domingo, 4 de novembro de 2018

O Decretamento Provisório de Providências Cautelares

João Rocha*
O decretamento provisório das providências cautelares
Breve noção
Cumpre, antes de mais, fazer uma breve referência e enquadramento daquilo que são as providências cautelares.
Tal como a designação indica, as providências cautelares, são meios processuais provisórios que se dirigem à obtenção de providências adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo, afirmação decorrente do artigo 112º nº1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos doravante designado por CPTA.
As providências cautelares são caracterizadas pela instrumentalidade (o processo só pode ser desencadeado por quem tenha legitimidade para intentar um processo principal e o processo cautelar apesar de ser tramitado autonomamente como processo urgente, ele depende da causa que tem por objecto a decisão sobre o mérito, decorrente do artigo 113º nº1 CPTA), pela provisoriedade (de um modo geral, ela é intentada antes da acção principal, daí o seu carácter provisório) e pela sumariedade (ligada à urgência seguem uma tramitação célere).
Cumpre destacar, que o decretamento das providências cautelares é um direito consagrado e inscrito na Constituição da República Portuguesa (doravante designada por CRP), presente no artigo 268º nº4, pois a tutela jurisdicional que a CRP garante (garantia de acesso aos Tribunais) revela uma maior segurança aos administrados, tendo assim um meio de escape para a morosidade dos processos.
As providências cautelares têm pressupostos legais que têm de ser preenchidos, sendo eles:
- a existência de um direito, traduzido na acção proposta ou a propor que tenha por fundamento o direito a tutelar.
- o justo e fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação a esse direito.
- a providência cautelar não deve exceder o prejuízo resultante da providência perante o dano que com ela se quer evitar. 


Alterações importantes aquando da revisão do CPTA em 2015
É de salientar que os processos cautelares estão presentes nos artigos 112º a 134º do CPTA respeitantes ao Título IV.
A partir de 2002 a tutela cautelar passou a adoptar providências cautelares antecipatórias ou conservatórias como decorre do artigo 112º nº1 do CPTA. Foram contempladas no artigo 112º nº2 CPTA, várias medidas cautelares, já não com a sigla “especificadas” como se dispunha anteriormente e passaram a incluir-se procedimentos cautelares como o arresto (artigo 112º nº2 alínea f)), o embargo de obra nova (artigo 112º nº2 alínea g)) e o arrolamento (artigo 112º nº2 alínea h)).
Passou igualmente a incluir-se o poder de o requerente proceder à substituição ou ampliação do pedido oferecendo novos meios de prova “com fundamento em alteração superveniente dos pressupostos de facto ou de direito1”, evitando “decisões desajustadas temporalmente”.
Outra alteração importante é a que consta do artigo 113º nº5 do CPTA que reconhece ao Ministério Público “o poder de requerer o prosseguimento do processo cautelar já intentado pelo primitivo autor na acção”.
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*João Rocha Nº 26482
1 Artigo 113º nº4 CPTA.

Igualmente importante foi a alteração que ocorreu a nível do requerimento cautelar presente no artigo 114º CPTA, com a adição da alínea j) correspondente ao valor da causa, tendo o legislador igualmente modificado o nº4 do mesmo artigo onde o interessado pode pedir que a citação seja urgente segundo a lei processual civil, para desta forma evitar a mora da citação que por vezes contrariava a urgência do processo.
Outra inovação é decorrente do artigo 131º do CPTA dizendo “respeito à possibilidade de o interessado poder pedir, no requerimento inicial, que o juiz proceda, “no despacho liminar”, ao decretamento provisório da providência2”.
Relativamente ao artigo 116º do CPTA, houve um encurtar do prazo para ser emitido o despacho liminar estabelecendo como prazo máximo 48 horas sendo o requerimento admitido.
Para efeitos do artigo 116º do CPTA, foram consagrados novos fundamentos de rejeição do requerimento, para além dos já existentes e que foram consagrados no nº2 do preceito nas alíneas d), e) e f).
Esta formulação é, no entanto, passível de algumas críticas pela sua própria redacção, embora não cumprindo aqui o dever de desenvolver as mesmas.
Outra novidade presente no CPTA de 2015 está no artigo 116º nº5 e que é de relevante importância, pois confere ao juiz o poder de decretar a providência requerida ou aquela que no entender do mesmo, se julgue mais adequada, quando reconheça uma situação de especial urgência tal como consta do artigo 131º nº1 do CPTA.
Relativamente à produção de prova3 são introduzidos novos limites (número de testemunhas, no máximo cinco) o que faz todo o sentido dado o carácter urgente do processo.
O artigo 119º nº 2 do CPTA contém uma disposição não muito feliz, pois faz com que em primeira instância seja eliminado o funcionamento do colectivo de juízes, sendo que o colectivo terá vantagens que se podem pautar pela imparcialidade e independência contribuindo para a qualidade das decisões, pelo debate que o mesmo convoca4.

