Introdução
No
presente artigo iremos analisar a temática do contencioso pré-contratual
urgente. Para o fazermos de forma eficaz cabe primeiramente delimitar a sua
esfera de ação na nossa ordem jurídica e, consequentemente dentro dos vários
patamares do contencioso administrativo. De seguida, será pertinente analisar o
seu regime exposto no Código do Procedimento Administrativo (doravante CPTA),
onde será de notar as várias particularidades regime, tanto a nível processual,
como a nível material, para finalmente podermos tirar algumas conclusões
relevantes.
Enquadramento legal / Delimitação
Partindo
da figura geral do contencioso pré-contratual, podemos defini-lo como o
conjunto de litígios emergentes do exercício, por parte da administração, das
suas funções na área da contratação pública. Em função destes poderes e graças
à posição contratual especial ocupada pela Administração Pública, o
procedimento pré-contratual e a respetiva execução contratual estão sujeitos a
regras específicas, consagradas no Código dos Contratos Públicos e em demais
legislação avulsa.
O
grande número de regras a observar no procedimento que antecedem a celebração
do contrato e a necessidade de escrutínio da atividade pública podem dar origem
a litígios variados entre as partes contratuais. Não se tratando de contratos
entre privados, a Administração surge como parte dotada de certos poderes e
sujeita a deveres impostos pela necessidade do respeito pelos vários princípios
constitucionais e administrativos que a limitam. Em virtude deste estatuto
especial, cabe em primeiro lugar averiguar quais os tribunais que têm
jurisdição para resolver os litígios que possam eventualmente surgir neste
domínio.
O
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF) elucida-nos
neste sentido. Pelo disposto no artigo 4º/nº1 alínea e), os contratos
administrativos fazem parte no geral da jurisdição administrativa, tanto na sua
fase pré-contratual como na sua execução. Posto isto, a jurisdição dos
tribunais administrativos está assegurada e aplica-se o CPTA, pelo artigo 1º do
mesmo, aos litígios emergentes dos contratos em questão.
Para
ficar claro qual o regime subjacente aos processos que iremos analisar neste
artigo, cabe enunciar a divisão das formas de processo que os processos
administrativos podem ter. Como sabemos, no nosso CPTA, os processos dividem-se
entre não urgentes (regulados pelo Título II do código) e urgentes, estando a
divisão enunciada no artigo 36º/nº1 (regulados pelo Título III). Na alínea c)
do preceito referido, encontra-se o contencioso pré-contratual, cujo âmbito
cabe definir pela remissão ao artigo 100º.
É aqui que
nasce a divisão entre o contencioso pré-contratual urgente e não urgente. Como
é feita esta divisão?
Âmbito
Decorre
do artigo 100º/nº1 que apenas alguns contratos estão submetidos ao regime
urgente estabelecido no CPTA, nomeadamente, os contratos de empreitada de obras
públicas, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de
aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços. Todos os restantes
contratos, seguem a tramitação comum regulada no Título II.
A divisão presente
feita pela nossa legislação é alvo de alguma discussão na doutrina. Por um
lado, pode defender-se que todos os contratos deviam estar em pé de igualdade e,
portanto, submetidos ao regime de urgência, não apenas os tipos contratuais que
as diretivas europeias impõem. Por outro lado, pode defender-se que os
processos urgentes devem apenas estar limitados a um número residual de casos,
apenas devendo alguns tipos contratuais mais importantes ter esta tramitação[1].
Razões Justificativas
Olhando
agora para as razões que justificam uma tutela urgente do contencioso
pré-contratual, é de notar que o campo da contratação pública representa um
campo especial do campo administrativo, implicando uma forte ponderação de
interesses públicos, por um lado, e privados contratantes, pelo outro. Neste
sentido, são fortes as necessidades de transparência e nos procedimentos de
contratação pública, bem as de uma concorrência justa para os adjudicatários
que contratam com entidades públicas[2].
