Âmbito do artigo 9º, nº 2 do CPTA: Enunciativo ou
Taxativo, na “defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos”[1]?
Resumo: O artigo 9º, nº2 do Código do Processo nos
Tribunais Administrativos (CPTA) preserva o direito de ação popular, que
permite a proteção e por conseguinte a “defesa
de valores e bens constitucionalmente protegidos”[2].
Na referida norma são elencados alguns desses interesses difusos. Deste
modo, com o presente post, procuraremos encontrar a resposta para a
problemática de se este elenco é de caráter enunciativo ou taxativo.
Palavras-Chave: Legitimidade Processual; Ação Popular;
Interesses difusos; Interesses individuais homogéneos; Interesse Público; Enunciativo;
Taxativo.
Sumário: I) Noção de Ação Popular presente no CPTA;
II) Artigo 9º, nº2 CPTA: enunciativo ou taxativo, na legitimidade para defesa
de interesses difusos[3]?; II. A) Noção de
Interesses difusos; II.B) Problemática do artigo 9º, nº2 do CPTA
“ Artigo 9.º (CPTA)
Legitimidade ativa |
1 – (…)
2 - Independentemente de ter interesse pessoal na
demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos
interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm
legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em
processos principais e cautelares destinados
à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde
pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de
vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das
autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes
decisões jurisdicionais[4].”
[5]
|
I) Noção de Ação Popular presente no CPTA
No artigo 9º do CPTA está previsto o
pressuposto processual: legitimidade. Desta forma, se o mesmo não se encontrar
verificado, as condições necessárias para a propositura e andamento da ação
judicial não se acharão reunidas. Estando definido, no número um do mesmo, o
critério geral relativo à legitimidade ativa.
Todavia,
para o presente post, releva dar destaque ao seu número dois. No qual, segundo
as palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA se encontra previsto um modo de “
extensão da legitimidade processual a quem não se alegue ser parte numa relação
material que se proponha submeter à apreciação do tribunal.”[6]. Sendo neste preceito que nos
deparamos com a previsão legal, mesmo que de modo não explícito, do direito de
ação popular, que têm também consagração legal no artigo 52º, nº3 da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
Nesta
medida, cumpre dizer que, no âmbito do Contencioso Administrativo, a ação
popular, além de se manifestar como um modo de tutelar jurisdicionalmente as
posições jurídicas[7],
de um grupo de pessoas não individualizáveis[8] ou de todos os membros da
comunidade. Revela-se também uma forma de os cidadãos gozarem dos seus direitos
civis e políticos[9].
Além do papel fundamental desempenhado por
este instituto, referido anteriormente, PAULO OTERO, expõem ainda duas das
principais funções desempenhadas pela ação popular[10], nos domínios do
Contencioso Administrativo. A primeira é nem mais nem menos que o facto deste
direito se traduzir “num mecanismo de participação dos administrados, no
controlo da legalidade da atuação administrativa”[11]. Numa segunda ótica, o
ilustre autor, refere que “a ação popular confere uma indiscutível natureza
objetivista à função do contencioso administrativo”[12].
Depois destas considerações mais
gerais, torna-se imperativo recuperar o foco da temática deste post. Desta
feita, torna-se importante, neste ponto, acrescentar, relativamente ao artigo
9º, nº2 CPTA, que o instituto nele preservado, não se trata de uma forma de
processo[13].
II)
Artigo 9º, nº2
CPTA: enunciativo ou taxativo, na legitimidade para defesa de interesses
difusos?
O
regime estabelecido pelo artigo 9º, nº2 do CPTA, remete através da expressão “nos termos previstos na lei”[14],
para o disposto na Lei 83/95 de 31 de Agosto (LAP). De modo a densificar
este “fenómeno de extensão da legitimidade ativa”[15].
Seguindo o entendimento de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE
ANDRADE não é admissível que o regime, em análise, do CPTA e da LAP, sejam
indistintamente aplicados, tendo de se tomar em consideração os “bens jurídicos tutelados”[16][17].
No
artigo 1º, nº2 da LAP bem como no disposto do artigo 9º, nº2 do CPTA,
encontram-se mencionados um elenco de bens jurídicos constitucionalmente protegidos
tais como: “a saúde pública, o
ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o
património cultural e o domínio público”[18]. Chegados
à problemática do post, temos por pretensão chegar ao entendimento, de se
estamos perante um catálogo taxativo ou enunciativo.
Algo desde
já parece ser certo. O preceito em causa, não visa tutelar todo e qualquer
interesse previsto na constituição. Tendo sim por objeto a defesa de interesses
difusos[19],
como poderemos apurar nos subpontos seguintes.
Deste modo,
no primeiro subponto, procederemos realizar uma sumária análise do entendimento
doutrinário do conceito interesses difusos. Tratando de no último subponto,
proceder à análise da letra do disposto do artigo 9º, nº2 CPTA, do artigo 1º,
nº2 da LAV e do artigo 52º, nº3 da CRP, a fim de encontrar evidências do caráter
enunciativo ou taxativo do instituto da ação popular. Para por fim, poder algo
tentar concluir.
