domingo, 4 de novembro de 2018

Âmbito do artigo 9º, nº 2 do CPTA: Enunciativo ou Taxativo, na “defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos”[1



Âmbito do artigo 9º, nº 2 do CPTA: Enunciativo ou Taxativo, na “defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos”[1]?

Resumo: O artigo 9º, nº2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) preserva o direito de ação popular, que permite a proteção e por conseguinte a “defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos”[2]. Na referida norma são elencados alguns desses interesses difusos. Deste modo, com o presente post, procuraremos encontrar a resposta para a problemática de se este elenco é de caráter enunciativo ou taxativo. 

Palavras-Chave: Legitimidade Processual; Ação Popular; Interesses difusos; Interesses individuais homogéneos; Interesse Público; Enunciativo; Taxativo.

Sumário: I) Noção de Ação Popular presente no CPTA; II) Artigo 9º, nº2 CPTA: enunciativo ou taxativo, na legitimidade para defesa de interesses difusos[3]?; II. A) Noção de Interesses difusos; II.B) Problemática do artigo 9º, nº2 do CPTA
Artigo 9.º (CPTA)
Legitimidade ativa

1 – (…)
2 - Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais[4].” [5]

I)  Noção de Ação Popular presente no CPTA
       No artigo 9º do CPTA está previsto o pressuposto processual: legitimidade. Desta forma, se o mesmo não se encontrar verificado, as condições necessárias para a propositura e andamento da ação judicial não se acharão reunidas. Estando definido, no número um do mesmo, o critério geral relativo à legitimidade ativa.
Todavia, para o presente post, releva dar destaque ao seu número dois. No qual, segundo as palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA se encontra previsto um modo de “ extensão da legitimidade processual a quem não se alegue ser parte numa relação material que se proponha submeter à apreciação do tribunal.”[6]. Sendo neste preceito que nos deparamos com a previsão legal, mesmo que de modo não explícito, do direito de ação popular, que têm também consagração legal no artigo 52º, nº3 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Nesta medida, cumpre dizer que, no âmbito do Contencioso Administrativo, a ação popular, além de se manifestar como um modo de tutelar jurisdicionalmente as posições jurídicas[7], de um grupo de pessoas não individualizáveis[8] ou de todos os membros da comunidade. Revela-se também uma forma de os cidadãos gozarem dos seus direitos civis e políticos[9]. 
             Além do papel fundamental desempenhado por este instituto, referido anteriormente, PAULO OTERO, expõem ainda duas das principais funções desempenhadas pela ação popular[10], nos domínios do Contencioso Administrativo. A primeira é nem mais nem menos que o facto deste direito se traduzir “num mecanismo de participação dos administrados, no controlo da legalidade da atuação administrativa”[11]. Numa segunda ótica, o ilustre autor, refere que “a ação popular confere uma indiscutível natureza objetivista à função do contencioso administrativo”[12].
            Depois destas considerações mais gerais, torna-se imperativo recuperar o foco da temática deste post. Desta feita, torna-se importante, neste ponto, acrescentar, relativamente ao artigo 9º, nº2 CPTA, que o instituto nele preservado, não se trata de uma forma de processo[13].

II)               Artigo 9º, nº2 CPTA: enunciativo ou taxativo, na legitimidade para defesa de interesses difusos?
O regime estabelecido pelo artigo 9º, nº2 do CPTA, remete através da expressão “nos termos previstos na lei”[14], para o disposto na Lei 83/95 de 31 de Agosto (LAP). De modo a densificar este “fenómeno de extensão da legitimidade ativa”[15].
Seguindo o entendimento de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE não é admissível que o regime, em análise, do CPTA e da LAP, sejam indistintamente aplicados, tendo de se tomar em consideração os “bens jurídicos tutelados”[16][17].
No artigo 1º, nº2 da LAP bem como no disposto do artigo 9º, nº2 do CPTA, encontram-se mencionados um elenco de bens jurídicos constitucionalmente protegidos tais como: “a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público”[18]. Chegados à problemática do post, temos por pretensão chegar ao entendimento, de se estamos perante um catálogo taxativo ou enunciativo.
            Algo desde já parece ser certo. O preceito em causa, não visa tutelar todo e qualquer interesse previsto na constituição. Tendo sim por objeto a defesa de interesses difusos[19], como poderemos apurar nos subpontos seguintes.
            Deste modo, no primeiro subponto, procederemos realizar uma sumária análise do entendimento doutrinário do conceito interesses difusos. Tratando de no último subponto, proceder à análise da letra do disposto do artigo 9º, nº2 CPTA, do artigo 1º, nº2 da LAV e do artigo 52º, nº3 da CRP, a fim de encontrar evidências do caráter enunciativo ou taxativo do instituto da ação popular. Para por fim, poder algo tentar concluir.
A)    Noção de Interesses difusos

No acórdão do Tribunal de Conflitos, Processo 017/08, de 9 de dezembro de 2008, o tribunal posiciona-se no sentido de que “o objeto da ação popular, é antes de mais a defesa de interesses difusos.”[20]. Definindo, neste acórdão, interesses difusos enquanto refração[21] em cada sujeito de interesses unitários da comunidade[22] ponderada de modo universal e com complexidade[23].

