domingo, 4 de novembro de 2018

Princípio Pro Actione

Princípio Pro Actione


Nos termos do artigo 7.º do Código de Procedimento Administrativo encontra-se consagrado o princípio pro actione, muitas vezes denominado pela doutrina portuguesa de princípio a favor do processo ou de favorecimento do processo.

Trata-se de um princípio que não é exclusivo do contencioso administrativo, sendo antes um princípio que vincula as mais diversas áreas do ordenamento jurídico português.

O Professor Vasco Pereira da Silva apresenta como protagonista da formulação e desenvolvimento do Contencioso Administrativo dois momentos, os quais designa por traumas1. Em primeiro lugar o nascimento conturbado na esteira da Revolução Francesa, no séc. XVIII, no quadro da qual se proclamavam os ideais do liberalismo e portanto, consequentemente, a consagração do modelo constitucional do liberalismo político, assente em duas realidades, por um lado a separação de poderes, por outro a garantia dos direitos individuais. Acontece que na verdade o que foi feito foi precisamente o contrário. Negou-se a separação de poderes, os tribunais comuns ficaram proibidos de julgar a Administração, a própria actuação do Conselho de Estado tinha como objectivo evitar a perturbação da Administração e com isto é criado um privilégio de foro para a Administração.

Os ideais proclamados na Revolução Francesa acabaram por não se ver concretizados na prática, tendo-se originado uma situação completamente oposta.

O segundo trauma do contencioso Administrativo tem a ver com o caso de Agnès Blanco, uma sentença do tribunal de conflitos, em 1873, que ditou a recusa a um pedido de indemnização por parte de uns pais que viram a sua filha de 5 anos ficar com lesões profundas como resultado de um atropelamento por um vagão de Companhia Nacional da Manufatura do Tabaco, empresa pública. O vagão estava a ser empurrado por quatro funcionários e, em virtude do atropelamento, uma das pernas de Agnès é amputada.

O cerne deste caso consistia em saber se aquela actividade, desenvolvida pelos 4 funcionários, consistiria ou não num acto administrativo e consequentemente se a Administração poderia ser responsabilidade pelo sucedido. O tribunal de conflitos, chamado a resolver a questão do conflitos de jurisdições negativo acaba por concluir que é da competência da justiça administrativa a resolução dos casos de responsabilidade civil da administração como era o caso de Agnès Blanco, contudo não existiria uma norma aplicável a estas situações e a Administração não deveria estar submetida às regras jurídicas aplicáveis aos demais, seria necessário uma protecção especial da Administração.2

O Acórdão do Tribunal de conflitos corresponde a uma concepção autoritária, que apesar de ter surgido em França, acabou por se desenvolver por toda a Europa e que ditou o surgimento do Contencioso Administrativo associado a situações de denegação da justiça.

Inicialmente o que caracterizava o Contencioso era a necessidade de salvaguardar os interesses privilégios da Administração e não a tutela dos interesses dos particulares contra ingerências da mesma.

Por estas razões se fala da infância difícil do Contencioso Administrativo e das marcas que a mesma deixou no que respeita ao seu desenvolvimento, nos vários ordenamentos jurídicos.

Em Portugal, por influência do sistema francês, o contencioso também surge associado à garantia do poder da Administração, em detrimento da protecção particulares, surge associado a situações de denegação da justiça e o princípio que com este trabalho pretendo analisar acabar por ser uma “reviravolta” no paradigma do contencioso Administrativo, sendo este uma forma de tutela dos cidadãos.
O passar dos anos foi acompanhado pelo desenvolvimento do Contencioso Administrativo, marcado por várias reformas que tinham também como objectivo, entre muitos outros, acabar com o formalismo excessivo associado ao procedimento administrativo, caracterizado por dúvidas processuais difíceis de ultrapassar.
As Reformas de 1984/1985 e de 2002/2004 foram significativamente importantes no que respeita ao objectivo de eliminar certos elementos que prejudicavam o desenvolvimento do processo, foi através destas reformas que muitas fraquezas processuais, que dificultavam o acesso ao direito, puderam ser corrigidas. Anteriormente a Justiça administrativa estaria apoiada na lógica do primado da forma sob a substância e como tal pela impossibilidade de se assegurar um processo em que o formalismo não obstruísse a possibilidade de o tribunal se pronunciar sobre o mérito da causa e portanto as reformas foram importantes para que tal prática se invertesse.

O Direito Administrativo e o Direito Constitucional encontram-se numa relação de dependência, quer no domínio substantivo quer no domínio processual o que acaba por fazer do Contencioso Administrativo uma espécie de «Direito material concretizado». A evolução de uma das áreas irá requerer a evolução da outra e portanto vão-se desenvolvendo na esteira desta relação de dependência mútua.

