domingo, 4 de novembro de 2018


A responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas

A.    Aspectos Gerais

Como nos diz o professor João Caupers, o conceito jurídico de responsabilidade acarreta sempre a “ideia de sujeição às consequências de um comportamento”[1]. No Direito existem diversos tipos de responsabilidade, como a civil, a penal ou a disciplinar. A responsabilidade civil, no seu âmbito público – quando o Estado ou outras entidades públicas “assumam as consequências do seu comportamento” – é a matéria que nos propomos a sucintamente abordar.
Como o próprio conceito de responsabilidade assim o transmite, convirá frisar que a indemnização para que possa ser correctamente entendida não corresponde a uma alternativa face ao cumprimento de uma obrigação por parte de uma entidade pública. Nunca deve existir um raciocínio administrativo de escolha entre o cumprimento a que a entidade se encontra vinculada e a opção de indemnizar. Pelo contrário, esta [a indemnização] é apenas a consequência de um prejuízo que tenha sido causado a um particular, e pelo qual se irá “responsabilizar” a entidade pública em causa.[2]

B.    Considerações históricas

A responsabilidade civil do Estado nem sempre foi um dado adquirido, pelo contrário, a sua origem é até relativamente recente, e deve-se apenas a uma evolução do pensamento político e jurídico que o levou a abandonar a ideia de que “o Rei não erra, o Estado não responde”[3], também expressa pelo conhecido aforismo inglês “the king can do no wrong”.
Vigorava também um entendimento acerca das relações dos funcionários do Estado com este, em que os actos daqueles só lhe poderiam ser imputáveis enquanto permanecessem dentro dos limites legais, uma vez que caso a sua actuação fosse ilegal, esta estaria já fora do seu mandato, e consequentemente não poderia ser atribuída ao Estado, mas tão somente ao próprio funcionário a título pessoal e enquanto particular. Este entendimento, ainda que aparentemente lógico e silogístico, acabava por ser contrário ao acesso à justiça.[4]
Gradualmente estas concepções foram-se alterando, até se passar a admitir uma responsabilidade civil cada vez mais ampla, primeiramente administrativa, mas depois também englobando as outras funções do Estado, como a legislativa e a jurisdicional.

C.    O contexto constitucional

A Constituição da República Portuguesa de 1976, no seu art. 22º prevê a responsabilidade das entidades públicas, podendo ler-se:
O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
Ainda que houvesse um certo entendimento doutrinário e jurisprudencial a favor da possiblidade de se considerar esta norma da Constituição como sendo directamente aplicável, já que corresponde essencialmente a um direito fundamental, possuindo consequentemente condições de aplicabilidade análogas às conferidas às normas respectivas a direitos, liberdades e garantias, e não carecendo portanto de concretização em lei ordinária para que pudesse ser invocada[5], era simultaneamente consensual a necessidade de uma nova lei que viesse mais detalhadamente precisar em que modos se deveria efectivar esta responsabilidade, bem como tornar a abrangência da lei ordinária igual à constitucional.
Esta necessidade de concretização em lei ordinária do preceito constitucional é descrita como “imperiosa” por Cabral de Moncada, que aliás a  considera necessária para assegurar o direito a uma tutela jurisidicional efectiva, tal como o art. 268º/3 da CRP estabelece.[6]
Isto devia-se ao facto de até à Lei 67/2007 a responsabilidade civil do Estado se encontrar regulada no decreto-lei 48.051 de 21/11/1967, e que, portanto, se encontrava já algo obsoleta, e cuja regulação era restrita à responsabilidade civil da Administração Pública. Isto é, não englobava a totalidade dos actos praticados pelo Estado e entidades públicas, uma vez que não incluía diversas das suas funções, como a legislativa ou a jurisdicional, cingindo-se apenas à função administrativa. Pelo que não se encontrava concretizada o artigo 22º da CRP, sendo que este se reporta a “acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções”.

D.   Lei 67/2007

Com a entrada em vigor da Lei 67/2007, muda-se então o panorama da responsabilidade civil das entidades públicas em Portugal.

