domingo, 4 de novembro de 2018

Contencioso Pré-Contratual Urgente


Introdução


              No presente artigo iremos analisar a temática do contencioso pré-contratual urgente. Para o fazermos de forma eficaz cabe primeiramente delimitar a sua esfera de ação na nossa ordem jurídica e, consequentemente dentro dos vários patamares do contencioso administrativo. De seguida, será pertinente analisar o seu regime exposto no Código do Procedimento Administrativo (doravante CPTA), onde será de notar as várias particularidades regime, tanto a nível processual, como a nível material, para finalmente podermos tirar algumas conclusões relevantes.

Enquadramento legal / Delimitação


              Partindo da figura geral do contencioso pré-contratual, podemos defini-lo como o conjunto de litígios emergentes do exercício, por parte da administração, das suas funções na área da contratação pública. Em função destes poderes e graças à posição contratual especial ocupada pela Administração Pública, o procedimento pré-contratual e a respetiva execução contratual estão sujeitos a regras específicas, consagradas no Código dos Contratos Públicos e em demais legislação avulsa.
              O grande número de regras a observar no procedimento que antecedem a celebração do contrato e a necessidade de escrutínio da atividade pública podem dar origem a litígios variados entre as partes contratuais. Não se tratando de contratos entre privados, a Administração surge como parte dotada de certos poderes e sujeita a deveres impostos pela necessidade do respeito pelos vários princípios constitucionais e administrativos que a limitam. Em virtude deste estatuto especial, cabe em primeiro lugar averiguar quais os tribunais que têm jurisdição para resolver os litígios que possam eventualmente surgir neste domínio.
              O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF) elucida-nos neste sentido. Pelo disposto no artigo 4º/nº1 alínea e), os contratos administrativos fazem parte no geral da jurisdição administrativa, tanto na sua fase pré-contratual como na sua execução. Posto isto, a jurisdição dos tribunais administrativos está assegurada e aplica-se o CPTA, pelo artigo 1º do mesmo, aos litígios emergentes dos contratos em questão.
              Para ficar claro qual o regime subjacente aos processos que iremos analisar neste artigo, cabe enunciar a divisão das formas de processo que os processos administrativos podem ter. Como sabemos, no nosso CPTA, os processos dividem-se entre não urgentes (regulados pelo Título II do código) e urgentes, estando a divisão enunciada no artigo 36º/nº1 (regulados pelo Título III). Na alínea c) do preceito referido, encontra-se o contencioso pré-contratual, cujo âmbito cabe definir pela remissão ao artigo 100º.
É aqui que nasce a divisão entre o contencioso pré-contratual urgente e não urgente. Como é feita esta divisão?

           Âmbito

             
              Decorre do artigo 100º/nº1 que apenas alguns contratos estão submetidos ao regime urgente estabelecido no CPTA, nomeadamente, os contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços. Todos os restantes contratos, seguem a tramitação comum regulada no Título II.
A divisão presente feita pela nossa legislação é alvo de alguma discussão na doutrina. Por um lado, pode defender-se que todos os contratos deviam estar em pé de igualdade e, portanto, submetidos ao regime de urgência, não apenas os tipos contratuais que as diretivas europeias impõem. Por outro lado, pode defender-se que os processos urgentes devem apenas estar limitados a um número residual de casos, apenas devendo alguns tipos contratuais mais importantes ter esta tramitação[1].

 

Razões Justificativas


              Olhando agora para as razões que justificam uma tutela urgente do contencioso pré-contratual, é de notar que o campo da contratação pública representa um campo especial do campo administrativo, implicando uma forte ponderação de interesses públicos, por um lado, e privados contratantes, pelo outro. Neste sentido, são fortes as necessidades de transparência e nos procedimentos de contratação pública, bem as de uma concorrência justa para os adjudicatários que contratam com entidades públicas[2]. Para além de fortes interesses a acautelar, estes também devem ser protegidos em tempo útil, dado à importância do fator temporal na contratação.
Na larga maioria dos casos, os potenciais adjudicatários não querem travar longas e custosas batalhas litigiosas que podem dar lugar à inutilidade do processo. Por outro lado, não é igualmente favorável para o interesse público nem para os privados a demora na celebração dos contratos e na sua execução, podendo decorrer vários prejuízos da demora típica nos processos que correm nos tribunais e da incerteza que eles trazem. Para assegurar o direito a uma tutela jurisdicional efetiva nos tribunais administrativos em prazo razoável (consagrado no artigo 2º/nº1 do CPTA e, no plano constitucional, no artigo 20º/nº4 da Constituição), o contencioso pré-contratual tem de ser tratado como um caso de especial atenção, de modo a assegurar a efetividade das decisões que irão surgir em litígios contratuais.
             

Regime


              O contencioso pré-contratual urgente retira o seu regime de vários pontos no CPTA. Assim, encontra-se regulado como qualquer outro processo urgente no artigo 36º, está regulado na especialidade nos artigos 100º e seguintes, e ainda obedece, como os restantes processos administrativos, ao regime geral do Título II.