Com o surgimento do Estado de Direito, as constituições passaram a compreender, ao lado da matéria de organização, funcionamento e procedimento da Administração Pública, regras sobre a natureza e a organização dos tribunais competentes para o julgamento dos litígios administrativos, regras sobre direitos fundamentais dos cidadãos, estrutura e função do processo e regras sobre os poderes do juiz.

O Professor Vasco Pereira da Silva faz referência às várias fases evolutivas do Contencioso Administrativo e refere a fase da “confirmação ou crisma” como aquela em que se verificou uma mudança de paradigma caracterizada pela afirmação da função e natureza subjectivas do Contencioso Administrativo, através da garantia de várias direitos fundamentais, nomeadamente do direito à protecção plena e efectiva dos particulares.

O fenómeno da constitucionalização, que se verificou um pouco por toda a Europa, permitiu que os direitos fundamentais fossem entendidos como direitos subjectivos “com eficácia procedimental”3, o que possibilitou a consolidação do direito de acesso aos tribunais, para tutela de quaisquer direitos independentemente de se tratar, ou não, de um direito fundamental. A constitucionalização contribuiu para se consagrar a protecção dos particulares.

Actualmente, algumas disposições da Constituição Portuguesa de 1976 são manifestações directas desta alteração de paradigma e portanto manifestações de um contencioso que abandonou a visão autoritária de uma Administração soberana em face dos particulares, agora direccionado para a tutela penal efectiva dos direitos dos particulares, nas suas relações jurídicas administrativas designadamente, o artigo 202.º, n,º 2, relativo à função jurisdicional e os números 4 e 5 do art. 268.º, sobre direitos e garantias dos administrados.

Outra manifestação relevante presente na Constituição da República Portuguesa (CRP) encontra-se consagrada no artigo 20.º, relativa ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, que se prende com o dever de se assegurar aos particulares a existência de meios aptos a defender os seus direitos e interesses, dignos de protecção legal.

A existência de elementos condicionantes ao desenvolvimento do processo administrativo, através da imposição de formalismos excessivos, acabava de certo modo por colidir com o direito fundamental de acesso à justiça, na medida em que em muitos dos casos não poderia não haver lugar à continuação do processo pela existência de irregularidades que ditavam a absolvição da instância e a desprotecção do interesse em juízo.

A proclamação dos direitos sociais carece de ser acompanhada por um direito de acesso efectivo aos tribunais, caso contrário tratar-se-á de uma incoerência a nível jurisdicional, no sentido em que por um lado se proclama a existência de determinados direitos e por outro os meios existentes para a sua defesa não permitem a sua tutela efectiva. Assim sendo, é notável a necessidade de coordenação entre o Direito Constitucional e o Contencioso.

Actualmente existem nos diplomas legais, nomeadamente no Código do Processo Administrativo, bem como no Código do Processo Civil disposições que pretendem garantir que o tribunal se venha a pronunciar sobre o mérito da causa, evitando que o processo possa ficar comprometido pelo incumprimento de formalidades processuais, que acaba por ser bastante oneroso para uma das partes, que muitas vezes não visam tutelar qualquer interesse digno de protecção e acabam apenas por ser uma obstrução à continuação do processo. Em Processo Civil o princípio que aqui se pretende analisar toma a designação de princípio da prevalência da forma sobre a substância.

O Princípio Pro Actione4 é um dos resultados da necessidade de garantir o acesso, dos particulares, aos tribunais.
De uma forma geral, o que se pretende com o favorecimento do processo é que a interpretação e aplicação das normas processuais, feitas pelo tribunal, não fiquem condicionadas por uma visão demasiado formalista5, que condicione a sua continuação, e se possa assegurar aos particulares o julgamento do litígio e a obtenção de uma decisão de mérito.

Trata-se de um corolário do princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no já referido artigo 20.º da CRP. Como referem os professores Mário e Rodrigo Esteves Oliveira, na análise que fizeram ao Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos (CPTA), será uma espécie de “válvula de escape” que permite que o princípio da tutela jurisdicional efectiva possa actuar plenamente.

Diferentemente do entendimento que já existiu na doutrina, hoje em dia, o princípio do favorecimento do processo está consagrado para todo o processo, não se cingindo apenas aos pressupostos processuais que respeitam à instauração da acção. Trata-se de um princípio que vale antes para todas as disposições processuais relativas, não só à constituição como, ao desenvolvimento e extinção da instância judicial.

