domingo, 4 de novembro de 2018


Legitimidade do Uso da Acção Popular como forma de Proteção Preventiva do Meio Ambiente

Afonso Lopes de Freitas Carvalho Dantas

Os séc. XX e XXI comprovaram a fragilidade do Ser Humano face às alterações climáticas. Tempestades tropicais mais violentas, secas prolongadas e vagas de calor sem precedente historicamente registado forçaram a uma consciencialização sobre o meio que nos rodeia e o planeta que esperamos deixar para futuras gerações.

O Estado Português não se alheou a esta consciencialização tendo, aliás, blindado fortemente a proteção ambiental, no seio da Constituição da República Portuguesa, razão pelo qual é considerada como sendo um princípio fundamental do Estado.

Seguindo o entendimento de VASCO PEREIRA DA SILVA, “a Constituição portuguesa ocupou-se das questões ambientais na dupla perspectiva da sua dimensão objectiva, enquanto tarefa estadual (art. 9.º, d e e), e da sua dimensão subjectiva, como direito fundamental (art. 66.º)”, sendo que “a tutela ambiental integra (…) não apenas a constituição formal mas também a material, e a sua relevância, enquanto componente dos princípios e valores fundamentais da ordem jurídica portuguesa, faz dela limite material de revisão constitucional”, isto através do elenco do art. 288.º, n.º 1, alínea d).[1]

Esta consagração constitucional força a Administração Pública a ter um cuidado redobrado na sua actuação diária, seja na atribuição de licenças camarárias, aprovação de obras públicas ou a própria gestão de resíduos que produza no exercício das suas funções. Contudo, falhando a Administração nos seus deveres, a todos será possibilitado o direito fundamental de recorrer à justiça administrativa como forma de intentarem proteger os seus direitos e interesses legalmente protegidos, isto com base na conjugação dos arts. 20.º e 268.º, n.º 4 e 5 da CRP.[2]

Apesar da existência de inúmeros mecanismos de resolução de litígios administrativos que de alguma forma tenham um objecto relacionado com o Ambiente, no presente artigo abordaremos a Acção Popular administrativa[3], consagrada constitucionalmente no art. 52.º, n.º 3, al. a) da CRP e cujo âmbito de aplicação[4] se encontra no n.º 1, do art. 1.º da Lei da Acção Popular[5].

Através de uma ação popular, é possível garantir o cumprimento de quaisquer obrigações decorrentes da lei, isto relativamente ao restabelecimento de situações preexistentes a quaisquer danos ambientais, bem como a defesa de interesses gerais e difusos[6], como ainda no respeita aos interesses individuais homogéneos. Em tal ação, estariam representados todos os lesados que não exercessem o direito de auto-exclusão, nos termos dos artigos 14.º e 15.º da LAP. Será de destacar que a ação popular é um alargamento da legitimidade subjetiva, e não uma forma processual, pelo que a ação teria que adotar uma das formas previstas no CPTA.

Quanto à legitimidade ativa, em acordo com o art. 9.º/2 do CPTA, a ação pode ser intentada por “qualquer pessoa”, por “associações e fundações defensoras dos interesses em causa”, pelas “autarquias locais” ou pelo “Ministério Público”. Contudo, criticamos a inexistência expressa de legitimidade por parte das Regiões Autónomas, atendendo à lógica de repartição de poderes do Estado e, particularmente, quando se sucedem graves e notórios problemas ambientais no arquipélago da Madeira[7] e dos Açores[8].

Não somos os únicos que criticam as limitações impostas pela letra da lei, tendo já JOSÉ LEBRE DE FREITAS[9] debatido as diferenças existentes entre o entendimento progressista do legislador face à legitimidade ativa das pessoas singulares, em contraste com a limitação imposta à das associações e fundações:

“Mas é um progresso não muito coerente com a exigência, feita para as associações e fundações, em conformidade com o que usa ser estabelecido nas legislações estrangeiras, da inclusão expressa da defesa dos interesses em causa através do tipo de acção em causa nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários. É que tal exigência não se confunde com o princípio da especialidade, que, como se vê no artigo 160.º, n.º 1 do Código Civil português, fica muito aquém dela. Porquê então a limitação, se ela não existe para as pessoas singulares?”

Neste sentido, se é concedido aos municípios o poder de defender interesses ambientais no âmbito do seu território, não pode deixar de ser reconhecido o mesmo direito às Regiões Autónomas.

