domingo, 4 de novembro de 2018

A representação do Estado em juízo pelo Ministério Público



“O Ministério Público pode ser autor em processos administrativos, quando propõe ações no exercício da chamada ação pública (cfr. nº15), mas, como prevê o artigo 11º, n.º 1, no seu inciso final, o Ministério Público também representa o Estado, fazendo as vezes de seu advogado, nas ações administrativas que sejam propostas contra este.”[1]

Para GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA as funções do Ministério Público podem agrupar-se em quatro áreas: representar o Estado, nomeadamente nos tribunais, nas causas em que ele seja parte, funcionando como uma espécie de Advogado do Estado; exercer a ação penal; defender a legalidade democrática, intervindo no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade; defender os interesses de determinadas pessoas mais carenciadas de proteção, designadamente, os menores, os ausentes, os trabalhadores, etc.[2] 


Do texto da revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos antes da reforma de 2015 constava do artigo 11º, n.º 2, o seguinte:
2 - Sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objecto relações contratuais e de responsabilidade, as pessoas colectivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja actuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.”

Em matéria de representação processual do Estado e demais entes públicos o CPTA então em vigor apresentava aquilo que a doutrina apelidava de uma solução dual. Por regra a representação no contencioso administrativo caberia a advogados ou licenciados em Direito, excepto nos processos que tivessem por objecto relações contratuais e de responsabilidade processual do Estado aí a representação era obrigatoriamente assegurada pelo MP (Ministério Público).

Esta solução era amplamente criticada pela doutrina: para VIEIRA DE ANDRADE, a representação dos interesses patrimoniais do Estado-Administração deveria ser assegurada por funcionários dos serviços jurídicos ministeriais ou advogados, inexistindo qualquer razão que fundamenta-se a solução então vigente[3]; a constituição não imporia que a representação do Estado fosse atribuída ao Ministério Público, aliás pelo contrário, só com a ausência deste órgão se resolveria o conflito existente entre a autonomia do Ministério Público e a representação Estado-parte, conciliando  a defesa da Administração (e do interesse público) com a estrita garantia de liberdade.

Também para ALEXANDRA LEITÃO a solução mais adequada passaria por suprimir a competência de representação do Estado do MP para evitar conflitos entre a “defesa da legalidade e a defesa do Estado”.

A estes argumentos acrescenta o professor TIAGO SERRÃO em primeiro lugar, que da aplicação estrita do disposto no então artigo 11º/2. resulta que o MP não representa o Estado em ações de prestação ou em litígios relativos a enriquecimento sem causa, dado que apesar de dizerem respeito aos interesses patrimoniais do Estado não estão estritamente dentro de “relações contratuais e responsabilidade” revelando-se esta opção do legislador incongruente com as soluções do passado e a prática que ia no sentido de reservar para o MP a representação do Estado nos processos que envolvam os seus interesses patrimoniais. Em segundo lugar que a representação processual do Estado em processo de relações contratuais ou de responsabilidade que ocorram por via arbitral não caber ao MP, sendo o Estado representado “pelo membro do governo que seja sectorialmente competente em razão de matéria e quem este patrocine para o efeito”, não existindo norma legal que habilite o MP a exercer competências de representação nestes casos, o que na opinião do autor revela uma grande dissonância legislativa no tratamento do tema e deveria existir uma uniformização de soluções tanto na jurisdição estadual como arbitral.

Por último TIAGO SERRÃO refere ainda que esta solução gera uma evidente insegurança e incerteza jurídica, pois durante a vigência do CPTA com a antiga redação era pouco claro como proceder nos casos em que o autor formule outros pedidos conjuntamente com pedidos em matéria contratual ou de responsabilidade, tendo então o MP competência de representar processualmente o Estado. A jurisprudência apontava no sentido de que a presença do Estado representado pelo MP só era legalmente obrigatória em acções administrativas “de pura responsabilidade”, entenda-se em que todos os pedidos dissessem respeito exclusivamente a matéria de responsabilidade, caso outro qualquer pedido fosse conjuntamente formulado, já nenhuma obrigatoriedade existia de ser o MP a representar o Estado.[4]



Presentemente o art 11º/1. CPTA refere:
“1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público. “
A representação do Estado pelo MP implica que se aborde:
a)     O âmbito objetivo - em que matérias o Ministério Público é competente para representar o Estado;
b)    O âmbito subjetivo - entidades públicas que representam o MP


a)    O âmbito de atuação do Ministério Público quando representa o Estado, no contexto do CPTA

Antes da reforma de 2015 o MP representava o Estado nos processos que tivessem por objecto relações contratuais e de responsabilidade civil, como constava do artigo 11º/2. do CPTA, sendo complementado pelo artigo 51º do ETAF e no artigo 53º al. a) do Estatuto do Ministério Público.

