domingo, 4 de novembro de 2018

Dos princípios vigentes no Contencioso Administrativo: O Princípio da Cooperação

Muito se escreve à cerca da influência que os princípios têm nos ordenamos jurídicos, mais concretamente, no português. Antes disso, cabe fazer uma breve explicitação ao significado de princípio, no âmbito jurídico. Princípios traduzem-se em valores, que por sua vez condicionam e orientam o padrão de atuação do Direito, configurando-se como um alicerce do mesmo e não acima deste, pois também, os princípios, fazem parte do complexo ordenamental. Possuem determinadas características, tais como, a sua aproximação da ideia de Direito, a sua versatilidade de adaptação às variantes do decurso do tempo ou a sua virtualidade de harmonização. Não se contrapõem às normas, mas antes as complementam, resultando em uma divisão da norma jurídica em, por um lado, norma-princípio e por outro, norma-regra, sendo que a diferença entre estas reside num critério qualitativo. Tal como refere o ilustre constitucionalista, o professor Jorge Miranda, “(…)o Direito nunca poderia esgotar-se nos diplomas e preceitos mutáveis(…)forçoso se torna reconhecer existir algo de especifico e de permanente no sistema que permite explicar e fundar a validade e a efetividade de todas e cada uma das suas    normas.”
Um dos ramos do Direito, é o Contencioso Administrativo, no qual vigoram vários princípios. Para iniciar a minha análise ao Princípio da Cooperação, faz-se mister atender à estrutura elaborada pelo professor Vieira de Andrade, que os agrupa em: Princípios relativos à iniciativa processual; Princípios relativos ao âmbito do processo; Princípios relativos à prossecução processual; Princípios relativos à prova; Princípios relativos à forma processual.  
Ora, é no grupo dos Princípios relativos à prossecução processual que se integra o Princípio da Cooperação. Deste princípio decorre um dever geral prima face de cooperação entre todos os intervenientes no processo, ou seja, entre magistrados, mandatários judiciais e as partes, com o objetivo de se alcançar a justa composição do litígio, visando não só a sua brevidade, como também a sua eficácia. Este princípio não encontra previsão constitucional expressa, todavia, podemos retirar do texto constitucional um dever geral de cooperação implícito. Esse dever geral, pode dividir-se numa vertente objetiva e numa vertente subjetiva. Na primeira vertente, o artigo 6º CRP pode ser interpretado como um garante da coerência da atuação de todas as entidades públicas, mais concretamente, o Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais, visto que concretiza a ideia de Estado unitário. Outro exemplo é o caso do artigo 266º da lei fundamental, que, ao consagrar a prossecução do interesse público por parte da Administração, é inerente a cooperação entre as diversas entidades públicas, e claro, o artigo 20º da mesma lei, mais concretamente no nº4, “(…) decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”. Relativamente ao CPTA, o Princípio da Cooperação já encontra uma consagração expressa no artigo 8º. Dada a supletividade da lei processual civil no âmbito do contencioso administrativo (artigo 1ºCPTA), penso que é possível estabelecer um paralelismo com o a cadeira de direito processual civil, e deste modo, mencionar a divisão que o professor Lebre de Freitas faz ao Princípio da Cooperação, pois no seu manual(1), podemos verificar que a cooperação se subdivide num sentido material e num sentido formal. Relativamente à cooperação em sentido material, surge o dever de as partes colaborarem para a descoberta da verdade, ao apresentarem meios de prova ou a praticarem outros atos que o tribunal exige, artigos 411º;417º;436º CPC ex vi artigo 90º/2 do CPTA. No entanto, existem dois limites a este dever, que são: o respeito pelos direitos fundamentais (direito à integridade pessoal, direito à inviolabilidade do domicílio, direito à reserva da vida privada), e o outro limite é o respeito pelo dever de sigilo emergente da profissão em causa ou do segredo de Estado. Ainda no âmbito deste sentido material, cumpre mencionar o facto da obrigação do Juiz ouvir as partes, nomeadamente em audiência prévia, artigo 87º-A CPTA, com a finalidade de discutir as posições das partes e também a faculdade que este dispõe para suprimir imprecisões dos articulados, caso seja necessário, e para tal releva o artigo 87º CPTA(despacho pré-saneador)e o artigo 88º (despacho saneador). Resumindo este sentido, é possível afirmar que a cooperação em sentido material implica, portanto, poderes do juiz, como deveres das partes. No que concerne ao sentido formal da cooperação, este traduz-se num dever que cabe ao juiz de eliminar obstáculos que impossibilitem às partes a obtenção de informação ou documentos necessários que façam valer as suas pretensões/posições e consequentemente, para o normal funcionamento da ação em causa. O artigo 7º/nº 4 do CPC concretiza este sentido formal. Importante se torna também mencionar que a omissão deste princípio poderá ter como consequência a aplicação de sanções, como dispõe o número 5 do artigo 8º do CPTA, que por sua vez, remete para lei processual civil a determinação concreta de consequências face a uma recusa ilegítima de colaboração para a descoberta da verdade, nomeadamente o artigo 417º/nº 2 do CPC. Este mesmo artigo define também quais as situações em que a recusa de cooperação é legitima  nº3 do mesmo preceito).
