A responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas
A.
Aspectos
Gerais
Como nos diz o professor
João Caupers, o conceito jurídico de responsabilidade
acarreta sempre a “ideia de sujeição às consequências de um comportamento”[1].
No Direito existem diversos tipos de responsabilidade, como a civil, a penal ou
a disciplinar. A responsabilidade civil, no seu âmbito público – quando o
Estado ou outras entidades públicas “assumam as consequências do seu
comportamento” – é a matéria que nos propomos a sucintamente abordar.
Como o próprio conceito de
responsabilidade assim o transmite, convirá frisar que a indemnização para que
possa ser correctamente entendida não corresponde a uma alternativa face ao
cumprimento de uma obrigação por parte de uma entidade pública. Nunca deve
existir um raciocínio administrativo de escolha entre o cumprimento a que a
entidade se encontra vinculada e a opção de indemnizar. Pelo contrário, esta [a
indemnização] é apenas a consequência de um prejuízo que tenha sido causado a um
particular, e pelo qual se irá “responsabilizar” a entidade pública em causa.[2]
B. Considerações históricas
A responsabilidade civil do
Estado nem sempre foi um dado adquirido, pelo contrário, a sua origem é até
relativamente recente, e deve-se apenas a uma evolução do pensamento político e
jurídico que o levou a abandonar a ideia de que “o Rei não erra, o Estado não
responde”[3],
também expressa pelo conhecido aforismo inglês “the king can do no wrong”.
Vigorava também um
entendimento acerca das relações dos funcionários do Estado com este, em que os
actos daqueles só lhe poderiam ser imputáveis enquanto permanecessem dentro dos
limites legais, uma vez que caso a sua actuação fosse ilegal, esta estaria já
fora do seu mandato, e consequentemente não poderia ser atribuída ao Estado,
mas tão somente ao próprio funcionário a título pessoal e enquanto particular.
Este entendimento, ainda que aparentemente lógico e silogístico, acabava por
ser contrário ao acesso à justiça.[4]
Gradualmente estas
concepções foram-se alterando, até se passar a admitir uma responsabilidade
civil cada vez mais ampla, primeiramente administrativa, mas depois também
englobando as outras funções do Estado, como a legislativa e a jurisdicional.
C. O contexto constitucional
A Constituição da República
Portuguesa de 1976, no seu art. 22º prevê a responsabilidade das entidades
públicas, podendo ler-se:
O Estado
e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária
com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou
omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício,
de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para
outrem.
Ainda que houvesse um certo
entendimento doutrinário e jurisprudencial a favor da possiblidade de se
considerar esta norma da Constituição como sendo directamente aplicável, já que
corresponde essencialmente a um direito fundamental, possuindo consequentemente
condições de aplicabilidade análogas às conferidas às normas respectivas a
direitos, liberdades e garantias, e não carecendo portanto de concretização em
lei ordinária para que pudesse ser invocada[5],
era simultaneamente consensual a necessidade de uma nova lei que viesse mais
detalhadamente precisar em que modos se deveria efectivar esta
responsabilidade, bem como tornar a abrangência da lei ordinária igual à
constitucional.
Esta necessidade de
concretização em lei ordinária do preceito constitucional é descrita como
“imperiosa” por Cabral de Moncada, que aliás a considera necessária para assegurar o direito
a uma tutela jurisidicional efectiva,
tal como o art. 268º/3 da CRP estabelece.[6]
Isto devia-se ao facto de
até à Lei 67/2007 a responsabilidade civil do Estado se encontrar regulada no
decreto-lei 48.051 de 21/11/1967, e que, portanto, se encontrava já algo
obsoleta, e cuja regulação era restrita à responsabilidade civil da Administração
Pública. Isto é, não englobava a totalidade dos actos praticados pelo Estado e
entidades públicas, uma vez que não incluía diversas das suas funções, como a
legislativa ou a jurisdicional, cingindo-se apenas à função administrativa.
Pelo que não se encontrava concretizada o artigo 22º da CRP, sendo que este se
reporta a “acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções”.
D. Lei 67/2007
Com a entrada em vigor da Lei
67/2007, muda-se então o panorama da responsabilidade civil das entidades públicas
em Portugal.