Decretamento provisório das providências cautelares
Depois do aludido anteriormente, referente a algumas alterações que o CPTA sofreu após a revisão de 2015, e do enquadramento de alguns pontos da matéria, cumpre abordar o tema principal deste trabalho.
Dado que o decretamento provisório da providência se encontra previsto no artigo 131º CPTA, irão ser abordadas de forma mais aprofundada todas as alterações que ocorreram e todos os preceitos ínsitos no mesmo.
O decretamento provisório da providência cautelar constitui um aspecto suplementar do regime cautelar e vale para qualquer providência em situações de especial urgência.
Em primeiro lugar, e antes da revisão de 2015, o artigo 131º nº1 CPTA “estabelecia que o decretamento provisório podia ser pedido quando a providência requerida no processo cautelar se destinasse a tutelar direitos, liberdades e garantias que de outro modo não pudessem ser exercidos em tempo útil ou quando o requerente entendesse haver especial urgência5”.
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2 Fernanda Maçãs, Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, 2ª ed., AAFDL, 2016, p. 732.
3 Artigo 118 CPTA.
4 Jean Gourdon/Antoine Bourrel, Les référés d’urgence devant le juge administratif, L’Harmattan, Paris, 2002, p. 11.
5 Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2ª ed., Almedina, 2016, p.429.

O que quer dizer que a “especial urgência” era encarada nas situações de risco de lesão irreversível de direitos, liberdades e garantias.
Com a revisão de 2015, isso alterou-se, pois refere que basta “a existência de uma situação de especial urgência,” para que seja possível o decretamento provisório de uma providência cautelar, e já não necessariamente a lesão de um direito, liberdade ou garantia. Esta densificação do conceito especial de urgência serve para acautelar situações de perigo de lesão iminente e irreversível. Como refere Vieira de Andrade, tratando-se de uma decisão cautelar provisória percebe-se o porquê de poder ser decretada sem contraditório, e Vieira de Andrade acrescenta ainda que se pode prescindir da aplicação dos critérios do artigo 120º do CPTA, pois para o decretamento provisório basta para além do interesse em agir, ter ainda de se verificar a especial perigosidade para direitos, liberdades e garantias ou para outros bens jurídicos em situação de especial urgência. Mário Aroso de Almeida apelida este instituto de “tutela cautelar de segundo grau” que se destina a evitar o periculum in mora.
“O periculum in mora constitui verdadeiro leitmotiv da tutela cautelar, pois é o fundado receio de que a demora, na obtenção de decisão no processo principal, cause uma situação de facto consumado ou prejuízos de difícil ou impossível reparação aos interesses perseguidos nesse processo que justifica este tipo de tutela urgente6;”.
Outra novidade com a revisão de 2015 diz respeito ao facto de o decretamento provisório não ter de ser pedido logo no próprio requerimento, mas poder ter lugar no despacho liminar ou durante a pendência do processo cautelar, tendo de se invocar o fundamento da alteração superveniente dos pressupostos de facto ou de direito, por iniciativa do juiz a título oficioso ou do próprio interessado, tal como decorre do nº1 e nº2 do artigo 131º do CPTA.
O prazo de decisão é no máximo de 48 horas, tendo essa decisão de ser fundada numa situação perfunctória da situação fática, prescindindo do princípio do contraditório e de diligências instrutórias, que bem se entende que assim seja, porque caso contrário, haveria perigo de alguma lesão irreversível ser causada sem ser possível a sua reparação.
O decretamento reduz-se a um único momento não sendo passível de impugnação (artigo 131º nº4 do CPTA).
Acresce ainda que “o decretamento provisório é notificado de imediato às pessoas e entidades que o devam cumprir, sendo aplicável, em caso de incumprimento, o disposto nos n.ºs 4 a 6 do artigo 128.º, com as adaptações que se mostrem necessárias.”.
Se após a notificação à entidade requerida, a mesma continuar a ter comportamentos que possam comprometer o objecto do litígio, o particular pode pedir ao tribunal que esses comportamentos do requerido não produzam efeitos (artigo 128º nº4 CPTA).
Anteriormente a esta revisão, existiam dois momentos: no primeiro momento era tomada a decisão de urgência em 48 horas, podendo ser confirmada ou não em momento posterior, tendo em conta o princípio do contraditório (contraditório das partes) e a realização de diligências instrutórias. Só após a realização destas diligências e contraditório é que o tribunal tomava a decisão definitiva podendo alterar ou confirmar o que antes tinha decidido. Isto gerava muita insegurança.
Com esta revisão, a Administração pode não ser chamada ao processo para exercer o contraditório. No entanto, feita a notificação, podem os requeridos solicitar o levantamento da providência provisoriamente decretada durante a pendência do processo cautelar "sendo o requerimento decidido por aplicação do nº2 
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6 Acórdão STA, processo 0435/18 de 14-06-2018.