À primeira vista parece que a limitação do âmbito processual foi eliminada, ampliando-se o âmbito de actuação do MP em representação do Estado. Ou seja, eliminaram-se os limites objectivos à representação processual do Estado pelo MP. Poderíamos até dizer que este artigo conduziria à conclusão que o MP representa o Estado em todas as ações independentemente do seu objecto.

É também relevante considerar que ocorreu uma alteração no disposto no artigo 51º ETAF que anteriormente previa: “Compete ao MP representar o Estado (…) exercendo para o efeito, os poderes que a lei processual lhe confere” ao passo que a actual redação suprimiu a expressão “lei processual” e refere apenas “a lei”. Professor RICARDO PEDRO aponta duas possíveis interpretações a retirar desta supressão da expressão “processual”:
·       A primeira é de que a competência de representação do Estado pelo MP resulta de todos os atos que se qualifiquem como lei;
·       A segunda é de que já não é a lei processual a definir o âmbito e os limites objectivos da intervenção do MP em representação do Estado.[5]

É assim necessário identificar se existe alguma norma que faça o recorte das ações em que o MP intervém em representação do Estado como o antigo CPTA fazia no caso de matéria contratual e responsabilidade e como a nova redacção do CPTA e ETAF aparentam já não fazer.

Assim, atendendo às normas relativas da competência do MP do seu estatuto (Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro) que estabelecem que o MP tem uma intervenção principal quando representa o Estado, as R.A e as A.L, artigo 5º a) e b) isto é, tem nestes casos todos os direitos reconhecidos a uma parte principal no processo.
Também o artigo 53º al. a) do EMP ao prever que “Compete aos departamentos de contencioso do Estado a) “A representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais”, assim como sustenta RICARDO PEDRO, o estatuto vem limitar a representação somente aos casos de defesa de interesses patrimoniais do Estado, estando assim também em consonância com a norma constitucional que atribui esta função, o artigo 219º/1 CRP ao mencionar: “Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar”, conclui assim o autor que o âmbito objectivo de actuação do MP em representação do Estado se circunscreve à defesa dos interesses patrimoniais do Estado (logo o critério para aferir da competência parece ser a patrimonialidade do interesse do Estado-parte).

Cabe agora abordar se esta representação emerge se o Estado surgir do lado activo bem como do lado passivo da relação processual.

A resposta no sentido de que o MP representa o Estado nas ações administrativas contra este propostas, quando o Estado surge do lado passivo é aceite pela doutrina (AROSO DE ALMEIDA), o artigo 10º/2 CPTA parece confirmá-lo ao referir que nos processos intentados contra entidades públicas parte demandada é a pessoa colectiva de direito público, salvo nos processos contra o Estado ou as Regiões Autónomas que se reportem à ação ou omissão de órgãos integrados nos respectivos ministérios ou secretarias regionais, em que parte demandada é o ministério ou ministérios, ou a secretaria ou secretarias regionais, a cujos órgãos sejam imputáveis os actos praticados ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos” .

Desta forma refere RICARDO PEDRO que o legislador recorta o âmbito da actuação do MP em representação do Estado tanto enquanto parte activa como parte passiva da relação material controvertida pode-se extrair do regime da legitimidade passiva- consistindo no interesse directo em contradizer um determinado litígio.

Importa sublinhar que não há identificação entre a legitimidade passiva e a representação do Estado pelo MP. Assim não é certo que o MP não deva representar o Estado quando este é autor (quando alegue ser parte na relação material controvertida), ainda que as situações em que o possa fazer sejam mais restritas. Nestes casos a doutrina indica que o MP terá que receber esse pedido da entidade que organicamente representa a vontade do Estado (veja-se ALEXANDRA LEITÃO).


b)     Dimensão subjetiva (entidades públicas que representam o MP)

Tem sido afirmado que o MP só representa o Estado e não qualquer outra entidade pública, neste sentido aponta o artigo 51º ETAF que apenas se refere ao Estado, também o EMP apenas alude à representação do Estado no artigo 1º e no artigo 3º/ 1 a) ao Estado, R.A e A.L. Tem também sido defendido por alguma doutrina, veja-se AROSO DE ALMEIDA, um recorte subjetivo que exclui da representação pelo MP as R.A e as A.L apoiada na redação restritiva do artigo 51º ETAF. Argumentando, ALEXANDRA LEITÃO, que a norma do ETAF é uma norma posterior e especial em face do EMP.