Abordámos assim, este mecanismo legal, pois acreditamos na sua mais recorrente utilização na área ambiental, com base no princípio da prevenção, o qual “tem como finalidade evitar lesões do meio ambiente”[10]. Numa era assolada com problemas ambientais e seguindo a linha de raciocínio que VASCO PEREIRA DA SILVA abordou na obra previamente citada, não obstante a repressão e a prevenção poderem andar associadas, “a existência de mecanismos eficazes e atempados de contencioso ambiental possui um efeito dissuasor de eventuais comportamentos ilícitos, desta forma desempenhando também, ainda que indirectamente, uma função preventiva”.



[2] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, 2017, Almedina, (p. 60-63)
[3] Art. 9.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Lei n.º 15/2002, de 22/02, retificada pela retificação n.º 17.º/2002, de 06/04; alterada pelas Leis n.º 4-A/2003, de 19/02, n.º 59/2008, de 11/09, n.º 63/2011, de 14/12 e pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10).
[4] “A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição. “
[5] Lei n.º 83/95, de 31/08 (retificada pela Declaração de Retificação n.º 4/95, de 12/10 e alterada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10)
[6] Nas palavras de MARGARIDA PAZ (“Entre as Bases da Política do Ambiente e a Ação Popular: a legitimidade do Ministério Público na defesa dos interesses difusos”, in Revista do Ministério Público, Ano 38, N.º 152, Outubro/Dezembro 2017, pp. 31-62): “Os interesses difusos, entendidos no seu sentido lato, apresentam-se como interesses plurindividuais, supraindividuais ou transindividuais, distintos, por um lado, dos interesses individuais e, por outro, do interesse público, apesar de aglutinarem características de ambos. Assim, os interesses difusos lato sensu são os interesses individuais generalizados, de “marcada dimensão social”, estando assim próximos do interesse público, mas de natureza essencialmente privatística, o que os aproxima dos interesses individuais. Com efeito, estes interesses são relativos à fruição de bens de uso pessoal, mas insuscetíveis de apropriação exclusiva pelos respetivos titulares. (…) Numa outra definição, interesses difusos serão os “interesses de que todos participam pela pertença a uma comunidade: são indissociáveis dessa pertença, intransmissíveis e insuscetíveis de divisão com destino a titularidades individuais ou até da fragmentação em quotas ou partes ideais”. (…) “Podem ser indicados os seguintes exemplos de interesses difusos lato sensu: 1. O interesse na cessação de atividade contaminadora relativamente a uma zona residencial ou, de forma mais abrangente, a contaminação ambiental do ar, da água de um rio ou do mar” (p. 36-38). “Assim, ensaiando uma possível definição, podemos afirmar que nos interesses difusos stricto sensu os respetivos titulares não têm entre si qualquer ligação em particular para além da que resulta da localização geográfica ou do consumo de um determinado produto. (…) Os interesses difusos em sentido estrito recaem sobre bens indivisíveis, pelo que pertencem a uma pluralidade indiferenciada de sujeitos, que os gozam conjuntamente, numa dimensão coletiva, sem possibilidade de se tornar exclusivo de um deles e sem que origine qualquer conflito com outros interessados” (Idem, pp. 39-40).
[7] Cfr. LILIANA ABREU GUIMARÃES, (2010, 21 de Fevereiro). Causas da Aluvião na Ilha da Madeira, RTP 1. Extraído de: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/causas-da-aluviao-na-ilha-da-madeira/
[8] Cfr. ANA RODRIGUES, (2018, 20 de Abril). Base das Lajes. Contaminação de solos é problema que autoridades “empurram para debaixo do tapete”, Rádio Renascença. Extraído de: https://rr.sapo.pt/noticia/111237/base-das-lajes-contaminacao-de-solos-e-problema-que-autoridades-empurram-para-debaixo-do-tapete
[9] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “A acção popular ao serviço do ambiente”, in Ab Vno Omnes: 75 anos de Coimbra Editora 1920-1995, 1998, pp. 797-809
[10] VASCO PEREIRA DA SILVA, ““Mais Vale Prevenir do que Remediar” Prevenção e Precaução no Direito do Ambiente” in Direito Ambiental Contemporâneo – Prevenção e Precaução”, 2009, pp. 11-30 (p. 12)

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