Como se trata de um princípio que prima pelo favorecimento do processo, como um todo, em caso de dúvida sobre uma questão de natureza processual que pudesse dar origem à absolvição da instância, o tribunal deve decidir no sentido da admissibilidade do processo.

Este princípio funciona em todos os domínios do processo, mesmo quando se trate de normas peremptórias como aquelas que dizem respeito aos prazos de propositura da acção e tramitação processual.

Segundo a doutrina tradicional, os “princípios de favor” apenas seriam aplicáveis em caso de dúvida. O legislador do CPTA actual optou por não condicionar a interpretação das normas processuais, em sentido favorável à obtenção da decisão de mérito, à existência desse requisito de existência de dúvidas quanto às normas a aplicar, e portanto apesar do entendimento anterior ir neste sentido, o legislador acabou por não fazer esta referência.

Os Professores Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira entendem que este princípio deve traduzir essencialmente uma inclinação de princípio do juiz, ou seja, deve corresponder à preocupação do juiz em olhar para as normas processuais que disciplinam o processo como um meio de realizar a tutela jurisdicional efectiva, e não como um obstáculo6.

Para além das referidas vantagens da sua consagração, este princípio é também uma forma de asseverar o princípio da celeridade processual, característico do processo civil, transposto para o direito administrativo por força do art. 1.º do CPTA. A celeridade processual serve um interesse comum ao da economia processual e revela-se na necessidade de organizar o processo para que se chegue ao seu termo tão rápido quanto possível.
Ao evidenciar a necessidade de se dar continuidade aos processos, sempre que as irregularidades formais existentes não sobrelevem sobre o conhecimento da questão de fundo, o princípio acaba também por evitar que as acções se arrastem por anos e que sejam intentadas por mais do que uma vez, o que tem a consequência de se chegar a um veredicto final mais depressa. Se das irregularidades resultasse imediatamente a absolvição da instância aumentar-se-ia as delongas do processo, pelo facto de a acção quando intentada de novo seguir a tramitação normal como se da primeira vez se tratasse.

O tribunal por várias vezes se pronunciou no sentido da necessidade de atender ao princípio pro actione e o Acórdão nº 12692/15, de 16/12/2015 é um dos vários exemplos na jurisprudência.
O acórdão em questão é relativo a um recurso jurisdicional de uma sentença proferida pelo tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, interposto pelo Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, em representação da associada M, no âmbito de um processo cautelar instaurado contra o Ministério das Finanças e da Administração Pública.

A sentença do Tribunal de Círculo foi no sentido de declarar improcedente o pedido da autora com fundamento na ilegitimidade passiva por “por preterição de litisconsórcio necessário passivo, por não terem sido indicados (…) contra-interessados.” 7

O sindicato dos trabalhadores dos impostos instaurou uma providência cautelar conservatória com o intuito de suspender o Despacho proferido pelo Subdirector-Geral, a 18/02/2015, através do qual se autorizava o movimento extraordinário de transferências nos cargos de chefia tributária, referente aos pedidos apresentados no período compreendido entre 28/01/2015 a 03/02/2015.

Consta do artigo 13.º do requerimento inicial a pretensão de obter a suspensão da eficácia do despacho mencionado, com o objectivo de permitir, em tempo útil, assegurar que a vaga que M pretendia ocupar não fosse preenchida portanto, de forma a garantir o direito da associada em ser colocada numa vaga aberta e ainda existente.

Na sentença, proferida a 7/08/2015, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa decidiu que o pedido não seria procedente e como tal, optou por não decretar a suspensão de eficácia do despacho com fundamento na ilegitimidade passiva. O artigo 114º, n.º3, alínea d) do Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos dispõe que no requerimento deve constar a identificação dos contra-interessados, os quais possam vir a ser prejudicados pela providência cautelar.

A falta de indicação dos contra-interessados constitui uma questão que obsta ao conhecimento do objecto do processo, trata-se de uma irregularidade formal, sendo que nos termos do artigo 87.º, n.º1, alínea a) do CPTA, após a falta do pressuposto ser oficiosamente apreciada pelo juiz do processo, o autor seria convidado a sanar a falta do pressuposto. No caso de existir notificação por parte do tribunal e inércia do autor no que respeita à possibilidade que lhe foi dada de preencher o requisito em falta a consequência será a absolvição da instância, o mesmo resulta do disposto nos artigos 88.º, n.º2 e n.º4 e artigo 89.º, n.º1, alínea f) do CPTA.

Também no Código de Processo Civil existem disposições neste sentido, nomeadamente os artigos 576.º, n.º2 e artigo 577.º, alínea e) que convencionam que à falta de indicação dos contra-interessados corresponderá uma excepção dilatória, que não sendo sanada conduzirá à absolvição da instância, tais disposições aplicar-se-ão também ao procedimento administrativo por força do artigo 1.º do CPTA.

