome do qual se move na acção. 
Por outro lado, o carácter “directo” do interesse está relacionado com saber se existe um interesse actual e efectivo em prosseguir com a impugnação do acto. Trata-se de determinar “se o interessado se encontra numa situação de efectiva lesão que justifique o recurso ao meio impugnatório” [14]. 
O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que o interesse directo deve ser apreciado em função das vantagens que o impugnante alega “poderem advir da anulação do acto, de forma a que esses mesmos efeitos se repercutam, de forma directa e imediata, na esfera jurídica do impugnante” [15]. Deste modo, tem legitimidade para impugnar quem espera obter da anulação do acto impugnado um certo benefício e se encontra em condições de o poder receber, sendo o interesse directo aquele que é de repercussão imediata na esfera do interessado. Face a esta densificação do requisito, podemos contrapor, a titulo pedagógico, o interesse directo ao interesse meramente longínquo/hipotético, que não dirija se a uma utilidade que possa advir directamente da anulação do acto impugnado. 
Conclui-se esta análise ao afirmar que o requisito do carácter directo não está relacionado com a legitimidade processual mas antes com a questão de saber se o alegado titular do interesse tem efectiva necessidade de tutela jurídica. Relaciona-se, então, este requisito com o interesse processual do impugnante [16]. Mais se acrescenta que o  problema da legitimidade é o do carácter “directo” do benefício, pois não é reconhecido quando se mostra meramente eventual – “este é um problema que fica situado na fronteira entre a legitimiade e a necessidade de protecção judicial” [17].

Maria Ferreira de Almeida
N°26137
4A, subturma 8


__________
[1] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina, pág. 58
[2] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina
[3] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina, pág. 211
[4] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina
[5] Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 2016, 15a edição, Almedina, pág. 46
[6] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina, pág. 259
[7] Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 2016, 15a edição, Almedina
[8] Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 2016, 15a edição, Almedina
[9] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina, pág. 219
[10] Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 2016, 15a edição, Almedina
[11] Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 2016, 15a edição, Almedina
[12] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina, pág. 220
[13] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina, pág. 221
[14] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina
[15] Acórdãos do Pleno do STA, de 27 de Fevereiro de 1996 e de 29 de Outubro de 1997; Acórdãos da Secção do STA de 7 de Novembro de 1996, de 22 de Junho de 1999e de 18 de Maio de 2000 in Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina
[16] Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 2016, 2a edição, Almedina
[17] Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 2016, 15a edição, Almedina

Sem comentários:

Enviar um comentário