         Num outro acórdão, este do Supremo Tribunal de Justiça(STJ), Processo 97B503, de 23 de setembro de 1997, na parte destinada ao sumário, é-nos apresentado a referência de que no artigo 1º da LAP, não apenas se encontram preservados interesses difusos[24]. O que significa que o mesmo se verifica no nº2, do artigo 9º do CPTA. Como conjuntamente abrange interesses homogéneos[25].
         No mesmo acórdão o STJ, citando GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA[26], refere que é na tutela de interesses difusos que se encontra a especial incidência da ação popular, posição que o Tribunal de Conflitos vem também defender no acórdão anteriormente indicado. Aludindo ainda a que deve ser reconhecido à comunidade, no âmbito deste instituto, uti cives[27] em vez de uti singuli[28], ou seja, o direito de promoção de interesses da comunidade.
       Na doutrina portuguesa permanece a distinção entre interesses difusos, enquanto interesses comunitários[29], e interesses individuais homogéneos. Os primeiros são qualificados por JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, em nota de rodapé, como interesses supra-individuais[30], ou seja, que são comuns à comunidade não sendo fracionáveis. Os segundos, o autor define como “direitos subjetivos fracionados”[31].
         Pese embora, a importância da anterior distinção, cabe ainda neste subponto distinguir interesse difuso, que são o objeto do artigo em análise no presente post, e de interesse público. Esta diferenciação será também ser importante para perceber o caráter taxativo ou enunciativo do artigo 9º, nº2 CPTA.
         Para MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA a distinção entre os conceitos passa pela forma como ambos os interesses são delimitáveis. Os interesses difusos, têm para o autor, uma dimensão individual[32] e uma dimensão supra-individual[33], não se verificando efetivamente a satisfação de interesses que não sejam comuns a toda a comunidade[34]. Em contraste, o interesse público é “um complexo de interesses que pertencem ou se referem a uma generalidade de pessoas indistintas, a um público. Dos interesses gerais (…) a um grupo de pessoas há alguns que assumem uma importância tal que da sua satisfação resulta o equilíbrio da própria comunidade”[35]. Assim a principal diferença é que nos interesses difusos têm de ser sempre os interesses de uma comunidade e no interesse público pode ser um interesse de um só individuo que beneficiará a sociedade.
  Esta destrinça é de especial interesse porque, como veremos a seguir, o objeto do artigo 9º, nº2 são os interesses difusos, assim parece que, a ter um caráter enunciativo, neste preceito apenas se poderão inserir interesses análogos, não individuais mas pertencentes a uma dada comunidade.

B)    Problemática do artigo 9º, nº2 do CPTA
Para terminarmos a nossa análise do artigo em destaque passaremos agora à análise da sua letra. No artigo 9º, nº2 do CPTA, a expressão “como”[36], aparenta evidenciar um caráter enunciativo em detrimento de uma natureza taxativa. Como se disse, numa das linhas anteriores do post, a norma em causa remete para as disposições da Lei da Ação Popular. O que leva a reforçar a ideia de uma não taxatividade, apenas através da interpretação literal das normas, na medida em que também no artigo 1º, nº 2 da LAP através da expressão “designadamente”[37], fica patente a ideia de um caráter enunciativo da norma.
Pode ainda ser adicionado um argumento, que mais uma vez, vem evidenciar um caráter enunciativo da norma em discussão. Vimos já, que o artigo, se trata de uma consagração do direito de ação popular, presente no artigo 52, nº3 da CRP. Nesta medida, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503 de 23 de setembro de 1997, o STJ prenuncia-se no sentido de defender a natureza enunciativa dos interesses difusos presentes na norma constitucional, dizendo: “a ação popular não tem de limitar-se aos casos individualizados no nº3”[38], acrescentando ainda que “”a norma tem caráter exemplificativo, como decorre do seu enunciado textual (“nomeadamente”)[39].
Em suma, o STJ invoca como evidência da natureza enunciativa do preceito constitucional a expressão “nomeadamente” do enunciado textual. Por conseguinte, através de um argumento de maioria de razão, o mesmo argumento parece poder ser usado para defender o caráter enunciativo do artigo 9º, nº2 CPTA. Pois a expressão “como”, coloca o mesmo em evidência.
Parece-me por isto, bem como pela definição de interesses difusos apresentada, em pontos anteriores e por tudo aquilo até aqui evidenciado, que a norma tem caráter enunciativo. Cabendo no seu âmbito de aplicação, os bens constitucionalmente protegidos que concirnam ao conceito de interesses difusos, comuns à comunidade e não a um só cidadão.