           Geral

                           Consequências do caráter de processo urgente geral


              Partindo do artigo 36º, podemos notar desde já que este é de aplicação bastante residual neste domínio, dado que opera maioritariamente na falta de regulação específica. Deste modo, o contencioso pré-contratual urgente é alvo de uma regulação específica no Título III do código, derrogando o disposto no nº4 do artigo 36º, respeitante à tramitação do processo.
              Porém, do regime geral do artigo 36º ainda resultam algumas consequências iniciais da sua tramitação como processo urgente geral. Tal como os variadas ações administrativas urgentes e intimações presentes no artigo 36º do CPTA, existem vários modos de assegurar a celeridade dentro destes processos. Neste sentido, os prazos que subjazem às suas tramitações correm mesmo em período de férias judiciais e adquirem prioridade nas secretarias dos tribunais e no próprio julgamento, quando já existam condições para o processo prosseguir (artigo 36º/nº2 e 3).

                           Consequências do caráter de processo urgente específico


              Em primeira linha, é de referir que a impugnação com base no contencioso pré-contratual urgente não respeita a quaisquer invalidades surtidas no plano anterior à celebração do contrato, mas apenas aquelas que invalidem o ato de adjudicação.
Como resulta do disposto no artigo 97º, a tramitação geral do contencioso pré-contratual urgente segue a marcha do processo geral do título II (ação administrativa não urgente), com as especificidades de regime presentes nos restantes artigos da secção III do Título III. Deste modo, estes tipos de processos estão sujeitos a uma tramitação bastante rápida, para assegurar que o litígio não venha atrasar ainda mais a celebração e a possível execução contratual. A regra geral do artigo 102º/nº2 até elimina as alegações quando estas não sejam requeridas ou quando não surjam novas provas com a contestação, que deve ser feita até 20 dias após a citação (artigos 102º/nº3 a) e 82º/nº1), ao invés dos 30 dias do prazo para processos não urgentes (ou 15 dias nos restantes processos urgentes, pelo artigo 36º/nº4). Pronunciadas ambas as partes, e, havendo condições para a decisão, o juiz dispõe apenas de 10 dias para se pronunciar, por oposição aos 30 dias do regime geral (artigo 94º/nº1) ou, nos processos urgentes gerais, 15 dias (artigo 36º/nº4). Caso se entenda que o processo requer ainda uma rapidez mais acentuada, pode ser requerida ou decretada a opção por uma audiência pública para a discussão entre as partes, como postula o nº5 do artigo 102º.
Estando em causa litígios emergentes de relações pré-contratuais, pode suceder que o contrato venha a ser celebrado antes da instauração do processo. Caso tal aconteça, ainda é necessário tutelar a posição dos interessados, ainda que a execução do contrato já esteja em ação. Assim, o artigo 102º/nº4 permite a extensão do objeto do processo à impugnação do próprio contrato. Contudo, a base da impugnação deve tratar-se de invalidades procedimentais, que são a fundação do contencioso pré-contratual urgente[3].
É ainda de referir neste âmbito que não cabem neste tipo de processos apenas as ilegalidades relativas ao procedimento stricto sensu, mas também dos vários documentos que contenham especificações técnicas em que se baseiam a formação dos contratos em questão, como refere o artigo 103º/1. A ratio subjacente não é difícil de entender, ilegalidades relativas a, por exemplo, especificações técnicas inseridas em algum documento constante do procedimento podem ter consequências diretas em decisões no plano pré-contratual, justificando-se o mesmo nível de tutela que existe para os atos administrativos relativos a tais contratos.

           Especificidades Processuais


              No domínio do regime do contencioso pré-contratual há ainda dois aspetos a referir, específicos e adequados à sua tramitação.