D.1 – Âmbito subjectivo de aplicação

Ainda que tal como a própria designação da lei (Lei da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) assim o indique e o seu principal enfoque seja a responsabilização do Estado e entidades públicas, este regime não se restringe apenas a tais sujeitos de direito. Este facto é constatável a partir do art. 1º/5 que nos refere que também são considerados para efeitos de responsabilidade os titulares dos órgãos das pessoas colectivas de direito público e seus funcionários pelos danos que decorram do exercício da função administrativa; bem assim como pessoas colectivas de direito privado quando adoptem prerrogativas de poder público ou que nas suas relações que sejam reguladas por direito administrativo. Pelo que se pode dizer que a concepção de administração pública adoptada é essencialmente desta mais enquanto actividade do que organização, facto celebrado na doutrina.[7]

D.2 – Âmbito material de aplicação

O âmbito material de aplicação da Lei 67/2007 encontra-se explicitado no número do seu art. 1º, onde se pode ler:
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial. 
Torna-se assim inequívoco que a responsabilidade civil do Estado, não se encontra já restringindo ao que diz respeito à função administrativa, tendo havido uma inclusão expressa da responsabilização das funções legislativa e jurisidicional.
Esta maior amplitude de responsabilização deve também ser celebrada, pois acaba por traduzir de forma clara a ideia de que nenhuma actuação do Estado pode ignorar os efeitos que terá nos particulares. No entanto, será de salientar que convirá usar de grande cautela e ponderação na sua aplicação, sob pena de não se cair na iniquidade que se pretende evitar, por exemplo mantendo sempre o respeito pela regre geral de irresponsabilidade dos juízes como previsto no art. 216º/2 da CRP.

E – Unificação de competências

No seguimento das várias reformas inovadoras feitas ao Direito Administrativo português no virar do século, constata-se a partir da letra do art. 4º/1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 2004, uma unificação no que à apreciação da responsabilidade civil extracontratual do Estado diz respeito. De facto, desapareceu a distinção que se verificava anteriormente e que dizia respeito aos actos praticados no âmbito de uma gestão privada perante aqueles praticados no âmbito de uma gestão pública – distinção essa que viria definir qual o tribunal que seria competente para julgar a causa – ou os tribunais comuns (em caso de gestão privada), ou os tribunais administrativos (em caso de gestão pública).
Graças à reforma do ETAF de 2004, esta diferenciação deixou de ser feita, e todos os casos quer de responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas públicas, quer dos titulares dos seus órgãos, quer das pessoas colectivas privadas aos quais seja aplicadas normas de direito público, passam a ser julgados apenas pelos tribunais administrativos (alíenas f); g); e h) do art. 4º do ETAF).
Esta reforma visou principalmente tornar mais eficiente o sistema judicial, retirando etapas desnecessárias e propícias a gerar dificuldades processuais.[8]

F – Dualidade de regimes substantivos

A unificação trazida pela reforma de 2004 ao ETAF aparenta, contudo, estar restringida somente ao âmbito processual, e não trazer qualquer unidade de regimes substantivos.
Assim, lê-se no art. 1º/1 da Lei 67/2007: A responsabilidade civil extracontratual do Estado […] rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.” Daqui resulta que não tendo sido revogado o regime de responsabilidade previsto no art. 501º do Código Civil, este ainda vigora, enquanto lei especial, regendo as matérias que digam respeito ao “exercício de actividades de gestão privada”, e que ficarão assim excluídas do âmbito de aplicação da Lei 67/2007.
            Segundo o professor António Francisco de Sousa os elementos que caracterizam a gestão pública e permitem realizar esta distinção são: “a) exercício de um poder público; b) realização de uma função pública da pessoa colectiva.”[9]
            Este entendimento parece, aliás, ser adoptado pela maioria da doutrina, com excepção do Professor Vasco Pereira da Silva.[10] De facto, ainda que a solução escolhida pelo legislador possa ser discutível de iure condendo, parece ser clara ao consagrar a dualidade de regimes substantivos se se atender à letra da lei dos artigos 1º/1 Lei 67/2007, e art. 501º do CC.

            G – Direito de regresso
            Não sendo o regime material estabelecido na Lei 67/2007 o principal enfoque desta sucinta abordagem, achamos relevante, no entanto, destacar o direito de regresso no que à responsabilidade civil do Estado diz respeito, e uma das inconsistências da sua regulação nesta lei.
            Assim, temos que o Estado é solidariamente responsável perante os titulares dos órgãos e funcionários nos casos de dolo ou culpa grave (art.8º/1 e 2), possuindo sempre um direito de regresso contra aqueles, nos termos do art.8º/3. Direito de regresso este que corresponde a um poder vinculado, e não discricionário, dizendo o art. 6º no seu número 1:
O exercício do direito de regresso, nos casos em que este se encontra previsto na presente lei, é obrigatório, sem prejuízo do procedimento disciplinar a que haja lugar. 
            Assim sendo, não cabe à Administração optar entre exercer ou não este direito, pelo contrário, estando vinculada a exercê-lo, sendo práticamente um dever.
            Contudo, o caso muda de figura nos casos de responsabilidade que dizem respeito à situação particular de danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, pois aqui, segundo o art. 14º/2:
            A decisão de exercer o direito de regresso sobre os magistrados cabe ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar, a título oficioso ou por iniciativa do Ministro da Justiça.
Ou seja, aquilo que constitui para a Administração Pública um poder vinculado no que aos restantes funcionários públicos diz respeito, transforma-se numa opção dos órgãos das magistraturas nos casos a que a estes dizem respeito. Reconhecendo-se a necessidade de respeitar o princípio da irresponsabilidade dos magistrados, não se encontra ainda assim uma força justificativa deste tratamento tão díspar face a duas situações, apesar de tudo, semelhantes.

