Legitimidade activa no seu regime comum do art. 9º
Legitimidade pode definir-se como o poder de condução
do processo, ou seja, como o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou
a defesa contra ela oponível[1]. Esta constitui um
pressuposto processual (noção apoiada pela generalidade da doutrina) relativo
às partes. Se, por um lado, como nos diz Mário Aroso de Almeida, a
personalidade e capacidade judiciária dizem respeito a atributos próprios da
pessoa, a legitimidade afere-se em função da concreta relação que se estabelece
entre as partes e uma concreta acção, com um objecto determinado[2],[3].
A autonomização do tratamento da legitimidade
processual no âmbito do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA)
justifica-se pela relevância das especificidades que, a diversos níveis, o
contencioso administrativo apresenta neste domínio, distintas do que resulta do
processo civil[4],
conforme nos diz Mário Aroso de Almeida[5]. Ainda assim, apesar das
diferenças que as separam, a verdade é que é perfeitamente possível traçar um
paralelismo entre a legitimidade processual administrativa e a legitimidade
processual civil.
Para o Direito Processual Civil, a legitimidade vem
regulada no art. 30º Código do Processo Civil (CPC). Diz-nos este artigo, no
seu número 3, que “são considerados titulares do interesse relevante para o
efeito de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é
configurada pelo autor”, ou seja, a legitimidade processual é a “susceptibilidade
de ser parte numa acção aferida em função da relação dessa parte com o objecto da acção”[6]. O preceito consagra a
legitimidade processual como um pressuposto processual, como condição para a
obtenção de um juízo de mérito (e não mera condição de procedência da acção),
cuja titularidade se afere por referência às alegações produzidas pelo autor,
ou seja, será parte legítima no processo quem alegue ser parte na relação
material controvertida.
No que respeita ao Direito Administrativo, a
legitimidade processual vem genericamente consagrada nos arts. 9º e 10º do
CPTA, legitimidade activa e passiva, respectivamente. A primeira pertence a quem
“alegue a titularidade de uma situação cuja conexão com o objecto da acção
proposta o apresente como em condições de figurar nela como autor”[7]. Já a segunda pertence a
quem “deva ser demandado na acção com o objecto configurado pelo autor”[8]. Caso, durante a
apreciação da causa, se conclua que a questão não se colocava nos termos em que
o autor a apresentou, haverá lugar a absolvição do pedido e não da instância,
visto o juízo ser fundado no mérito da causa de pedir.
Centrando a nossa análise na legitimidade activa, esta
vem definida no art. 9º/1:
1 - Sem prejuízo do disposto no número
seguinte e no capítulo II do título II, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação
material controvertida.
A legitimidade activa tanto pode caber a particulares
como a entidades públicas, podendo tanto uns como outros ser parte em relações
jurídico-administrativas, com interesse em submetê-las à apreciação dos
tribunais administrativos. Nas palavras do professor Vieira de Andrade, “esta
implica a titularidade de um direito (potestativo) de acção”[9].
Ainda na análise do art. 9º/1 CPTA, como foi antes
referido, é perfeitamente possível fazer uma comparação entre legitimidade no
CPTA e no CPC. E esta reside, precisamente, neste art. 9º. Tanto este como o
art. 30º/3 (supra-referido) “atribuem” legitimidade a quem seja parte na
relação controvertida. Assim, é possível traçar um paralelismo entre a
legitimidade processual civil e a legitimidade processual administrativa. Em muitos aspectos, conforme nos diz Paula Meira Lourenço[10], da análise de
casos como o do patrocínio judiciário ou o interesse de terceiros, a revisão do
CPTA reforça a convergência processual entre processo administrativo e civil. A
legitimidade tem, quase à letra, a mesma definição, na sua fórmula geral, nas duas
legislações.
Avançando agora para a analise do nº2 do art. 9º, este
diz-nos:
2 - Independentemente de ter interesse
pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como
as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm
legitimidade para propor e intervir, nos termos
previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos,
como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo,
o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e
das autarquias locais, assim como para
promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais.