BIBLIOGRAFIA:
Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017.
Jorge Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina, Coimbra, 2016.
Paulo Otero, A acção popular: configuração e valor no atual Direito portuguêsin “Revista da Ordem dos Advogados”, Lisboa, Ano 59, Dezembro de 1999, III
Miguel Teixeira de Sousa, A legitimidade Popular na tutela dos Interesses Difusos, LEX, Lisboa
Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias, Noções Fundamentais de Administrativo, Almedina, 4ª edição
Jurisprudência:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503 de 23 de setembro de 1997
Acórdão do Tribunal dos Conflitos, Processo 017/08 de 9 de dezembro de 2008


                     
 
 Catarina Filipa Ribeiro Serra, Aluno nº 28015, Subturma 8, 4º ano Dia




[1] Expressão retirada da redação do artigo 9º, nº2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), retirado do site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=439&tabela=leis&so_miolo= , Consultado no dia 2/11/2018
[2] Idem
[3] Expressão in Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pág. 215
[4] Itálico por mim colocado em evidência para destacar a problemática do presente post
[5]  Artigo 9º, nº2 do CPTA, retirado do site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=439&tabela=leis&so_miolo= , Consultado no dia 2/11/2018
[6] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, página 215
[7] Paulo Otero, A acção popular: configuração e valor no atual Direito portuguêsin “Revista da Ordem dos Advogados”, Lisboa, Ano 59, Dezembro de 1999, III, site: https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-1999/ano-59-vol-iii-dez-1999/doutrina/
[8] Idem
[9] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, página 215
[10] Paulo Otero, A acção popular: configuração e valor no atual Direito portuguêsin “Revista da Ordem dos Advogados”, Lisboa, Ano 59, Dezembro de 1999, III, site: https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-1999/ano-59-vol-iii-dez-1999/doutrina/
[11] Idem
[12] Idem
[13] Ideia presente em Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, página 217
[14] Expressão retirada da redação do artigo 9º, nº2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), retirado do site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=439&tabela=leis&so_miolo= , Consultado no dia 3/11/2018
[15] Ideia presente em Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, página 215
[16] Ideia do presente parágrafo Jorge Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, página 167.
[17] Itálico do autor in Jorge Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, página 167.
[18]Expressão retirada da redação do artigo 1º, nº2 da LAP, site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=722&tabela=leis&so_miolo= , Consultado 3/11/2018
[19] Este é o entendimento seguido no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, Processo 017/08 de 9 de dezembro de 2008  
[20] Acórdão do Tribunal dos Conflitos, Processo 017/08 de 9 de dezembro de 2008
[21] Idem
[22] Idem
[23] Ideia presente in Acórdão do Tribunal dos Conflitos, Processo 017/08 de 9 de dezembro de 2008
[24] Que o STJ define como “interesses de toda a comunidade”, in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503 de 23 de setembro de 1997
[25] Que o STJ define como “os que polarizam em aglomerados identificados de titulares justapostos”,
[26] Citação do STJ, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503 de 23 de setembro de 1997, de Constituição Portuguesa anotada, 3ªedição, páginas 281a 283
[27] Citação do STJ, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503 de 23 de setembro de 1997, de Constituição Portuguesa anotada, 3ªedição, páginas 281a 283
[28] Citação do STJ, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503 de 23 de setembro de 1997, de Constituição Portuguesa anotada, 3ªedição, páginas 281a 283
[29] Jorge Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, página 166
[30] Expressão do autor in Jorge Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, página 166, nota de rodapé 355
[31] Aspas do autor, expressão in Jorge Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, página 166, nota de rodapé 357
[32] Expressão do autor in Miguel Teixeira de Sousa, A legitimidade Popular na tutela dos Interesses Difusos, LEX, Lisboa, página 30
[33] Idem
[34] Ideia retirada de Miguel Teixeira de Sousa, A legitimidade Popular na tutela dos Interesses Difusos, LEX, Lisboa, página 30
[35] Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias, Noções Fundamentais de Administrativo, Almedina, 4ª edição, página 15
[36] Expressão retirada da redação do artigo 9º, nº2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), retirado do site: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=439&tabela=leis&so_miolo= , Consultado no dia 3/11/2018
[37] Artigo 1º, nº 2 da LAP
[38] Citação do STJ de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, páginas 281 a 283, in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 97B503 de 23 de setembro de 1997
[39] Idem

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