(RICARDO PEDRO para corroborar este entendimento alude ao art 5º/2 do EMP “Em caso de representação de região autónoma ou de autarquia local, a intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio”)
Mas admitindo que o âmbito subjetivo da representação se circunscreve ao Estado, há que clarificar que “Estado” é este. É entendido pela doutrina que no contexto em que nos situamos do contencioso administrativo estamos a falar de Estado na sua acepção administrativa: “a pessoa colectiva que, no seio da comunidade nacional, desempenha, sob a direcção do governo, a actividade administrativa” abrangendo apenas o Estado em sentido estrito e não outras pessoas colectivas públicas nem mesmo serviços personalizados são representados pelo MP.
A nível jurisprudencial a Relação de Coimbra no Ac. 1/03/1988 já entendeu que o conceito de Estado – Administração, no sentido de não abranger a administração indirecta do Estado (autonomia administrativa e financeira). Também o Tribunal Constitucional se pronunciou no Ac. 678/95 que o Estado- Administração abrange apenas a administração directa do Estado que abarca todos os órgãos e serviços integrados hierarquicamente dependentes do governo e sujeitos ao poder de direcção deste, excluindo a administração indirecta, a administração autónoma de carácter local (A.L) e de base institucional (as universidades) em relação às quais o governo exerce apenas um poder de tutela. Recorde-se que alguma doutrina nem admite a administração directa do Estado mas apenas o Estado enquanto pessoa coletiva- ALEXANDRA LEITÃO.
Este assunto não está contudo resolvido definitivamente, como aponta RICARDO PEDRO: primeiro porque a nível constitucional o conceito de Estado do artigo 219º é um entendimento não técnico; e em segundo lugar o artigo 5º/1 g) EMP “Nos demais casos em que a lei lhe atribua competência para intervir nessa qualidade” deixando assim esta norma em branco uma porta aberta para que leis futuras venham alargar o âmbito subjectivo de competências do MP de representar o Estado.[6]

A função de representação, quando exercida, corresponde à intervenção principal na terminologia do EMP traduz-se, segundo CARLOS LOPES REGO, no dever do MP de “assumir a representação ou patrocínio judiciário do Estado, de outras pessoas colectivas públicas, e de pessoas ou entidades a que o Estado deve protecção, bem como na actuação de competências oficiosas que a lei confere especial e directamente ao MP, com vista à realização de interesses postos especificamente a seu cargo”, por exemplo a titularidade da acção pública como consta do artigo 9º/2 CPTA.

A função de assistência a alguma das partes traduz-se na intervenção acessória que se exerce” nos processos em que figurem como parte principal pessoas colectivas públicas ou entidades a que o Estado deva protecção, ou que pela sua natureza envolvam, necessariamente o interesse público, sempre que não se verificam os condicionalismos que legitimam intervenção a título principal (carácter subsidiário da intervenção acessória) - artigos 3º/1 e 5º/4 EMP.


Conclusão

O conceito de representação, quando o MP é chamado a deduzir intervenção principal, deve ainda ser melhor densificado, pois o seu significado não é unívoco na doutrina. Alguma doutrina como CARLOS LOPES DO REGO caracteriza esta representação como orgânica, na medida em que se está perante verdadeiros poderes de representação tendentes a exprimir a vontade da pessoa ou do ente em nome de quem se age. Por outro lado outra doutrina como ISABEL ALEXANDRE e ALEXANDRA LEITÃO consideram que a representação do Estado-Administração pelo MP não configura um caso de representação orgânica uma vez que esta traduz a actuação da pessoa colectiva através dos seus órgãos e o MP não é um órgão do Estado- Administração, tratando-se portanto de uma representação legal.




Bibliografia:
- ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2017
- ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa (Lições), 13ª edição, Almedina, 2014
- SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2009
- Anteprojeto de Revisão do código do Procedimento dos Tribunais administrativos, SERRÃO, Tiago; NEVES, Ana Fernanda; GOMES, Carla Amado in O Anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em debate (Págs. 225 e ss.)
- Cometários à Revisão do ETAF e do CPTA, GOMES, CARLA AMADO; SERRÃO, Tiago; NEVES, Ana Fernanda, 3ª Edição, AAFDL EDITORA, 2017


Webgrafia:


Diogo Miguel de Brito Fonseca, 4.º ano, subturma 8, aluno 28559



[1] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo (P. 65)
[2] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, ver anotação ao artigo 219º.
[3] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça administrativa (Lições), 13ª edição, Almedina, 2014

[4] Despacho Saneador 27 de Nov. de 2013 STA, Ac. Nº 9283/12 Tribunal Central Administrativo do Sul e Ac. Do Tribunal Central Administrativo Norte de 22 de Feveiro de 2007 e 21 de Feveiro de 2008.

[5] In Comentários À Revisão do ETAF E Do CPTA “Representação do Estado pelo Ministério Público no Código de Processo nos Tribunais Administrativos revisto: introdução a algumas questões” (P.308)
[6] In Comentários À Revisão do ETAF E Do CPTA “Representação do Estado pelo Ministério Público no Código de Processo nos Tribunais Administrativos revisto: introdução a algumas questões” (P.314 e 315)

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