Para além de fortes interesses a acautelar, estes também devem ser protegidos
em tempo útil, dado à importância do fator temporal na contratação.
Na larga
maioria dos casos, os potenciais adjudicatários não querem travar longas e
custosas batalhas litigiosas que podem dar lugar à inutilidade do processo. Por
outro lado, não é igualmente favorável para o interesse público nem para os
privados a demora na celebração dos contratos e na sua execução, podendo
decorrer vários prejuízos da demora típica nos processos que correm nos
tribunais e da incerteza que eles trazem. Para assegurar o direito a uma tutela
jurisdicional efetiva nos tribunais administrativos em prazo razoável
(consagrado no artigo 2º/nº1 do CPTA e, no plano constitucional, no artigo
20º/nº4 da Constituição), o contencioso pré-contratual tem de ser tratado como
um caso de especial atenção, de modo a assegurar a efetividade das decisões que
irão surgir em litígios contratuais.
Regime
O
contencioso pré-contratual urgente retira o seu regime de vários pontos no CPTA.
Assim, encontra-se regulado como qualquer outro processo urgente no artigo 36º,
está regulado na especialidade nos artigos 100º e seguintes, e ainda obedece,
como os restantes processos administrativos, ao regime geral do Título II.
Geral
Consequências
do caráter de processo urgente geral
Partindo
do artigo 36º, podemos notar desde já que este é de aplicação bastante residual
neste domínio, dado que opera maioritariamente na falta de regulação
específica. Deste modo, o contencioso pré-contratual urgente é alvo de uma
regulação específica no Título III do código, derrogando o disposto no nº4 do
artigo 36º, respeitante à tramitação do processo.
Porém,
do regime geral do artigo 36º ainda resultam algumas consequências iniciais da
sua tramitação como processo urgente geral. Tal como os variadas ações
administrativas urgentes e intimações presentes no artigo 36º do CPTA, existem
vários modos de assegurar a celeridade dentro destes processos. Neste sentido,
os prazos que subjazem às suas tramitações correm mesmo em período de férias
judiciais e adquirem prioridade nas secretarias dos tribunais e no próprio
julgamento, quando já existam condições para o processo prosseguir (artigo
36º/nº2 e 3).
Consequências
do caráter de processo urgente específico
Em
primeira linha, é de referir que a impugnação com base no contencioso pré-contratual
urgente não respeita a quaisquer invalidades surtidas no plano anterior à
celebração do contrato, mas apenas aquelas que invalidem o ato de adjudicação.
Como resulta
do disposto no artigo 97º, a tramitação geral do contencioso pré-contratual
urgente segue a marcha do processo geral do título II (ação administrativa não
urgente), com as especificidades de regime presentes nos restantes artigos da
secção III do Título III. Deste modo, estes tipos de processos estão sujeitos a
uma tramitação bastante rápida, para assegurar que o litígio não venha atrasar
ainda mais a celebração e a possível execução contratual. A regra geral do
artigo 102º/nº2 até elimina as alegações quando estas não sejam requeridas ou
quando não surjam novas provas com a contestação, que deve ser feita até 20
dias após a citação (artigos 102º/nº3 a) e 82º/nº1), ao invés dos 30 dias do
prazo para processos não urgentes (ou 15 dias nos restantes processos urgentes,
pelo artigo 36º/nº4). Pronunciadas ambas as partes, e, havendo condições para a
decisão, o juiz dispõe apenas de 10 dias para se pronunciar, por oposição aos
30 dias do regime geral (artigo 94º/nº1) ou, nos processos urgentes gerais, 15
dias (artigo 36º/nº4). Caso se entenda que o processo requer ainda uma rapidez
mais acentuada, pode ser requerida ou decretada a opção por uma audiência
pública para a discussão entre as partes, como postula o nº5 do artigo 102º.
