“O
Ministério Público pode ser autor em processos administrativos, quando propõe
ações no exercício da chamada ação pública (cfr. nº15), mas, como prevê o
artigo 11º, n.º 1, no seu inciso final, o Ministério Público também representa
o Estado, fazendo as vezes de seu advogado, nas ações administrativas que sejam
propostas contra este.”[1]
Para GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA as
funções do Ministério Público podem agrupar-se em quatro áreas: representar o
Estado, nomeadamente nos tribunais, nas causas em que ele seja parte,
funcionando como uma espécie de Advogado do Estado; exercer a ação penal;
defender a legalidade democrática, intervindo no contencioso administrativo e
fiscal e na fiscalização da constitucionalidade; defender os interesses de
determinadas pessoas mais carenciadas de proteção, designadamente, os menores,
os ausentes, os trabalhadores, etc.[2]
Do texto da revisão do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos antes da reforma de 2015 constava do artigo 11º, n.º 2, o
seguinte:
“2 - Sem prejuízo da representação do Estado
pelo Ministério Público nos processos que tenham por objecto relações contratuais
e de responsabilidade, as pessoas colectivas de direito público ou os
ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com
funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja
actuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres
deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra
parte.”
Em matéria de representação processual do Estado e demais
entes públicos o CPTA então em vigor apresentava aquilo que a doutrina
apelidava de uma solução dual. Por regra a representação no contencioso
administrativo caberia a advogados ou licenciados em Direito, excepto nos
processos que tivessem por objecto relações contratuais e de responsabilidade
processual do Estado aí a representação era obrigatoriamente assegurada pelo MP
(Ministério Público).
Esta solução era amplamente criticada pela doutrina: para
VIEIRA DE ANDRADE, a representação
dos interesses patrimoniais do Estado-Administração deveria ser assegurada por
funcionários dos serviços jurídicos ministeriais ou advogados, inexistindo
qualquer razão que fundamenta-se a solução então vigente[3]; a
constituição não imporia que a representação do Estado fosse atribuída ao Ministério
Público, aliás pelo contrário, só com a ausência deste órgão se resolveria o
conflito existente entre a autonomia do Ministério Público e a representação
Estado-parte, conciliando a defesa da
Administração (e do interesse público) com a estrita garantia de liberdade.
Também para ALEXANDRA
LEITÃO a solução mais adequada passaria por suprimir a competência de
representação do Estado do MP para evitar conflitos entre a “defesa da
legalidade e a defesa do Estado”.
A estes argumentos acrescenta o professor TIAGO SERRÃO em primeiro lugar, que da
aplicação estrita do disposto no então artigo 11º/2. resulta que o MP não
representa o Estado em ações de prestação ou em litígios relativos a
enriquecimento sem causa, dado que apesar de dizerem respeito aos interesses
patrimoniais do Estado não estão estritamente dentro de “relações contratuais e
responsabilidade” revelando-se esta opção do legislador incongruente com as
soluções do passado e a prática que ia no sentido de reservar para o MP a
representação do Estado nos processos que envolvam os seus interesses
patrimoniais. Em segundo lugar que a representação processual do Estado em
processo de relações contratuais ou de responsabilidade que ocorram por via
arbitral não caber ao MP, sendo o Estado representado “pelo membro do governo
que seja sectorialmente competente em razão de matéria e quem este patrocine
para o efeito”, não existindo norma legal que habilite o MP a exercer
competências de representação nestes casos, o que na opinião do autor revela
uma grande dissonância legislativa no tratamento do tema e deveria existir uma
uniformização de soluções tanto na jurisdição estadual como arbitral.
Por último TIAGO
SERRÃO refere ainda que esta solução gera uma evidente insegurança e
incerteza jurídica, pois durante a vigência do CPTA com a antiga redação era
pouco claro como proceder nos casos em que o autor formule outros pedidos
conjuntamente com pedidos em matéria contratual ou de responsabilidade, tendo
então o MP competência de representar processualmente o Estado. A
jurisprudência apontava no sentido de que a presença do Estado representado
pelo MP só era legalmente obrigatória em acções administrativas “de pura
responsabilidade”, entenda-se em que todos os pedidos dissessem respeito
exclusivamente a matéria de responsabilidade, caso outro qualquer pedido fosse
conjuntamente formulado, já nenhuma obrigatoriedade existia de ser o MP a
representar o Estado.[4]
Presentemente o art 11º/1. CPTA refere:
“1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória
a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil,
podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por
advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com
funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo
Ministério Público. “
A representação do Estado pelo MP implica que se aborde:
a)
O âmbito objetivo - em que matérias o Ministério Público é competente para
representar o Estado;
b)
O âmbito subjetivo - entidades públicas que representam
o MP
a)
O âmbito de atuação do Ministério
Público quando representa o Estado, no contexto do CPTA
Antes da reforma de 2015 o MP representava o Estado nos
processos que tivessem por objecto relações contratuais e de responsabilidade
civil, como constava do artigo 11º/2. do CPTA, sendo complementado pelo artigo
51º do ETAF e no artigo 53º al. a) do Estatuto do Ministério Público.