Também dos artigos 88.º, n.º2 e n.º4 e artigo 89.º, n.º1, alínea f) do CPTA resulta que da falta de suprimento da excepção dilatória, após notificação do tribunal para o efeito a consequência será a absolvição da instância.

A necessidade de indicar os contra-interessados no âmbito do processo cautelar prende-se com a possibilidade destes poderem ver a sua esfera jurídica afectada no caso de o pedido ser declarado procedente e, como forma de tutelar os seus interesses e garantir o princípio do contraditório. Neste caso suspensão da eficácia do despacho prejudicaria todos os trabalhadores que tivessem requerido transferência, uma vez que veriam suspensos efeitos com os quais já contavam vir a beneficiar, tratar-se-ia de uma frustração das suas expectativas.

Por este motivo se torna tão importante a identificação dos mesmos e a consequência gravosa no caso de a irregularidade não ser sanada.

Uma das questões levantadas pelo requerente teria a ver com a existência efectiva de contra-interessados, sendo que no entender do mesmo não existiriam no caso, contudo o Tribunal Central Administrativo do Sul veio a concluir à semelhança do que já tinha sido proferido pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
A grande questão que se colocou estava relacionada com um dever que o tribunal tinha com o qual não cumpriu e que por sua vez acabou por constituir também um entrave ao desenvolvimento do processo. Confirmando-se a existência de contra-interessados na acção é unânime o entendimento segundo o qual estes teriam de ser indicados, mas na sua ausência estava o tribunal incumbido de, em sede de apreciação liminar, determinar a notificação do requerente para suprir a falta do requisito processual.
No caso em análise apesar de o tribunal não ter notificado o autor em sede de despacho liminar poderia tê-lo feito antes de proferida a sentença, contudo não o fez e a questão da “ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio”8 nunca fora levantada a não ser na sentença quando o pedido do autor acabou por ser recusado.

O princípio pro actione ou princípio do favorecimento do processo, numa situação destas, impõe ao Tribunal uma interpretação que favoreça o acesso ao direito e simultaneamente que se evitem situações de denegação de justiça, sendo assim impõe-se ao Tribunal que, mesmo depois de ultrapassada a fase de despacho liminar, notifique em momento posterior a parte. O objectivo deste princípio passa por dar provimento à continuidade dos processos e portanto, sempre que possível remover os obstáculos que o impeçam. Neste caso o entrave ao processo poderia ter sido evitado através de uma actuação que o tribunal deveria ter tido.

Por esta mesma razão não seria possível ao Tribunal de Círculo decidir pelo não decretamento da providência, no sentido em que o mesmo não deu cumprimento à possibilidade de sanação, como dispõe os artigos 114º, n.º 4 e 116º, n.º 2, al. a) do CPTA.

Esta opção tomada pelo Tribunal de Círculo de Lisboa traduz-se numa clara violação do direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva, uma vez que o pedido foi rejeitado por uma questão de formalismo, sem que tenha sido dada a possibilidade de se suprir a falta em causa. A decisão acabou por ir contra aquilo que a própria reforma do contencioso pretendeu, ou seja, dar preferência à substancia em detrimento da forma, possibilitando a continuação do processo e obtenção de uma decisão de mérito.

Tendo por base o princípio pro actione, o Tribunal Central Administrativo do Sul considerou, em sede de recurso, que a decisão anterior constituía uma restrição ao acesso à justiça e aos tribunais e decidiu pela sua revogação e substituição por uma outra em que fosse ordenado ao requerente o preenchimento da irregularidade formal.

No meu entender, a posição tomada pelo TCA foi bastante assertiva, caso a decisão tomada tivesse ido em sentido contrário tratar-se-ia de uma injustiça grosseira, uma vez que o tribunal tem o dever de notificar a parte incumbida do preenchimento dos requisitos nos casos em que falta esse preenchimento para que, caso se pretenda se possa dar continuidade ao processo. A não indicação dos contra-interessados no requerimento inicial poderá ter sido fruto de um lapso ou puro desconhecimento da necessidade de o fazer, o mesmo não deverá implicar que a sua falta não possa vir a ser suprimida em momento posterior. O Tribunal de Círculo não cumpriu com a sua obrigação e como tal, a sua decisão acabou por se traduzir numa espécie de castigo, do autor, por um lapso que não fora exclusivamente seu. Apesar de o autor ter o dever de garantir a exequibilidade da acção, através da inexistência de falhas, cabe também ao tribunal apreciar essas falhar e, quando possível, tudo fazer para que o autor possa corrigir o erro.