D.1 – Âmbito subjectivo de aplicação
Ainda que tal como a própria
designação da lei (Lei da responsabilidade civil extracontratual do Estado e
demais entidades públicas) assim o indique e o seu principal enfoque seja a responsabilização
do Estado e entidades públicas, este regime não se restringe apenas a tais
sujeitos de direito. Este facto é constatável a partir do art. 1º/5 que nos
refere que também são considerados para efeitos de responsabilidade os
titulares dos órgãos das pessoas colectivas de direito público e seus
funcionários pelos danos que decorram do exercício da função administrativa;
bem assim como pessoas colectivas de direito privado quando adoptem
prerrogativas de poder público ou que nas suas relações que sejam reguladas por
direito administrativo. Pelo que se pode dizer que a concepção de administração
pública adoptada é essencialmente desta mais enquanto actividade do que
organização, facto celebrado na doutrina.[7]
D.2 – Âmbito material de aplicação
O âmbito material de
aplicação da Lei 67/2007 encontra-se explicitado no número do seu art. 1º, onde
se pode ler:
A
responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas
colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função
legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente
lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.
Torna-se assim inequívoco
que a responsabilidade civil do Estado, não se encontra já restringindo ao que
diz respeito à função administrativa, tendo havido uma inclusão expressa da
responsabilização das funções legislativa e jurisidicional.
Esta maior amplitude de
responsabilização deve também ser celebrada, pois acaba por traduzir de forma
clara a ideia de que nenhuma actuação do Estado pode ignorar os efeitos que
terá nos particulares. No entanto, será de salientar que convirá usar de grande
cautela e ponderação na sua aplicação, sob pena de não se cair na iniquidade
que se pretende evitar, por exemplo mantendo sempre o respeito pela regre geral
de irresponsabilidade dos juízes como previsto no art. 216º/2 da CRP.
E – Unificação de competências
No seguimento das várias
reformas inovadoras feitas ao Direito Administrativo português no virar do
século, constata-se a partir da letra do art. 4º/1 do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais de 2004, uma unificação no que à apreciação da
responsabilidade civil extracontratual do Estado diz respeito. De facto,
desapareceu a distinção que se verificava anteriormente e que dizia respeito
aos actos praticados no âmbito de uma gestão privada perante aqueles praticados
no âmbito de uma gestão pública – distinção essa que viria definir qual o
tribunal que seria competente para julgar a causa – ou os tribunais comuns (em
caso de gestão privada), ou os tribunais administrativos (em caso de gestão
pública).
Graças à reforma do ETAF de
2004, esta diferenciação deixou de ser feita, e todos os casos quer de
responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas públicas, quer dos
titulares dos seus órgãos, quer das pessoas colectivas privadas aos quais seja
aplicadas normas de direito público, passam a ser julgados apenas pelos
tribunais administrativos (alíenas f); g); e h) do art. 4º do ETAF).
Esta reforma visou
principalmente tornar mais eficiente o sistema judicial, retirando etapas
desnecessárias e propícias a gerar dificuldades processuais.[8]
F – Dualidade de regimes substantivos
A unificação trazida pela
reforma de 2004 ao ETAF aparenta, contudo, estar restringida somente ao âmbito
processual, e não trazer qualquer unidade de regimes substantivos.
Assim, lê-se no art. 1º/1 da Lei 67/2007: “A
responsabilidade civil extracontratual do Estado […] rege-se pelo disposto na
presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.” Daqui resulta que não tendo
sido revogado o regime de responsabilidade previsto no art. 501º do Código
Civil, este ainda vigora, enquanto lei especial, regendo as matérias que digam
respeito ao “exercício de actividades de gestão privada”, e que ficarão assim
excluídas do âmbito de aplicação da Lei 67/2007.
Segundo o professor António Francisco de Sousa os elementos
que caracterizam a gestão pública e permitem realizar esta distinção são: “a)
exercício de um poder público; b) realização de uma função pública da pessoa
colectiva.”[9]
Este entendimento parece, aliás, ser adoptado pela
maioria da doutrina, com excepção do Professor Vasco Pereira da Silva.[10]
De facto, ainda que a solução escolhida pelo legislador possa ser discutível de
iure condendo, parece ser clara ao
consagrar a dualidade de regimes substantivos se se atender à letra da lei dos
artigos 1º/1 Lei 67/2007, e art. 501º do CC.
G – Direito de regresso
Não sendo o regime material estabelecido na Lei 67/2007 o
principal enfoque desta sucinta abordagem, achamos relevante, no entanto,
destacar o direito de regresso no que à responsabilidade civil do Estado diz
respeito, e uma das inconsistências da sua regulação nesta lei.
Assim, temos que o Estado é solidariamente responsável
perante os titulares dos órgãos e funcionários nos casos de dolo ou culpa grave
(art.8º/1 e 2), possuindo sempre um direito de regresso contra aqueles, nos
termos do art.8º/3. Direito de regresso este que corresponde a um poder
vinculado, e não discricionário, dizendo o art. 6º no seu número 1:
O exercício do direito de regresso,
nos casos em que este se encontra previsto na presente lei, é obrigatório, sem
prejuízo do procedimento disciplinar a que haja lugar.
