Legitimidade processual
ativa: artigos 9.º e 55.º/1 CPTA
A legitimidade
processual é um dos pressupostos processuais relativos às partes, juntamente
com a personalidade judiciária, a capacidade judiciária e o patrocínio
judiciário. Isto significa que todos estes pressupostos têm de estar
preenchidos sob pena de a pessoa ou entidade não se poder configurar enquanto
parte no contexto de um processo administrativo. Quanto à legitimidade
processual podemos verificar que do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (CPTA, de agora em diante) constam várias normas detalhadas a
si atinentes, sendo um pressuposto cujo preenchimento se observa mediante a “relação
que (alegadamente) se estabelece entre as partes e uma concreta ação, com um objeto
determinado.”1. É um pressuposto processual “cuja titularidade se
afere por referência às alegações produzidas pelo autor. Possui, assim,
legitimidade ativa quem alegue a titularidade de uma situação cuja conexão com
o objeto da ação proposta o apresente como em condições de nela figurar como
autor e possui legitimidade passiva quem deva ser demandado na ação com o
objeto configurado pelo autor.”2.
Apesar destas duas
vertentes serem essenciais para o funcionamento do contencioso administrativo,
aqui iremos focar-nos apenas na vertente ativa, portanto, ligada ao autor. Para
este efeito teremos de recorrer ao CPTA, que apresenta um conjunto de normas
fundamentais, como sejam os artigos: 9.º, 55.º, 57.º, 68.º, 73.º 3 77.º-A.
Do artigo 9.º do
CPTA consta o regime comum quanto a esta matéria, no entanto é um regime que
vai acabar por assumir um caráter residual, dado que apenas se recorrerá a este
preceito quando o caso em concreto não se enquadre nos regimes especiais
próprios, que por sua vez, vão estar presentes nos restantes artigos, já aqui
referidos.
O artigo 9.º/1 do
CPTA centra-se no conceito de relação material controvertida, aliás como vemos
suceder num contexto processual civil. Quanto ao número 2 deste artigo, podemos
constatar, nas palavras de Mário Torres, um “fenómeno de extensão da
legitimidade”3, mediante a remissão para um outro mecanismo previsto
na lei. Esse mecanismo está presente na lei 83/95, correspondendo mais
concretamente, à ação popular, na sua vertente “que se define pela defesa”4
de determinados valores “constitucionalmente protegidos”5. Relevam
para este propósito por um lado os artigos 2.º e 3.º, e por outro, os artigos
13.º e seguintes da referida lei. Apesar da sua denominação importa sublinhar
que a ação popular não corresponde a uma forma de processo, podendo por isso
revestir qualquer das formas de processo previstas no CPTA, tal como decorre do
artigo 12.º/1, da lei 83/95. Neste contexto o que sucede é que há uma
necessidade de articular e conjugar as regras gerais de tramitação com as
especiais previstas na lei, mais concretamente nos artigos 13.º e seguintes.
Dado que não estamos perante um “processo especial acabado”6 devemos
apenas “introduzir um conjunto de especialidades no modelo normal de tramitação
a que esses processos estão subordinados”.7
Avançando agora
para o regime especial da ação de impugnação de atos administrativos, no âmbito
da legitimidade ativa, centrar-nos-emos essencialmente no disposto no artigo
55.º/1 do CPTA. Quanto à alínea a) do número 1 deste artigo, relevam as
expressões “interesse direto e pessoal” e “nos seus direitos ou interesses
legalmente protegidos”, que estão interligadas. Estas expressões vão traduzir a
possibilidade de pedir a anulação ou declaração de nulidade de determinado ato
administrativo por alguém que está a sofrer consequências desfavoráveis na sua
esfera jurídica, havendo apenas que respeitar os requisitos do interesse ser
“direto” e “pessoal”. Isto porque a expressão “lesado pelo ato nos seus
direitos e interesses legalmente protegidos” corresponde a uma das
concretizações possíveis, podendo haver outras, na opinião de Mário Aroso de
Almeida.
Quanto ao caráter
pessoal do interesse trata-se de “ exigir que a utilidade que o interessado
pretende obter com a anulação ou declaração de nulidade do ato impugnado seja
uma utilidade pessoal, que ele reivindique para si próprio, de modo a poder
afirmar-se que o impugnante é considerado parte legítima porque alega ser ele
próprio, o titular do interesse em nome do qual se move no processo.”8.
Quanto ao caráter
direto do interesse, exige-se para que se possa recorrer a este tipo de ação
impugnatória de atos administrativos, que haja uma atualidade e efetividade da
lesão na esfera jurídica do autor. “O interesse direto contrapõe-se, assim, a
um interesse meramente longínquo, eventual ou hipotético, que não se dirija a
uma utilidade que possa advir diretamente da anulação do ato impugnado.”9.
Mário Aroso de
Almeida apresenta na sua obra “Manual de Processo Administrativo” exemplos
esclarecedores quanto a esta dualidade de requisitos do interesse. Um deles
prende-se com o ato de admissão de um concorrente num concurso; detendo os
restantes concorrentes legitimidade para impugnar o ato, pelo menos do ponto de
vista pessoal, uma vez que a “utilidade que pretendem obter (…) é uma utilidade
pessoal.”10. Neste exemplo, o que está em causa é o preenchimento do
requisito do interesse direto, dado que é duvidoso que haja uma efetiva e atual
lesão, pois que “ a mera admissão de um concorrente, que não lhe assegura
qualquer posição na graduação final do concurso, não é direta ou imediatamente
lesiva dos outros concorrentes, que podem não vir a ser por ela prejudicados.”11.
Deste modo, a maioria da jurisprudência conclui no sentido de que, neste caso,
não há titularidade de um interesse direto em impugnar.