Antes de concluir a minha análise a este princípio, há espaço ainda para fazer uma menção (em traços gerais) à atuação do mesmo no Direito da União Europeia, pois penso que é interessante saber qual o sentido de atuação neste domínio. Como fora já referido, o sentido do princípio da cooperação é o facto de se articular a atuação de diversas entidades entre si, de modo a atingir uma certa coerência na atividade das mesmas. Num organismo como a União Europeia é fundamental existir essa tal articulação entre todos os sujeitos, pois deste referido princípio surge um dever de adoção de comportamentos que leve ao cumprimento dos Tratados, e consequentemente, resultará em uma harmonização jurídica do direito da U.E. Este princípio atua a um nível vertical (relação entre Estados Membros e UE) e a um nível horizontal (entre Estados Membros e entre instituições da UE), tal como podemos inferir do artigo 4º/3 TUE. No plano vertical, podemos identificar vários deveres resultantes deste princípio, tais como: Dever de respeito mútuo; dever de assistência mútua; dever de os Estados Membros respeitarem e executarem o DUE, transpondo-o para os respetivos ordenamentos jurídicos, que, no caso do nosso ordenamento, o DUE é recebido de forma automática, ou seja, as normas internacionais vigoram enquanto tais (artigo 8ºCRP). No que diz respeito à cooperação a nível horizontal, os Estados Membros colaboram entre si, refletindo-se na celebração de acordos/tratados, ou pelo facto de um ato administrativo praticado por um dos Estados Membros ser reconhecido como válido na ordem jurídica dos restantes Estados Membros. A este nível enquadra-se ainda a cooperação entre as próprias instituições da EU, dando como exemplo, o artigo 294ºTFUE, no qual se encontra estabelecida a articulação entre o Conselho, a Comissão e o Parlamento Europeu no processo legislativo ordinário. Este contexto torna-se necessário na medida em que foi do Princípio da Cooperação que surgiu o primado da união europeia, deduzido de jurisprudência europeia (2) .Esta aplicação direta do DUE irá ter consequências práticas visto que, quando um juiz nacional se vir confrontado com a dupla função de aplicar o Direito Interno e o DUE, este terá que interpretar o Direito Interno respeitando o DUE, daí surgir um mecanismo no âmbito do contencioso de união europeia, o chamado reenvio prejudicial, que se traduz na
cooperação judiciária entre o Tribunal de Justiça e os tribunais nacionais, previsto no art. 267º do TFUE. O juiz nacional dispõe do poder de intervir na aplicação judicial do Direito da União Europeia, nomeadamente através da não aplicação de normas nacionais desconformes com o Direito da União e/ou interpretando o direito nacional à luz do DUE. Portanto, os particulares beneficiam ainda de uma proteção jurídica do TJ para a salvaguarda dos seus direitos. No entanto, cabe referir que os particulares, apesar de poderem levantar questões de interpretação do DUE, não é condição suficiente para o juiz realizar o reenvio, pois este recurso não está na disposição das partes, cabendo ao juiz a submissão oficiosa do pedido de decisão   prejudicial(3).
Concluindo, é notória a importância deste princípio, quer a nível nacional, quer a nível europeu.  No âmbito do contencioso administrativo, assume o papel de “conciliador” ou de harmonização, quer entre as partes, quer entre as entidades descritas no artigo 8ºCPTA, que irá resultar em uma maior concretização dos efeitos pretendidos deste ramo do Direito, como  também desempenhará um papel fundamental na segurança jurídica do sistema, fomentando o nível de confiança dos particulares, levando-os a acreditar que, caso as entidades administrativas falhem no cumprimento dos seus deveres, podem contar com a justiça inerente no Contencioso Administrativo, de forma a resolverem os seus problemas de uma forma célere, equitativa e eficaz.
Airton Duarte.
BIBLIOGRAFIA:
- Andrade, José Carlos Vieira. A Justiça administrativa –Lições. 12ª edição. Almedina, 2012.
- Carvalho, Carlos. A Revisão Do Código De Processo Nos Tribunais Administrativos - I-CEJ "Princípios do processo administrativo - importância e aplicação prática”, 2017.
- Acórdão CILFIT, de 6 de outubro de 1982, proc. 283/81
- Acórdão Van Gend en Loos, de 5 de fevereiro de 1963, proc. 26/62
- Lebre de Freitas, José. Introdução ao Processo Civil-Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código. 3ªEdições. Coimbra Editora, 2013.
- Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional - Tomo II. 7ª edição. Coimbra Editora, 2013.
- Lanceiro, Rui Tavares. O princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública em especial as vinculações resultantes do direito da União Europeia para o procedimento administrativo nacional de prática de acto administrativo. Tese Doutoramento, Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, 2016.

1  Lebre de Freitas. Introdução ao Processo Civil-Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código. 3ªEdições. Coimbra Editora, 2013. p. 185 e ss.
2 Acórdão Van Gend en Loos, de 5 de fevereiro de 1963, proc. 26/62
3 Acórdão CILFIT, de 6 de outubro de 1982, proc. 283/81



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