A)
Noção de
Interesses difusos
No acórdão do
Tribunal de Conflitos, Processo 017/08, de 9 de dezembro de 2008, o tribunal
posiciona-se no sentido de que “o objeto da ação popular, é antes de mais a
defesa de interesses difusos.”[20]. Definindo, neste
acórdão, interesses difusos enquanto refração[21] em cada sujeito de
interesses unitários da comunidade[22] ponderada de modo
universal e com complexidade[23].
Num outro acórdão, este do Supremo
Tribunal de Justiça(STJ), Processo 97B503, de 23 de setembro de 1997, na parte
destinada ao sumário, é-nos apresentado a referência de que no artigo 1º da
LAP, não apenas se encontram preservados interesses difusos[24]. O que significa que o
mesmo se verifica no nº2, do artigo 9º do CPTA. Como conjuntamente abrange
interesses homogéneos[25].
No mesmo acórdão o STJ, citando GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA[26], refere que é na tutela
de interesses difusos que se encontra a especial incidência da ação popular,
posição que o Tribunal de Conflitos vem também defender no acórdão
anteriormente indicado. Aludindo ainda a que deve ser reconhecido à comunidade,
no âmbito deste instituto, uti cives[27]
em vez de uti singuli[28],
ou seja, o direito de promoção de interesses da comunidade.
Na doutrina portuguesa permanece a
distinção entre interesses difusos, enquanto interesses comunitários[29], e interesses individuais
homogéneos. Os primeiros são qualificados por JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, em
nota de rodapé, como interesses supra-individuais[30],
ou seja, que são comuns à comunidade não sendo fracionáveis. Os segundos, o
autor define como “direitos subjetivos
fracionados”[31].
Pese embora, a importância da anterior
distinção, cabe ainda neste subponto distinguir interesse difuso, que são o
objeto do artigo em análise no presente post, e de interesse público. Esta
diferenciação será também ser importante para perceber o caráter taxativo ou
enunciativo do artigo 9º, nº2 CPTA.
Para MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA a
distinção entre os conceitos passa pela forma como ambos os interesses são
delimitáveis. Os interesses difusos, têm para o autor, uma dimensão individual[32] e uma dimensão
supra-individual[33],
não se verificando efetivamente a satisfação de interesses que não sejam comuns
a toda a comunidade[34]. Em contraste, o
interesse público é “um complexo de interesses que pertencem ou se referem a
uma generalidade de pessoas indistintas, a um público. Dos interesses gerais
(…) a um grupo de pessoas há alguns que assumem uma importância tal que da sua
satisfação resulta o equilíbrio da própria comunidade”[35]. Assim a principal
diferença é que nos interesses difusos têm de ser sempre os interesses de uma
comunidade e no interesse público pode ser um interesse de um só individuo que
beneficiará a sociedade.
Esta destrinça é de especial interesse
porque, como veremos a seguir, o objeto do artigo 9º, nº2 são os interesses
difusos, assim parece que, a ter um caráter enunciativo, neste preceito apenas
se poderão inserir interesses análogos, não individuais mas pertencentes a uma
dada comunidade.
B)
Problemática do
artigo 9º, nº2 do CPTA
Para terminarmos a
nossa análise do artigo em destaque passaremos agora à análise da sua letra. No
artigo 9º, nº2 do CPTA, a expressão “como”[36], aparenta evidenciar um
caráter enunciativo em detrimento de uma natureza taxativa. Como se disse, numa
das linhas anteriores do post, a norma em causa remete para as disposições da
Lei da Ação Popular. O que leva a reforçar a ideia de uma não taxatividade,
apenas através da interpretação literal das normas, na medida em que também no
artigo 1º, nº 2 da LAP através da expressão “designadamente”[37], fica patente a ideia de
um caráter enunciativo da norma.
Pode ainda ser
adicionado um argumento, que mais uma vez, vem evidenciar um caráter
enunciativo da norma em discussão. Vimos já, que o artigo, se trata de uma
consagração do direito de ação popular, presente no artigo 52, nº3 da CRP.
Nesta medida, no Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503 de 23 de setembro de 1997, o STJ
prenuncia-se no sentido de defender a natureza enunciativa dos interesses
difusos presentes na norma constitucional, dizendo: “a ação popular não tem de
limitar-se aos casos individualizados no nº3”[38],
acrescentando ainda que “”a norma tem caráter exemplificativo, como decorre do
seu enunciado textual (“nomeadamente”)[39].
Em suma, o STJ invoca como evidência da natureza
enunciativa do preceito constitucional a expressão “nomeadamente” do enunciado
textual. Por conseguinte, através de um argumento de maioria de razão, o mesmo
argumento parece poder ser usado para defender o caráter enunciativo do artigo
9º, nº2 CPTA. Pois a expressão “como”, coloca o mesmo em evidência.