Se este exemplo é
claro, outros podem apresentar uma certa controvérsia em seu torno. É o caso
dos pareceres vinculativos em que pode também, mais uma vez, pôr-se em causa o
interesse direto em impugnar do requerente que aguarde decisão final. Na ótica
de Mário Aroso de Almeida, o requerente não teria interesse direto em impugnar,
dado que o parecer vinculativo releva apenas no contexto das relações que se
desenvolvem entre o emissor do parecer e o órgão que a ele está vinculado.
Apesar disto, a
verdade é que na jurisprudência portuguesa tem havido uma evolução no sentido
de uma maior permissão. Isto é, de início a impugnabilidade de pareceres
vinculativos pelo requerente não era admitida, contudo a partir de 2001 começam
a surgir alguns acórdãos que sugerem a solução oposta.
É o caso do
acórdão do Pleno de 15 de novembro de 2001, Processo n.º 37.811, onde consta o
seguinte: “Este parecer, de natureza desfavorável à recorrente foi (…)
consubstanciando, antes, uma avaliação traduzida na emissão de um juízo crítico
de um órgão que, por opção legal, tem um sentido determinante sobre o sentido
da decisão procedimental, já que impõe mesmo o sentido desta (…). (…) Tal
parecer realizou não apenas uma função definitória ou concretizadora do direito
aplicável a uma relação jurídica que se constituíra entre dois órgãos da
Administração (…) mas também em relação aos próprios particulares requerentes.
Assume, assim, no caso concreto, a natureza de um ato prejudicial do
procedimento (…) na medida em que define logo a posição jurídica dos
interessados, ou seja, compromete irreversivelmente o sentido da decisão
final.”.
Saindo do contexto
da alínea a), do número 1, importa agora analisar as restantes. Quanto à alínea
b) que atribui legitimidade ao Ministério Público; é um preceito que podemos
relacionar com o disposto no artigo 51.º do ETAF, onde se encontram resumidas
as funções desta entidade; podendo enquadrar esta legitimidade ativa na função
de defesa da legalidade democrática e na promoção da realização do interesse
público.
Relativamente à
alínea c), esta atribui legitimidade a dois tipos de entidades: as pessoas
coletivas públicas e as pessoas coletivas privadas. Quanto às primeiras podemos
dizer que o ato impugnado tem de ser contrário aos interesses legalmente estabelecidos
como atribuições dessas pessoas coletivas. Só assim será possível proceder à
impugnação do ato.
Quanto às
segundas, entidades privadas, dizem respeito a um grupo vasto de entidades,
incluindo associações políticas, sindicais e patronais. Destaca-se aqui a
expressão da alínea c) “quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra
defender.”, dado que é aqui que assenta o sentido desta atribuição de
legitimidade ativa. Estas entidades terão legitimidade ativa para impugnar atos
administrativos na medida em que tenham sido criadas para tutelar e proteger
direitos e interesses, postos em causa com esse mesmo ato.
Deste modo, será
em observância dos estatutos ou atos constitutivos de cada entidade que será
possível identificar os fins de cuja defesa se incumbe, limitando-se a sua
legitimidade processual a esse mesmo âmbito. Fora deste preceito está,
portanto, a ideia de defesa de interesses estritamente individuais de
associados.
Analisaremos de
seguida o disposto na alínea d), do número 1, do artigo 55.º do CPTA. Quanto a
esta alínea importa referir que lhe foi dada uma nova redação com a revisão de
2015, e que ela abrange apenas um contexto de relações interorgânicas e não
relações hierárquicas. Tanto assim é, que o preceito faz referência “a atos praticados
por outros órgãos que (…)
alegadamente comprometam as condições do exercício de competências legalmente conferidas”
àquele órgão. Este preceito vai estar muito ligado à realidade atual onde se
observa a distribuição de competência, mediante a atribuição a cada órgão de
uma esfera de ação pela qual é responsável. Daí que quando um dos órgãos
pratica atos fora da sua esfera própria ou que contendam com a esfera de outro,
este outro pode impugnar tal ato, com base nesta alínea d).
Quanto
à alínea seguinte, alínea e), ela centra-se na ideia de que para os titulares
de órgãos administrativos impugnarem decisões dos respetivos órgãos tem de
existir uma previsão normativa especial a permiti-lo. Para além disto, foca-se
também na figura dos presidentes de órgãos colegiais, podendo estabelecer um
paralelo ou ligação com o disposto no artigo 21.º/4 CPA.
Para
finalizar cabe apenas fazer referência à alínea f), que na prática nada traz de
novo, para além do que já se encontra no artigo 9.º/2, ao qual já fizemos
menção. Nas palavras de Mário Aroso de Almeida: “esta previsão nada acrescenta,
(…) pelo que apenas consta do elenco do artigo 55.º num propósito de
completude”12. É apenas de ressalvar que na parte em que a remissão
se refere ao Ministério Público esta não deve valer, no sentido em que a
legitimidade do Ministério já vem prevista no artigo 55.º/1, b), que detém um
âmbito mais alargado, sendo mesmo ilimitado.
1 ALMEIDA, Mário
Aroso (2016), Manual de Processo
Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 206.
2 ob. cit. p. 209.
3 ob. cit. p. 215.
4 e 5 ob.
cit. p. 216.
6 e 7 ob.
cit. p. 217.
8 e 9 ob. cit.
p.221.
10 e 11 ob.
cit. p. 222.
12 ob. cit. p. 229.
Bibliografia
ALMEIDA, Mário Aroso; CADILHA, Carlos
Fernandes (2017), Comentário ao Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Almedina, pp 93-103;
370-388.
SILVA, Vasco Pereira (2016), O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, 2.ª edição, Almedina, pp 331-377.
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