À primeira vista parece que a limitação do âmbito
processual foi eliminada, ampliando-se o âmbito de actuação do MP em
representação do Estado. Ou seja, eliminaram-se os limites objectivos à
representação processual do Estado pelo MP. Poderíamos até dizer que este
artigo conduziria à conclusão que o MP representa o Estado em todas as ações independentemente
do seu objecto.
É também relevante considerar que ocorreu uma alteração
no disposto no artigo 51º ETAF que anteriormente previa: “Compete ao MP representar o Estado (…) exercendo para o efeito, os
poderes que a lei processual lhe
confere” ao passo que a actual redação suprimiu a expressão “lei processual” e refere apenas “a lei”. Professor RICARDO PEDRO aponta duas possíveis interpretações a retirar desta
supressão da expressão “processual”:
·
A primeira é de que a competência de representação do Estado pelo MP
resulta de todos os atos que se qualifiquem como lei;
·
A segunda é de que já não é a lei processual a definir o âmbito e os
limites objectivos da intervenção do MP em representação do Estado.[5]
É assim necessário identificar se existe alguma norma que
faça o recorte das ações em que o MP intervém em representação do Estado como o
antigo CPTA fazia no caso de matéria contratual e responsabilidade e como a
nova redacção do CPTA e ETAF aparentam já não fazer.
Assim, atendendo às normas relativas da competência do MP
do seu estatuto (Lei n.º 47/86, de 15
de Outubro) que estabelecem que o MP tem uma intervenção principal quando
representa o Estado, as R.A e as A.L, artigo 5º a) e b) isto é, tem nestes
casos todos os direitos reconhecidos a uma parte principal no processo.
Também o artigo 53º al. a) do
EMP ao prever que “Compete aos departamentos de contencioso do Estado a) “A representação
do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais”, assim como
sustenta RICARDO PEDRO, o estatuto vem limitar a representação somente
aos casos de defesa de interesses patrimoniais do Estado, estando assim também
em consonância com a norma constitucional que atribui esta função, o artigo
219º/1 CRP ao mencionar: “Ao Ministério
Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei
determinar”, conclui assim o autor que o âmbito objectivo de actuação
do MP em representação do Estado se circunscreve à defesa dos interesses
patrimoniais do Estado (logo o critério para aferir da competência parece ser a
patrimonialidade do interesse do Estado-parte).
Cabe agora abordar se esta
representação emerge se o Estado surgir do lado activo bem como do lado passivo
da relação processual.
A resposta no sentido de que o
MP representa o Estado nas ações administrativas contra este propostas, quando
o Estado surge do lado passivo é aceite pela doutrina (AROSO DE ALMEIDA),
o artigo 10º/2 CPTA parece confirmá-lo ao referir que nos “processos intentados contra entidades públicas parte demandada é a
pessoa colectiva de direito público, salvo nos processos contra o Estado ou
as Regiões Autónomas que se reportem à ação ou omissão de órgãos integrados nos
respectivos ministérios ou secretarias regionais, em que parte demandada é o
ministério ou ministérios, ou a secretaria ou secretarias regionais, a cujos órgãos
sejam imputáveis os actos praticados ou sobre cujos órgãos recaia o dever de
praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos” .
Desta forma refere RICARDO
PEDRO que o legislador recorta o âmbito da actuação do MP em representação
do Estado tanto enquanto parte activa como parte passiva da relação material
controvertida pode-se extrair do regime da legitimidade passiva- consistindo
no interesse directo em contradizer um determinado litígio.
Importa sublinhar que não há
identificação entre a legitimidade passiva e a representação do Estado pelo MP.
Assim não é certo que o MP não deva representar o Estado quando este é autor
(quando alegue ser parte na relação material controvertida), ainda que as
situações em que o possa fazer sejam mais restritas. Nestes casos a doutrina
indica que o MP terá que receber esse pedido da entidade que organicamente
representa a vontade do Estado (veja-se ALEXANDRA LEITÃO).
b)
Dimensão
subjetiva (entidades públicas que representam o MP)
Tem sido afirmado que o MP só
representa o Estado e não qualquer outra entidade pública, neste sentido aponta
o artigo 51º ETAF que apenas se refere ao Estado, também o EMP apenas alude à
representação do Estado no artigo 1º e no artigo 3º/ 1 a) ao Estado, R.A e A.L.
Tem também sido defendido por alguma doutrina, veja-se AROSO DE ALMEIDA,
um recorte subjetivo que exclui da representação pelo MP as R.A e as A.L
apoiada na redação restritiva do artigo 51º ETAF. Argumentando, ALEXANDRA
LEITÃO, que a norma do ETAF é uma norma posterior e especial em face do
EMP.
