domingo, 4 de novembro de 2018

Legitimidade processual ativa: artigos 9.º e 55.º/1 CPTA

A legitimidade processual é um dos pressupostos processuais relativos às partes, juntamente com a personalidade judiciária, a capacidade judiciária e o patrocínio judiciário. Isto significa que todos estes pressupostos têm de estar preenchidos sob pena de a pessoa ou entidade não se poder configurar enquanto parte no contexto de um processo administrativo. Quanto à legitimidade processual podemos verificar que do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA, de agora em diante) constam várias normas detalhadas a si atinentes, sendo um pressuposto cujo preenchimento se observa mediante a “relação que (alegadamente) se estabelece entre as partes e uma concreta ação, com um objeto determinado.”1. É um pressuposto processual “cuja titularidade se afere por referência às alegações produzidas pelo autor. Possui, assim, legitimidade ativa quem alegue a titularidade de uma situação cuja conexão com o objeto da ação proposta o apresente como em condições de nela figurar como autor e possui legitimidade passiva quem deva ser demandado na ação com o objeto configurado pelo autor.”2.
Apesar destas duas vertentes serem essenciais para o funcionamento do contencioso administrativo, aqui iremos focar-nos apenas na vertente ativa, portanto, ligada ao autor. Para este efeito teremos de recorrer ao CPTA, que apresenta um conjunto de normas fundamentais, como sejam os artigos: 9.º, 55.º, 57.º, 68.º, 73.º 3 77.º-A.
Do artigo 9.º do CPTA consta o regime comum quanto a esta matéria, no entanto é um regime que vai acabar por assumir um caráter residual, dado que apenas se recorrerá a este preceito quando o caso em concreto não se enquadre nos regimes especiais próprios, que por sua vez, vão estar presentes nos restantes artigos, já aqui referidos.
O artigo 9.º/1 do CPTA centra-se no conceito de relação material controvertida, aliás como vemos suceder num contexto processual civil. Quanto ao número 2 deste artigo, podemos constatar, nas palavras de Mário Torres, um “fenómeno de extensão da legitimidade”3, mediante a remissão para um outro mecanismo previsto na lei. Esse mecanismo está presente na lei 83/95, correspondendo mais concretamente, à ação popular, na sua vertente “que se define pela defesa”4 de determinados valores “constitucionalmente protegidos”5. Relevam para este propósito por um lado os artigos 2.º e 3.º, e por outro, os artigos 13.º e seguintes da referida lei. Apesar da sua denominação importa sublinhar que a ação popular não corresponde a uma forma de processo, podendo por isso revestir qualquer das formas de processo previstas no CPTA, tal como decorre do artigo 12.º/1, da lei 83/95. Neste contexto o que sucede é que há uma necessidade de articular e conjugar as regras gerais de tramitação com as especiais previstas na lei, mais concretamente nos artigos 13.º e seguintes. Dado que não estamos perante um “processo especial acabado”6 devemos apenas “introduzir um conjunto de especialidades no modelo normal de tramitação a que esses processos estão subordinados”.7
Avançando agora para o regime especial da ação de impugnação de atos administrativos, no âmbito da legitimidade ativa, centrar-nos-emos essencialmente no disposto no artigo 55.º/1 do CPTA. Quanto à alínea a) do número 1 deste artigo, relevam as expressões “interesse direto e pessoal” e “nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”, que estão interligadas. Estas expressões vão traduzir a possibilidade de pedir a anulação ou declaração de nulidade de determinado ato administrativo por alguém que está a sofrer consequências desfavoráveis na sua esfera jurídica, havendo apenas que respeitar os requisitos do interesse ser “direto” e “pessoal”. Isto porque a expressão “lesado pelo ato nos seus direitos e interesses legalmente protegidos” corresponde a uma das concretizações possíveis, podendo haver outras, na opinião de Mário Aroso de Almeida.
Quanto ao caráter pessoal do interesse trata-se de “ exigir que a utilidade que o interessado pretende obter com a anulação ou declaração de nulidade do ato impugnado seja uma utilidade pessoal, que ele reivindique para si próprio, de modo a poder afirmar-se que o impugnante é considerado parte legítima porque alega ser ele próprio, o titular do interesse em nome do qual se move no processo.”8.
Quanto ao caráter direto do interesse, exige-se para que se possa recorrer a este tipo de ação impugnatória de atos administrativos, que haja uma atualidade e efetividade da lesão na esfera jurídica do autor. “O interesse direto contrapõe-se, assim, a um interesse meramente longínquo, eventual ou hipotético, que não se dirija a uma utilidade que possa advir diretamente da anulação do ato impugnado.”9.
Mário Aroso de Almeida apresenta na sua obra “Manual de Processo Administrativo” exemplos esclarecedores quanto a esta dualidade de requisitos do interesse. Um deles prende-se com o ato de admissão de um concorrente num concurso; detendo os restantes concorrentes legitimidade para impugnar o ato, pelo menos do ponto de vista pessoal, uma vez que a “utilidade que pretendem obter (…) é uma utilidade pessoal.”10. Neste exemplo, o que está em causa é o preenchimento do requisito do interesse direto, dado que é duvidoso que haja uma efetiva e atual lesão, pois que “ a mera admissão de um concorrente, que não lhe assegura qualquer posição na graduação final do concurso, não é direta ou imediatamente lesiva dos outros concorrentes, que podem não vir a ser por ela prejudicados.”11. Deste modo, a maioria da jurisprudência conclui no sentido de que, neste caso, não há titularidade de um interesse direto em impugnar.