Parece-me por
isto, bem como pela definição de interesses difusos apresentada, em pontos
anteriores e por tudo aquilo até aqui evidenciado, que a norma tem caráter
enunciativo. Cabendo no seu âmbito de aplicação, os bens constitucionalmente
protegidos que concirnam ao conceito de interesses difusos, comuns à comunidade
e não a um só cidadão.
BIBLIOGRAFIA:
Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017.
Jorge Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa
(Lições), 15ª edição, Almedina, Coimbra, 2016.
Paulo Otero, A acção popular:
configuração e valor no atual Direito português, in “Revista
da Ordem dos Advogados”, Lisboa, Ano 59, Dezembro de 1999, III
Miguel Teixeira de Sousa, A legitimidade Popular na tutela dos
Interesses Difusos, LEX, Lisboa
Fernanda Paula
Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias, Noções
Fundamentais de Administrativo, Almedina, 4ª edição
Jurisprudência:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503
de 23 de setembro de 1997
Acórdão do Tribunal dos Conflitos, Processo 017/08 de 9
de dezembro de 2008
Catarina Filipa Ribeiro Serra, Aluno nº 28015,
Subturma 8, 4º ano Dia
[1] Expressão retirada da redação do
artigo 9º, nº2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA),
retirado do site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=439&tabela=leis&so_miolo=
, Consultado no dia 2/11/2018
[2] Idem
[3] Expressão in Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª ed.,
Almedina, Coimbra, 2017, pág. 215
[4] Itálico por mim colocado em
evidência para destacar a problemática do presente post
[5] Artigo
9º, nº2 do CPTA, retirado do site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=439&tabela=leis&so_miolo=
, Consultado no dia 2/11/2018
[6] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª
ed., Almedina, Coimbra, 2017, página 215
[7] Paulo Otero, A
acção popular: configuração e valor no atual Direito português, in “Revista
da Ordem dos Advogados”, Lisboa, Ano 59, Dezembro de 1999, III, site: https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-1999/ano-59-vol-iii-dez-1999/doutrina/
[8] Idem
[9] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª
ed., Almedina, Coimbra, 2017, página 215
[10] Paulo Otero, A acção popular:
configuração e valor no atual Direito português, in “Revista
da Ordem dos Advogados”, Lisboa, Ano 59, Dezembro de 1999, III, site: https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-1999/ano-59-vol-iii-dez-1999/doutrina/
[11] Idem
[12] Idem
[13]
Ideia presente em Mário Aroso de
Almeida, Manual de Processo
Administrativo, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, página 217
[14]
Expressão retirada da redação
do artigo 9º, nº2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA),
retirado do site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=439&tabela=leis&so_miolo=
, Consultado no dia 3/11/2018
[15]
Ideia
presente em Mário Aroso de
Almeida, Manual de Processo
Administrativo, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, página 215
[16]
Ideia
do presente parágrafo Jorge
Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição,
Almedina, Coimbra, 2016, página 167.
[17]
Itálico
do autor in Jorge Carlos Vieira
de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina, Coimbra,
2016, página 167.
[18]Expressão retirada da redação do
artigo 1º, nº2 da LAP, site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=722&tabela=leis&so_miolo=
, Consultado 3/11/2018
[19] Este é o entendimento seguido no Acórdão do Tribunal dos Conflitos,
Processo 017/08 de 9 de dezembro de 2008
[24] Que
o STJ define como “interesses de toda a comunidade”, in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo
97B503 de 23 de setembro de 1997
[25] Que o STJ define como “os que
polarizam em aglomerados identificados de titulares justapostos”,
[26] Citação
do STJ, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503
de 23 de setembro de 1997, de Constituição Portuguesa anotada, 3ªedição,
páginas 281a 283
[27] Citação
do STJ, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503
de 23 de setembro de 1997, de Constituição Portuguesa anotada, 3ªedição,
páginas 281a 283
[28] Citação
do STJ, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503
de 23 de setembro de 1997, de Constituição Portuguesa anotada, 3ªedição,
páginas 281a 283
[29] Jorge Carlos Vieira de Andrade, A
Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, página
166
[30] Expressão do autor in Jorge Carlos
Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina,
Coimbra, 2016, página 166, nota de rodapé 355
[31] Aspas do autor, expressão in Jorge
Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina,
Coimbra, 2016, página 166, nota de rodapé 357
[32]
Expressão do autor in Miguel Teixeira de Sousa, A legitimidade Popular na tutela dos
Interesses Difusos, LEX, Lisboa, página 30
[34] Ideia
retirada de Miguel Teixeira de Sousa, A
legitimidade Popular na tutela dos Interesses Difusos, LEX, Lisboa, página
30
[35]
Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias, Noções Fundamentais de Administrativo, Almedina, 4ª edição, página
15
[36] Expressão retirada da redação do
artigo 9º, nº2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA),
retirado do site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=439&tabela=leis&so_miolo=
, Consultado no dia 3/11/2018
[38] Citação do STJ de GOMES CANOTILHO e
VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª edição, páginas 281 a 283, in Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, Processo 97B503 de 23 de setembro de 1997
[39]
Idem
Sem comentários:
Enviar um comentário