do artigo 120.º, depois de ouvido o requerente pelo prazo de cinco dias e de produzida a prova que o juiz considere necessária”, tal como decorre do artigo 131º nº6 do CPTA. 
Posto isto, a adopção da providência pode ser recusada quando, ponderados os interesses em causa (públicos e privados), os danos que a mesma causaria forem superiores aos danos da sua recusa, tal como decorre do artigo 120º nº2 do CPTA.
Este ponto do artigo 131º nº6 do CPTA, embora as alterações sofridas, é susceptível de divergência na Doutrina.
Fernanda Maçãs refere que embora os esforços de simplificação, as alterações efectuadas não sejam as mais adequadas a introduzir melhorias na interpretação e na aplicação do mecanismo, “quando atualmente muitas das dúvidas iniciais foram dissipadas, em resultado do esforço da doutrina e da jurisprudência. Em nossa ótica, melhor seria que o preceito se mantivesse na versão anterior, podendo, eventualmente, introduzir-se melhorias quanto aos critérios a usar no segundo momento, aproveitando-se o teor da redacção proposta para o n.º 67.”
Posição divergente que versa sobre a mesma matéria tem Mário Aroso de Almeida que nos refere que “A simplificação da estrutura deste incidente é de saudar, na medida em que, como vínhamos preconizado, se afigura lógico ter-se optado por limitar o incidente do decretamento provisório àquela que, antes da revisão de 2015, correspondia à sua primeira fase, prevista no artigo 131º, nº3, suprimindo-se a segunda, que, a não admitir produção de prova, se afigurava de utilidade discutível, e que foi, por isso, a nosso ver, adequadamente substituída pelo novo incidente autónomo, de utilização eventual, agora previsto no nº6 do artigo 131º8.”
Para concluir, na revisão de 2015, o artigo 131º do CPTA passou a prever a possibilidade da existência de dois incidentes autónomos no processo cautelar:
- O incidente do decretamento provisório que está previsto no nº1, sendo decidido em 48 horas e por regra não há direito ao contraditório e sem lugar à produção de prova. O critério que o juiz terá em consideração será o critério do periculum in mora que estará relacionado com o disposto no artigo 120º nº1 do CPTA. Aqui não está em causa a morosidade do processo principal mas sim a morosidade do processo cautelar. Como bem refere Mário Aroso de Almeida, está em causa “o perigo da constituição de uma situação irreversível se nada for feito de imediato, durante a pendência do processo cautelar e, portanto, antes ainda do momento em que virá a ser decidido o próprio processo cautelar. O periculum in mora deve ser, pois, preenchido, nesta sede, como um perigo de lesão iminente, e não apenas, irreversível, do interesse do requerente9.”
- No incidente de levantamento ou alteração da providência provisoriamente decretada, presente no nº6, há direito ao contraditório e pode igualmente ser produzida prova que o juiz julgue necessária, tendo de existir uma ponderação do interesse público face ao interesse particular, não podendo o dano que resulta da sua concessão ser superior àquele que pode resultar da sua recusa, tal como o disposto no artigo 120º nº2 do CPTA.
Defende Mário Aroso de Almeida que o decretamento provisório só deve ser levantado nas situações de clara evidência desfavorável ao requerente resultante do contraditório.
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7 Fernanda Maçãs, Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, 2ª ed., AAFDL, 2016, p. 756.
8 Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2ª ed., Almedina, 2016, pp. 431-432.
9 Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2ª ed., Almedina, 2016, p. 432


Bibliografia:
Manuais e obras de divulgação:
- José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 13ª ed., Almedina, 2014
- Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2ª ed., Almedina, 2016
- Jean Gourdon/Antoine Bourrel, Les référés d’urgence devant le juge administratif, L’Harmattan, Paris, 2002.

Obras colectivas e colectâneas:
- Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, 2ª ed., AAFDL, 2016

Jurisprudência:
- Acórdão do STA, Processo 0435/18, data 14-06-2018, Relator José Veloso


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