Estando em
causa litígios emergentes de relações pré-contratuais, pode suceder que o
contrato venha a ser celebrado antes da instauração do processo. Caso tal
aconteça, ainda é necessário tutelar a posição dos interessados, ainda que a
execução do contrato já esteja em ação. Assim, o artigo 102º/nº4 permite a
extensão do objeto do processo à impugnação do próprio contrato. Contudo, a
base da impugnação deve tratar-se de invalidades procedimentais, que são a
fundação do contencioso pré-contratual urgente[3].
É ainda de
referir neste âmbito que não cabem neste tipo de processos apenas as
ilegalidades relativas ao procedimento stricto sensu, mas também dos vários
documentos que contenham especificações técnicas em que se baseiam a formação
dos contratos em questão, como refere o artigo 103º/1. A ratio subjacente não é
difícil de entender, ilegalidades relativas a, por exemplo, especificações
técnicas inseridas em algum documento constante do procedimento podem ter
consequências diretas em decisões no plano pré-contratual, justificando-se o
mesmo nível de tutela que existe para os atos administrativos relativos a tais
contratos.
Especificidades Processuais
No
domínio do regime do contencioso pré-contratual há ainda dois aspetos a
referir, específicos e adequados à sua tramitação.
Efeito
suspensivo automático
Uma
particularidade interessante do regime a que está sujeito o contencioso
pré-contratual urgente é, sem dúvida, o efeito suspensivo automático do
contrato, no caso da impugnação de atos adjudicatórios, que se encontra
consagrado no artigo 103º-A. Com a mera impugnação do ato, a celebração e, caso
já esteja a acontecer, a execução do contrato são desde logo suspensas. Por um
lado, pode-se considerar o regime agressivo, tendo em conta que não requer a
prova e alegação de uma necessidade de travar a celebração ou execução, mas por
outro lado, é de relembrar que todo o processo se passa numa dimensão temporal
bastante reduzida. Assim, mesmo com o efeito suspensivo, a redução dos prazos
faz com que exista um maior equilíbrio.
Porém,
a outra parte não está completamente desprotegida, podendo pedir o levantamento
de tal efeito suspensivo, ao invocar o artigo 103º-A/nº2. Tal incidente
encontra justificação na necessidade da prossecução do interesse público, o
caráter premente de certos contratos públicos e o prejuízo que pode decorrer da
demora do processo, ainda que este se passe num período rápido. São assim
requisitos para o levantamento a alegação, por parte da entidade demandada e os
contrainteressados, o grave prejuízo para o interesse público ou consequências
lesivas desproporcionadas para os restantes interesses em jogo, nomeadamente,
os potenciais adjudicatários.
Posto isto, o
levantamento está dependente da demonstração de um peruculum in mora, revestindo assim um caráter cautelar[4].
Como sucede nos procedimentos cautelares, há então que demonstrar o dano
decorrente da demora, bem como o juiz tem de ponderar os interesses
prevalecentes em jogo, como decorre do artigo 120º/nº2 e do artigo 103º-A/nº4.
Isto significa que mesmo havendo danos decorrentes de grave prejuízo para interesses
públicos ou consequências lesivas, estes têm de ser superiores aos danos de
interesse público que resultam da conservação do efeito suspensivo, para o
levantamento operar. No seu manual, o Professor Mário Aroso de Almeida, refere
que, na sua perspetiva, o levantamento não deve operar apenas numa ótica de
comparação de danos, uma vez que, existem sempre as exigências da gravidade e
da desproporcionalidade têm de estar sempre presentes, não bastando que os
danos da conservação do efeito suspensivo sejam apenas ligeiramente menores
para surtir o levantamento[5].
Por último, quanto
ao prazo para exercer o pedido de levantamento, o CPTA não refere qualquer
prazo. Não se tratando de um ato processual inserido na tramitação, mas sim de
um ato dotado de iniciativa, não é de aplicar o prazo supletivo do artigo
102/nº3 alínea c), de duração de cinco dias. Acresce ainda o argumento
apresentado pelo Professor Mário Aroso de Almeida, que refere que o prazo de
cinco dias para requerer o levantamento não teria sentido se o prazo para a sua
aprovação ou recusa fosse o dobro, criando um resultado incongruente[6].