Se este exemplo é claro, outros podem apresentar uma certa controvérsia em seu torno. É o caso dos pareceres vinculativos em que pode também, mais uma vez, pôr-se em causa o interesse direto em impugnar do requerente que aguarde decisão final. Na ótica de Mário Aroso de Almeida, o requerente não teria interesse direto em impugnar, dado que o parecer vinculativo releva apenas no contexto das relações que se desenvolvem entre o emissor do parecer e o órgão que a ele está vinculado.
Apesar disto, a verdade é que na jurisprudência portuguesa tem havido uma evolução no sentido de uma maior permissão. Isto é, de início a impugnabilidade de pareceres vinculativos pelo requerente não era admitida, contudo a partir de 2001 começam a surgir alguns acórdãos que sugerem a solução oposta.
É o caso do acórdão do Pleno de 15 de novembro de 2001, Processo n.º 37.811, onde consta o seguinte: “Este parecer, de natureza desfavorável à recorrente foi (…) consubstanciando, antes, uma avaliação traduzida na emissão de um juízo crítico de um órgão que, por opção legal, tem um sentido determinante sobre o sentido da decisão procedimental, já que impõe mesmo o sentido desta (…). (…) Tal parecer realizou não apenas uma função definitória ou concretizadora do direito aplicável a uma relação jurídica que se constituíra entre dois órgãos da Administração (…) mas também em relação aos próprios particulares requerentes. Assume, assim, no caso concreto, a natureza de um ato prejudicial do procedimento (…) na medida em que define logo a posição jurídica dos interessados, ou seja, compromete irreversivelmente o sentido da decisão final.”.
Saindo do contexto da alínea a), do número 1, importa agora analisar as restantes. Quanto à alínea b) que atribui legitimidade ao Ministério Público; é um preceito que podemos relacionar com o disposto no artigo 51.º do ETAF, onde se encontram resumidas as funções desta entidade; podendo enquadrar esta legitimidade ativa na função de defesa da legalidade democrática e na promoção da realização do interesse público.
Relativamente à alínea c), esta atribui legitimidade a dois tipos de entidades: as pessoas coletivas públicas e as pessoas coletivas privadas. Quanto às primeiras podemos dizer que o ato impugnado tem de ser contrário aos interesses legalmente estabelecidos como atribuições dessas pessoas coletivas. Só assim será possível proceder à impugnação do ato.
Quanto às segundas, entidades privadas, dizem respeito a um grupo vasto de entidades, incluindo associações políticas, sindicais e patronais. Destaca-se aqui a expressão da alínea c) “quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra defender.”, dado que é aqui que assenta o sentido desta atribuição de legitimidade ativa. Estas entidades terão legitimidade ativa para impugnar atos administrativos na medida em que tenham sido criadas para tutelar e proteger direitos e interesses, postos em causa com esse mesmo ato.
Deste modo, será em observância dos estatutos ou atos constitutivos de cada entidade que será possível identificar os fins de cuja defesa se incumbe, limitando-se a sua legitimidade processual a esse mesmo âmbito. Fora deste preceito está, portanto, a ideia de defesa de interesses estritamente individuais de associados.
Analisaremos de seguida o disposto na alínea d), do número 1, do artigo 55.º do CPTA. Quanto a esta alínea importa referir que lhe foi dada uma nova redação com a revisão de 2015, e que ela abrange apenas um contexto de relações interorgânicas e não relações hierárquicas. Tanto assim é, que o preceito faz referência “a atos praticados por outros órgãos que (…) alegadamente comprometam as condições do exercício de competências legalmente conferidas” àquele órgão. Este preceito vai estar muito ligado à realidade atual onde se observa a distribuição de competência, mediante a atribuição a cada órgão de uma esfera de ação pela qual é responsável. Daí que quando um dos órgãos pratica atos fora da sua esfera própria ou que contendam com a esfera de outro, este outro pode impugnar tal ato, com base nesta alínea d).
Quanto à alínea seguinte, alínea e), ela centra-se na ideia de que para os titulares de órgãos administrativos impugnarem decisões dos respetivos órgãos tem de existir uma previsão normativa especial a permiti-lo. Para além disto, foca-se também na figura dos presidentes de órgãos colegiais, podendo estabelecer um paralelo ou ligação com o disposto no artigo 21.º/4 CPA.
Para finalizar cabe apenas fazer referência à alínea f), que na prática nada traz de novo, para além do que já se encontra no artigo 9.º/2, ao qual já fizemos menção. Nas palavras de Mário Aroso de Almeida: “esta previsão nada acrescenta, (…) pelo que apenas consta do elenco do artigo 55.º num propósito de completude”12. É apenas de ressalvar que na parte em que a remissão se refere ao Ministério Público esta não deve valer, no sentido em que a legitimidade do Ministério já vem prevista no artigo 55.º/1, b), que detém um âmbito mais alargado, sendo mesmo ilimitado.



1 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 206.
2 ob. cit. p. 209.
3 ob. cit. p. 215.
4 e 5 ob. cit. p. 216.
6 e 7 ob. cit. p. 217.
8 e 9 ob. cit. p.221.
10 e 11 ob. cit. p. 222.
12 ob. cit. p. 229.


Bibliografia
ALMEIDA, Mário Aroso; CADILHA, Carlos Fernandes (2017), Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Almedina, pp 93-103; 370-388.
SILVA, Vasco Pereira (2016), O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição, Almedina, pp 331-377.


Catarina Alexandra Niza Madeira, número 28263, subturma 8

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