(RICARDO PEDRO para
corroborar este entendimento alude ao art 5º/2 do EMP “Em caso de representação de região autónoma ou de autarquia local, a
intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio”)
Mas admitindo que o âmbito
subjetivo da representação se circunscreve ao Estado, há que clarificar que
“Estado” é este. É entendido pela doutrina que no contexto em que nos situamos
do contencioso administrativo estamos a falar de Estado na sua acepção
administrativa: “a pessoa colectiva que, no seio da comunidade nacional,
desempenha, sob a direcção do governo, a actividade administrativa” abrangendo
apenas o Estado em sentido estrito e não outras pessoas colectivas públicas nem
mesmo serviços personalizados são representados pelo MP.
A nível jurisprudencial a
Relação de Coimbra no Ac. 1/03/1988 já entendeu que o conceito de Estado –
Administração, no sentido de não abranger a administração indirecta do Estado
(autonomia administrativa e financeira). Também o Tribunal Constitucional se
pronunciou no Ac. 678/95 que o Estado- Administração abrange apenas a administração
directa do Estado que abarca todos os órgãos e serviços integrados
hierarquicamente dependentes do governo e sujeitos ao poder de direcção deste,
excluindo a administração indirecta, a administração autónoma de carácter local
(A.L) e de base institucional (as universidades) em relação às quais o governo
exerce apenas um poder de tutela. Recorde-se que alguma doutrina nem admite a
administração directa do Estado mas apenas o Estado enquanto pessoa coletiva- ALEXANDRA
LEITÃO.
Este assunto não está contudo
resolvido definitivamente, como aponta RICARDO PEDRO: primeiro porque a
nível constitucional o conceito de Estado do artigo 219º é um entendimento não
técnico; e em segundo lugar o artigo 5º/1 g) EMP “Nos demais casos em que a lei lhe atribua competência para intervir
nessa qualidade” deixando assim esta norma em branco uma porta aberta para
que leis futuras venham alargar o âmbito subjectivo de competências do MP de
representar o Estado.[6]
A função de representação, quando exercida, corresponde à
intervenção principal na terminologia do EMP traduz-se, segundo CARLOS LOPES REGO, no dever do MP de
“assumir a representação ou patrocínio judiciário do Estado, de outras pessoas
colectivas públicas, e de pessoas ou entidades a que o Estado deve protecção,
bem como na actuação de competências oficiosas que a lei confere especial e directamente
ao MP, com vista à realização de interesses postos especificamente a seu
cargo”, por exemplo a titularidade da acção pública como consta do artigo 9º/2
CPTA.
A função de assistência a alguma das partes traduz-se na
intervenção acessória que se exerce” nos processos em que figurem como parte
principal pessoas colectivas públicas ou entidades a que o Estado deva
protecção, ou que pela sua natureza envolvam, necessariamente o interesse
público, sempre que não se verificam os condicionalismos que legitimam
intervenção a título principal (carácter subsidiário da intervenção acessória)
- artigos 3º/1 e 5º/4 EMP.
Conclusão
O conceito de representação, quando o MP é chamado a
deduzir intervenção principal, deve ainda ser melhor densificado, pois o seu
significado não é unívoco na doutrina. Alguma doutrina como CARLOS LOPES DO REGO caracteriza esta
representação como orgânica, na medida em que se está perante verdadeiros
poderes de representação tendentes a exprimir a vontade da pessoa ou do ente em
nome de quem se age. Por outro lado outra doutrina como ISABEL ALEXANDRE e ALEXANDRA
LEITÃO consideram que a representação do Estado-Administração pelo MP não
configura um caso de representação orgânica uma vez que esta traduz a actuação
da pessoa colectiva através dos seus órgãos e o MP não é um órgão do Estado-
Administração, tratando-se portanto de uma representação legal.
Bibliografia:
- ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual
de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017
- ANDRADE,
José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa (Lições), 13ª
edição, Almedina, 2014
- SILVA, Vasco Pereira da, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no
Novo Processo Administrativo», 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2009
- Anteprojeto
de Revisão do código do Procedimento dos Tribunais administrativos, SERRÃO,
Tiago; NEVES, Ana Fernanda; GOMES, Carla Amado in O Anteprojeto de
revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais em debate (Págs. 225 e ss.)
-
Cometários à Revisão do ETAF e do CPTA, GOMES, CARLA AMADO; SERRÃO, Tiago; NEVES, Ana
Fernanda, 3ª Edição, AAFDL EDITORA, 2017
Webgrafia:
Diogo Miguel de
Brito Fonseca, 4.º ano, subturma 8, aluno 28559
[2] GOMES CANOTILHO e VITAL
MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, ver anotação ao artigo 219º.
[4] Despacho
Saneador 27 de Nov. de 2013 STA, Ac. Nº 9283/12 Tribunal Central Administrativo
do Sul e Ac. Do Tribunal Central Administrativo Norte de 22 de Feveiro de 2007
e 21 de Feveiro de 2008.
[5] In Comentários À Revisão do ETAF E Do CPTA “Representação
do Estado pelo Ministério Público no Código de Processo nos Tribunais
Administrativos revisto: introdução a algumas questões” (P.308)
[6] In Comentários À Revisão do ETAF E Do CPTA “Representação
do Estado pelo Ministério Público no Código de Processo nos Tribunais
Administrativos revisto: introdução a algumas questões” (P.314 e 315)
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