Parte da doutrina[11] faz a ressalva de que a
titularidade é alegada, a da relação controvertida por parte do autor. Isto
porque, tipicamente, a decisão do tribunal só tem interesse aos implicados direitos na relação jurídico-administrativa a que se refere o litígio. Contudo,
a mera admissão da acção popular social vem traduzir uma realidade em que tal
não se verifica. E é precisamente este artigo que vem abrir portas a esta
realidade, ao admitir extensão da legitimidade processual a quem não alegue ser
parte na relação material submetida à apreciação do tribunal[12].
No art. 9º/2 vêm enumeradas algumas entidades a que se
atribui o exercício do direito de acção popular (consagrado no art. 52º n.º3 CRP)
para defesa de interesses difusos, nos termos da lei (Lei n.º 83/95, de 31 de
Agosto, lei para a qual é feita remissão quando o artigo refere “nos termos
previstos na lei”), nomeadamente, Ministério
Público e as autarquias locais. Genericamente, este é um direito de exercício a
qualquer pessoa singular enquanto membro da comunidade. Assim sendo, qualquer
cidadão, no gozo dos seus direitos civis e políticos (art. 2º, n. º1 da Lei
n.º83/95), pode fazer-se valer do direito de ação popular, para defesa de
valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde publica e o ambiente,
entre muitos outros[13].
Assim sendo, é possível afirmar que legitimidade é um
conceito complexo, com diversas vertentes. Do art. 9º/2 é feita remissão, como
já foi referido, para a lei º83/95. Esta última densifica o conceito de
legitimidade nos seus artigos 2º, 3º e 13º e seguintes. Contudo, ao longo do CPTA,
vários são os artigos que aprofundam e tornam mais complexo este conceito. É o
caso dos arts. 55º, 68º, 73º e 77º que prevêem uma forma de Legitimidade activa na acção administrativa
especial, ou do art. 40º que a leva para as acções sobre contratos, ou ainda dos
arts. 97º, 98º, 103º, 104º e 109º que estabelecem o regime da legitimidade para
os processos declarativos urgentes.
Em suma, paralelo ao conceito de legitimidade do Processo
Civil, a legitimidade activa consiste na alegada titularidade de uma situação
cuja conexão com o objecto da acção proposta o apresente como em condições de figurar
nela como autor, ou seja, não se basta da existência de um interesse directo no litígio mas abrange os casos de um interesse difuso. Este último leva à
possibilidade do exercício do direito de acção popular, exercício este que,
segundo o professor Vasco Pereira da Silva[14], foi exercitado quatro
vezes nos últimos vinte anos, o que, no ver do mesmo professor não retira
qualquer importância ao direito e, consequentemente, à previsão da legitimidade
para interesses difusos.
ANDRADE, José Carlos Vieira de, Justiça
Administrativa
ANTUNES VARELA, João de Matos, Manual
de Direito Processual Civil, Coimbra Editora
AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de
Processo Administrativo, 3ª edição, 2017, Almedina
CUNHA, António Júlio, Direito Processual Civil
Declarativo, 2ª edição, 2015, Quid Juris
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no divã da
psicanálise, 2.ª edição, 2009, Coimbra
TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, Introdução ao Processo
Civil, Almedina
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_RevisaoCPTA_I.pdf
Joana Luís Gonçalves
[1]ANTUNES VARELA, João
de Matos, Manual de Direito Processual Civil, Coimbra Editora
[2]AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de
Processo Administrativo, 3ª edição, 2017, Almedina
[3] Também nesse sentido vai António
Júlio Cunha, em Direito Processual Civil Declarativo, páginas 73 e seguintes.
[4] Neste, diz-nos António Júlio
Cunha, que legitimidade é “o poder de deduzir uma determinada concreta pretensão”.
[5]AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de
Processo Administrativo, 3ª edição, 2017, Almedina
[6]TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, Introdução
ao Processo Civil, Almedina
[7] AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de
Processo Administrativo, 3ª edição, 2017, Almedina
[8] AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de
Processo Administrativo, 3ª edição, 2017, Almedina
[9] ANDRADE, José Carlos Vieira de,
Justiça Administrativa
[10] http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_RevisaoCPTA_I.pdf
[11] Entre outros, Vieira de Andrade e
Aroso de Almeida
[13] AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de
Processo Administrativo, 3ª edição, 2017, Almedina
[14] PEREIRA DA
SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise, 2.ª edição,
2009, Coimbra
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