Uma vez requerido o levantamento, a parte demandada têm o direito de exercer o
contraditório no prazo de sete dias.
Medidas
provisórias
Uma
mudança que veio surgir com a reforma do CPTA de 2015 foi a remoção da
possibilidade de processos cautelares em processos relativos à formação de
contratos, operada pelo artigo 132º/nº1[7].
Como acautelar os processos que não digam respeito a atos administrativos de
adjudicação? Nasce assim a figura das medidas provisórias do artigo 103º-B,
como possível incidente na tramitação do contencioso pré-contratual.
O
instituto destina-se a impedir a criação de uma “situação de fato consumado ou
já não ser possível retomar o procedimento pré-contratual para determinar quem
nele seria escolhido como adjudicatário”, como refere a letra da lei no artigo
103º-B/nº1. A tramitação do incidente é referida em termos muito amplos no nº2 do
mesmo artigo, devendo apenas ser observada a complexidade e urgência do
processo. Isto significa que o juíz tem uma larga margem de liberdade quanto ao
desenrolar do incidente, sempre obedecendo ao princípio do contraditório e
respeitando a igualdade das partes.
Quando
à decisão da aprovação ou recusa da medida provisória, esta está dependente,
pelo disposto no nº3, de uma mera ponderação de danos entre os que resultariam,
para a parte demandada, o interesse púbico e os contrainteressados, da adoção
da medida e os danos resultantes da sua não adoção. Caso os primeiros sejam
superiores aos segundos, a aplicação da medida deve ser recusada e o processo
deverá seguir sem ela. O regime apresenta assim um modo de ação mais fraco para
os casos em que o ato de adjudicação ainda não foi praticado, mas, ainda assim,
há necessidade de proteger interesses públicos, os potenciais adjudicatários e,
se possível, retardar o ato de adjudicação, por forma a evitar a consumação do
facto.
Conclusão
Em
sede de notas conclusivas, podemos referir que é clara a exigência de uma tramitação
urgente nos processos do contencioso pré-contratual. O mundo da contratação
pública releva-se adverso à demora e à burocracia administrativa e, em caso de
litígio, judicial. Tem de estar em ação um mecanismo que resolva questões deste
género, tendo em conta a grande dimensão de regulação, ao invés da regulação da
contratação entre privados. Pelo lado dos privados que sejam potenciais
adjudicatários, é fundamental levantar o véu da insegurança e da incerteza
quando a invalidades no procedimento. Quando já exista ato de adjudicação e
possível execução, por sua vez, é importante garantir ao privado adjudicatário
a execução em tempo útil, bem como garantir a execução em nome do interesse
público.
No
entanto, é ainda de notar que a celeridade destes processos não significa o desrespeito
pelos princípios subjacentes ao contencioso administrativo quando o processo os
possa por em risco. Neste sentido fala-se, por exemplo, na defesa do interesse público
no levantamento do efeito suspensivo automático (artigo 103º-A/nº2), ou ainda
na defesa do princípio do contraditório na tramitação flexível na adoção de medidas
provisórias (artigo 103º-B/nº2).
Francisco Horta Caetano
Bibliografia
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa: Lições, 2015, Almedina
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa: Lições, 2015, Almedina
[1] ANDRADE,
José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa:
Lições, 2015, Almedina, pag. 221
[2] ANDRADE,
José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa:
Lições, 2015, Almedina, pag. 219
[3] ANDRADE,
José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa:
Lições, 2015, Almedina, pag. 221
[4] ALMEIDA,
Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo,
2017, Almedina, pag. 397
[5] ALMEIDA,
Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo,
2017, Almedina, pag. 398
[6] ALMEIDA,
Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo,
2017, Almedina, pag. 396
[7] ALMEIDA,
Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo,
2017, Almedina, pag. 398
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