H – Bibliografia base:

 - Notas sobre a nova lei da responsabilidade civil do Estado, adenda ao livro Introdução ao Direito Administrativo, na sequência da entrada em vigor da Lei nº67/2007, João Caupers;

 - A responsabilidade civil extracontratual do Estado - problemas gerais, Fausto Quadros;

 - A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades em Portugal. Um exemplo a ser seguido, Camila Silva de Amorim, in Revista de Direito Administrativo e Constitucional A&C, número 60, Abril/Junho 2015;

 - Direito Administrativo, António Francisco de Sousa;

 - Prática de Direito Administrativo, Questões teóricas e hipóteses resolvidas, Maria Paula Gouveia de Andrade;

 - Responsabilidade Civil Extra-Contratual do Estado, Luís Cabral de Moncada;

 - Acórdão do Tribunal de conflitos de 26 de Setembro de 2007;

 - O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa, Carlos Cadilha.










Miguel Romano
Aluno nº 28159
4º Ano – Subturma 8



[1] Notas sobre a nova lei da responsabilidade civil do Estado, adenda ao livro Introdução ao Direito Administrativo, na sequência da entrada em vigor da Lei nº67/2007, João Caupers.

[2] “Dito de outra forma: o dever de indemnizar traduz-se na patologia do dever de prestar, é subsidiário, não uma alternativa, por relação com o dever de prestar. O Estado não pode escolher entre prestar ou indemnizar: ele tem o dever de prestar (que, portanto, no plano lógico, precede o dever de indemnizar) e, só se a prestação não for realizada, é que deve indemnizar em correspondência com a prestação omitida.” - A responsabilidade civil extracontratual do Estado - problemas gerais, Fausto Quadros

[3] A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades em Portugal. Um exemplo a ser seguido, Camila Silva de Amorim, in Revista de Direito Administrativo e Constitucional A&C, número 60, Abril/Junho 2015, pág 282.
[4] Direito Administrativo, António Francisco de Sousa, pág. 794.

[5] Prática de Direito Administrativo, Questões teóricas e hipóteses resolvidas, Maria Paula Gouveia de Andrade, pág 83.

[6] Responsabilidade Civil Extra-Contratual do Estado, Luís Cabral de Moncada, pág. 13.
[7] Notas sobre a nova lei da responsabilidade civil do Estado, adenda ao livro Introdução ao Direito Administrativo, na sequência da entrada em vigor da Lei nº67/2007, João Caupers, pág. 7.
[8] Como vem descrito no Acórdão do Tribunal de conflitos de 26 de Setembro de 2007 -  “Com a consagração deste critério no domínio da responsabilidade civil extracontratual (..), o legislador pretendeu acabar com a morosidade processual resultante da determinação do tribunal competente, pois a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada nem sempre foi fácil de fazer pelos tribunais administrativos e tribunais cíveis, originando inúmeros recursos”.
[9] Direito Administrativo, António Francisco de Sousa, pág. 800.

[10] Assim – Direito Administrativo, António Francisco de Sousa, pág. 800, descreve este entendimento como “pacífico”. – Responsabilidade Civil Extra-Contratual do Estado, Luís Cabral de Moncada, pág. 26, declaro-o como sendo “cert[o]”. – Notas sobre a nova lei da responsabilidade civil do Estado, adenda ao livro Introdução ao Direito Administrativo, na sequência da entrada em vigor da Lei nº67/2007, João Caupers, pág. 6, afirma “a verdade é que a situação da dualidade de regimes substantivos de responsabilidade se mantém, com todas as dificuldades inerentes”. Igualmente – O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa, Carlos Cadilha, diz-nos que: “à apontada unidade de jurisdição não corresponde uma unidade de regimes jurídicos substantivos”.



Sem comentários:

Enviar um comentário