Os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul acordaram em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida, permitindo assim a continuidade do processo.



O princípio do favor do processo apresenta também algumas limitações, não vale para todo e qualquer caso. Os tribunais não devem fazer tábua rasa das normas jurídicas onde vão consagrar os pressupostos processuais ou outros requisitos e condições da prática regular dos actos processuais das partes.

As regras processuais, têm na sua base a consideração de interesses e valores relevantes, como por exemplo os de ordem pública, a justiça, a segurança e eficiência e como tal os mesmos devem-se fazer cumprir9. Com este princípio não se pretende ignorar o incumprimento dos pressupostos processuais nem das demais formalidades, pretende-se no entanto que, em situações de dúvidas sobre o sentido e alcance dos pressupostos processuais ou quando da sua aplicação rígida resultem uma injustiça grosseira para a parte ou uma sanção gratuita, os tribunais interpretem e apliquem no sentido mais favorável à continuação e desenvolvimento do processo, de forma a obter uma decisão de mérito.
Para além do já mencionado, este princípio só é operativo quando se não lhe contraponha um outro princípio de maior dignidade processual, como por exemplo o princípio do contraditório ou da igualdade, sendo que nestes casos o mesmo não poderá prevalecer. Não será possível considerar validamente praticado um acto processual de uma das partes se daí redundar um sacrifício do direito do contraditório da outra parte, ainda que com isso se afecte a continuidade do processo e a possibilidade de tutela do direito e juízo.

Não sendo um princípio exclusivo do Contencioso Administrativo, nem insusceptível de se ver limitado por outros valores, trata-se de um elemento importante na ordem jurídica portuguesa, que acaba por conferir segurança aos particulares através da garantia que lhes é dada de acesso aos tribunais e desenvolvimento do processo com o intuito de se chegar a uma decisão de mérito. Acabou por ser fruto da evolução do Contencioso e ao mesmo tempo um contributo essencial para que este continuasse a progredir.


Referências:
1 SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ªEdição, Almedina, 2009
2 SILVA, Vasco Pereira da, «”É sempre a mesma cantiga” – O Contencioso da Responsabilidade Civil Pública» in AAVV, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, coord. Miranda, Jorge, Lisboa, Edição da Faculdade de direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2010
3 SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ªEdição, Almedina, 2009
4 Em Processo Civil consagra-se o princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, que mais não é do que um reforço dos poderes de direcção, agilização e adequação da tramitação do processo, pelo juiz. Neste sentido, a actividade processual deve favorecer a obtenção de decisões que privilegiem a substância sobre a forma, devendo suprir-se o erro e evitar irregularidades “puramente adjectivas” que impeçam a julgamento da causa ou possam distorcer o conteúdo da sentença de mérito. 
5 SÉRVULO CORREIA, Cadernos de Justiça Administrativa, nº44, Março/Abril 2004
6 OLIVEIRA, MÁRIO ESTEVES e OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES, "Código de Processo nos Tribunais Administrativos", Vol. I, Almedina, 2006 – comentário ao artigo 7.º do CPTA
7 Acórdão do TCA-S de 16/12/2015, P.12692/15
8 Acórdão do TCA-S de 16/12/2015, P.12692/15
9 OLIVEIRA, MÁRIO ESTEVES e OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES, "Código de Processo nos Tribunais Administrativos", Vol. I, Almedina, 2006 – comentário ao artigo 7.º do CPTA




Bibliografia

ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2013

ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 3ª Ed. 2010

ANDRADE, VIEIRA DE, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 12ª Edição, 2012

CORREIA, JOSÉ MANUEL SÉRVULO, “O princípio pro actione no procedimento administrativo”: Acórdão do STA de 22.01.2004 P.2064/03, anotação de Sérvulo Correia e Mafalda Carmona in: Estudos vários / José Manuel Sérvulo Correia – Vol. 2 – Estudo nº 39 publicado em “Cadernos de Justiça Administrativa” nº 44 (Março-Abril 2004)

OLIVEIRA, MÁRIO ESTEVES e OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES, "Código de Processo nos Tribunais Administrativos", Vol. I, Almedina, 2006


Jurisprudência consultada:


Acórdão do Tribunal Central Administrativo sul, 2º Juízo, de 16.12.2015 P.12692/15

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 1ª Secção, de 29.01.2014 P.01233/13

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 2ª Secção, de 30.04.2008 P.0850/15


Acórdão do Tribunal Constitucional, 2ª Secção, P. 1109/04







Beatriz Teixeira
N.º 28266
Suburma 8
4.º Ano





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