Assim sendo, não cabe à
Administração optar entre exercer ou não este direito, pelo contrário, estando
vinculada a exercê-lo, sendo práticamente um dever.
Contudo, o caso muda de figura nos
casos de responsabilidade que dizem respeito à situação particular de danos
decorrentes do exercício da função jurisdicional, pois aqui, segundo o art.
14º/2:
A decisão de exercer o direito de regresso sobre
os magistrados cabe ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar,
a título oficioso ou por iniciativa do Ministro da Justiça.
Ou seja, aquilo que constitui para a Administração Pública um poder
vinculado no que aos restantes funcionários públicos diz respeito,
transforma-se numa opção dos órgãos das magistraturas nos casos a que a estes
dizem respeito. Reconhecendo-se a necessidade de respeitar o princípio da
irresponsabilidade dos magistrados, não se encontra ainda assim uma força
justificativa deste tratamento tão díspar face a duas situações, apesar de
tudo, semelhantes.
H – Bibliografia base:
- Notas sobre a nova lei da responsabilidade
civil do Estado, adenda ao livro Introdução
ao Direito Administrativo, na sequência da entrada em vigor da Lei
nº67/2007, João Caupers;
- A
responsabilidade civil extracontratual do Estado - problemas gerais, Fausto
Quadros;
- A
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades em
Portugal. Um exemplo a ser seguido, Camila Silva de Amorim, in Revista de
Direito Administrativo e Constitucional A&C, número 60, Abril/Junho 2015;
- Direito
Administrativo, António Francisco de Sousa;
- Prática
de Direito Administrativo, Questões teóricas e hipóteses resolvidas, Maria
Paula Gouveia de Andrade;
- Responsabilidade
Civil Extra-Contratual do Estado, Luís Cabral de Moncada;
- Acórdão do Tribunal de conflitos de 26 de
Setembro de 2007;
- O novo
regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo
exercício da função administrativa, Carlos Cadilha.
Miguel Romano
Aluno nº 28159
4º Ano – Subturma 8
[1] Notas sobre a nova lei da
responsabilidade civil do Estado, adenda ao livro Introdução ao Direito Administrativo, na sequência da entrada em
vigor da Lei nº67/2007, João Caupers.
[2] “Dito de outra forma: o dever de
indemnizar traduz-se na patologia do dever de prestar, é subsidiário, não uma
alternativa, por relação com o dever de prestar. O Estado não pode escolher
entre prestar ou indemnizar: ele tem o dever de prestar (que, portanto, no
plano lógico, precede o dever de indemnizar) e, só se a prestação não for
realizada, é que deve indemnizar em correspondência com a prestação omitida.” - A responsabilidade civil extracontratual
do Estado - problemas gerais, Fausto Quadros
[3] A
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades em
Portugal. Um exemplo a ser seguido, Camila Silva de Amorim, in Revista de
Direito Administrativo e Constitucional A&C, número 60, Abril/Junho 2015,
pág 282.
[5]
Prática de Direito Administrativo, Questões teóricas e hipóteses resolvidas, Maria Paula Gouveia de Andrade, pág
83.
[6] Responsabilidade
Civil Extra-Contratual do Estado, Luís Cabral de Moncada, pág. 13.
[7]
Notas sobre a nova lei da
responsabilidade civil do Estado, adenda ao livro Introdução ao Direito Administrativo, na sequência da entrada em
vigor da Lei nº67/2007, João Caupers, pág. 7.
[8] Como vem descrito no Acórdão do
Tribunal de conflitos de 26 de Setembro de 2007 - “Com a consagração
deste critério no domínio da responsabilidade civil extracontratual (..), o
legislador pretendeu acabar com a morosidade processual resultante da
determinação do tribunal competente, pois a distinção entre actos de gestão
pública e actos de gestão privada nem sempre foi fácil de fazer pelos tribunais
administrativos e tribunais cíveis, originando inúmeros recursos”.
[10]
Assim – Direito Administrativo, António Francisco de Sousa, pág. 800,
descreve este entendimento como “pacífico”. – Responsabilidade Civil Extra-Contratual do Estado, Luís Cabral de
Moncada, pág. 26, declaro-o como sendo “cert[o]”. – Notas sobre a nova lei da
responsabilidade civil do Estado, adenda ao livro Introdução ao Direito Administrativo, na sequência da entrada em
vigor da Lei nº67/2007, João Caupers, pág. 6, afirma “a verdade é que a
situação da dualidade de regimes substantivos de responsabilidade se mantém,
com todas as dificuldades inerentes”. Igualmente – O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades
públicas pelo exercício da função administrativa, Carlos Cadilha, diz-nos
que: “à apontada unidade de jurisdição
não corresponde uma unidade de regimes
jurídicos substantivos”.
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