                                         Efeito suspensivo automático


              Uma particularidade interessante do regime a que está sujeito o contencioso pré-contratual urgente é, sem dúvida, o efeito suspensivo automático do contrato, no caso da impugnação de atos adjudicatórios, que se encontra consagrado no artigo 103º-A. Com a mera impugnação do ato, a celebração e, caso já esteja a acontecer, a execução do contrato são desde logo suspensas. Por um lado, pode-se considerar o regime agressivo, tendo em conta que não requer a prova e alegação de uma necessidade de travar a celebração ou execução, mas por outro lado, é de relembrar que todo o processo se passa numa dimensão temporal bastante reduzida. Assim, mesmo com o efeito suspensivo, a redução dos prazos faz com que exista um maior equilíbrio.
              Porém, a outra parte não está completamente desprotegida, podendo pedir o levantamento de tal efeito suspensivo, ao invocar o artigo 103º-A/nº2. Tal incidente encontra justificação na necessidade da prossecução do interesse público, o caráter premente de certos contratos públicos e o prejuízo que pode decorrer da demora do processo, ainda que este se passe num período rápido. São assim requisitos para o levantamento a alegação, por parte da entidade demandada e os contrainteressados, o grave prejuízo para o interesse público ou consequências lesivas desproporcionadas para os restantes interesses em jogo, nomeadamente, os potenciais adjudicatários.
Posto isto, o levantamento está dependente da demonstração de um peruculum in mora, revestindo assim um caráter cautelar[4]. Como sucede nos procedimentos cautelares, há então que demonstrar o dano decorrente da demora, bem como o juiz tem de ponderar os interesses prevalecentes em jogo, como decorre do artigo 120º/nº2 e do artigo 103º-A/nº4. Isto significa que mesmo havendo danos decorrentes de grave prejuízo para interesses públicos ou consequências lesivas, estes têm de ser superiores aos danos de interesse público que resultam da conservação do efeito suspensivo, para o levantamento operar. No seu manual, o Professor Mário Aroso de Almeida, refere que, na sua perspetiva, o levantamento não deve operar apenas numa ótica de comparação de danos, uma vez que, existem sempre as exigências da gravidade e da desproporcionalidade têm de estar sempre presentes, não bastando que os danos da conservação do efeito suspensivo sejam apenas ligeiramente menores para surtir o levantamento[5].
Por último, quanto ao prazo para exercer o pedido de levantamento, o CPTA não refere qualquer prazo. Não se tratando de um ato processual inserido na tramitação, mas sim de um ato dotado de iniciativa, não é de aplicar o prazo supletivo do artigo 102/nº3 alínea c), de duração de cinco dias. Acresce ainda o argumento apresentado pelo Professor Mário Aroso de Almeida, que refere que o prazo de cinco dias para requerer o levantamento não teria sentido se o prazo para a sua aprovação ou recusa fosse o dobro, criando um resultado incongruente[6]. Uma vez requerido o levantamento, a parte demandada têm o direito de exercer o contraditório no prazo de sete dias.

                                         Medidas provisórias


              Uma mudança que veio surgir com a reforma do CPTA de 2015 foi a remoção da possibilidade de processos cautelares em processos relativos à formação de contratos, operada pelo artigo 132º/nº1[7]. Como acautelar os processos que não digam respeito a atos administrativos de adjudicação? Nasce assim a figura das medidas provisórias do artigo 103º-B, como possível incidente na tramitação do contencioso pré-contratual.
              O instituto destina-se a impedir a criação de uma “situação de fato consumado ou já não ser possível retomar o procedimento pré-contratual para determinar quem nele seria escolhido como adjudicatário”, como refere a letra da lei no artigo 103º-B/nº1. A tramitação do incidente é referida em termos muito amplos no nº2 do mesmo artigo, devendo apenas ser observada a complexidade e urgência do processo. Isto significa que o juíz tem uma larga margem de liberdade quanto ao desenrolar do incidente, sempre obedecendo ao princípio do contraditório e respeitando a igualdade das partes.
              Quando à decisão da aprovação ou recusa da medida provisória, esta está dependente, pelo disposto no nº3, de uma mera ponderação de danos entre os que resultariam, para a parte demandada, o interesse púbico e os contrainteressados, da adoção da medida e os danos resultantes da sua não adoção. Caso os primeiros sejam superiores aos segundos, a aplicação da medida deve ser recusada e o processo deverá seguir sem ela. O regime apresenta assim um modo de ação mais fraco para os casos em que o ato de adjudicação ainda não foi praticado, mas, ainda assim, há necessidade de proteger interesses públicos, os potenciais adjudicatários e, se possível, retardar o ato de adjudicação, por forma a evitar a consumação do facto.

Conclusão

             
              Em sede de notas conclusivas, podemos referir que é clara a exigência de uma tramitação urgente nos processos do contencioso pré-contratual. O mundo da contratação pública releva-se adverso à demora e à burocracia administrativa e, em caso de litígio, judicial. Tem de estar em ação um mecanismo que resolva questões deste género, tendo em conta a grande dimensão de regulação, ao invés da regulação da contratação entre privados. Pelo lado dos privados que sejam potenciais adjudicatários, é fundamental levantar o véu da insegurança e da incerteza quando a invalidades no procedimento. Quando já exista ato de adjudicação e possível execução, por sua vez, é importante garantir ao privado adjudicatário a execução em tempo útil, bem como garantir a execução em nome do interesse público.
              No entanto, é ainda de notar que a celeridade destes processos não significa o desrespeito pelos princípios subjacentes ao contencioso administrativo quando o processo os possa por em risco. Neste sentido fala-se, por exemplo, na defesa do interesse público no levantamento do efeito suspensivo automático (artigo 103º-A/nº2), ou ainda na defesa do princípio do contraditório na tramitação flexível na adoção de medidas provisórias (artigo 103º-B/nº2).  

Francisco Horta Caetano

Bibliografia

ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa: Lições, 2015, Almedina


[1] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa: Lições, 2015, Almedina, pag. 221
[2] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa: Lições, 2015, Almedina, pag. 219
[3] ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa: Lições, 2015, Almedina, pag. 221
[4] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina, pag. 397
[5] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina, pag. 398
[6] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina, pag. 396
[7] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina, pag. 398

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