Legitimidade
do Uso da Acção Popular como forma de Proteção Preventiva do Meio Ambiente
Afonso Lopes de Freitas Carvalho
Dantas
Os
séc. XX e XXI comprovaram a fragilidade do Ser Humano face às alterações
climáticas. Tempestades tropicais mais violentas, secas prolongadas e vagas de
calor sem precedente historicamente registado forçaram a uma consciencialização
sobre o meio que nos rodeia e o planeta que esperamos deixar para futuras
gerações.
O
Estado Português não se alheou a esta consciencialização tendo, aliás, blindado
fortemente a proteção ambiental, no seio da Constituição da República
Portuguesa, razão pelo qual é considerada como sendo um princípio fundamental
do Estado.
Seguindo
o entendimento de VASCO PEREIRA DA SILVA, “a Constituição portuguesa ocupou-se
das questões ambientais na dupla perspectiva da sua dimensão objectiva, enquanto
tarefa estadual (art. 9.º, d e e), e da sua dimensão subjectiva, como direito
fundamental (art. 66.º)”, sendo que “a tutela ambiental integra (…) não apenas
a constituição formal mas também a material, e a sua relevância, enquanto
componente dos princípios e valores fundamentais da ordem jurídica portuguesa,
faz dela limite material de revisão constitucional”, isto através do elenco do
art. 288.º, n.º 1, alínea d).[1]
Esta
consagração constitucional força a Administração Pública a ter um cuidado
redobrado na sua actuação diária, seja na atribuição de licenças camarárias,
aprovação de obras públicas ou a própria gestão de resíduos que produza no
exercício das suas funções. Contudo, falhando a Administração nos seus deveres,
a todos será possibilitado o direito fundamental de recorrer à justiça
administrativa como forma de intentarem proteger os seus direitos e interesses
legalmente protegidos, isto com base na conjugação dos arts. 20.º e 268.º, n.º
4 e 5 da CRP.[2]
Apesar
da existência de inúmeros mecanismos de resolução de litígios administrativos
que de alguma forma tenham um objecto relacionado com o Ambiente, no presente
artigo abordaremos a Acção Popular administrativa[3], consagrada
constitucionalmente no art. 52.º, n.º 3, al. a) da CRP e cujo âmbito de
aplicação[4] se encontra no n.º 1, do
art. 1.º da Lei da Acção Popular[5].
Através
de uma ação popular, é possível garantir o cumprimento de quaisquer obrigações
decorrentes da lei, isto relativamente ao restabelecimento de situações
preexistentes a quaisquer danos ambientais, bem como a defesa de interesses
gerais e difusos[6],
como ainda no respeita aos interesses individuais homogéneos. Em tal ação,
estariam representados todos os lesados que não exercessem o direito de
auto-exclusão, nos termos dos artigos 14.º e 15.º da LAP. Será de destacar que
a ação popular é um alargamento da legitimidade subjetiva, e não uma forma
processual, pelo que a ação teria que adotar uma das formas previstas no CPTA.
Quanto
à legitimidade ativa, em acordo com o art. 9.º/2 do CPTA, a ação pode ser
intentada por “qualquer pessoa”, por “associações e fundações defensoras dos
interesses em causa”, pelas “autarquias locais” ou pelo “Ministério Público”.
Contudo, criticamos a inexistência expressa de legitimidade por parte das
Regiões Autónomas, atendendo à lógica de repartição de poderes do Estado e,
particularmente, quando se sucedem graves e notórios problemas ambientais no
arquipélago da Madeira[7] e dos Açores[8].
Não
somos os únicos que criticam as limitações impostas pela letra da lei, tendo já
JOSÉ LEBRE DE FREITAS[9] debatido as diferenças
existentes entre o entendimento progressista do legislador face à legitimidade
ativa das pessoas singulares, em contraste com a limitação imposta à das
associações e fundações:
“Mas
é um progresso não muito coerente com a exigência, feita para as associações e
fundações, em conformidade com o que usa ser estabelecido nas legislações
estrangeiras, da inclusão expressa da defesa dos interesses em causa através do
tipo de acção em causa nas suas atribuições ou nos seus objectivos
estatutários. É que tal exigência não se confunde com o princípio da
especialidade, que, como se vê no artigo 160.º, n.º 1 do Código Civil
português, fica muito aquém dela. Porquê então a limitação, se ela não existe
para as pessoas singulares?”
Neste
sentido, se é concedido aos municípios o poder de defender interesses
ambientais no âmbito do seu território, não pode deixar de ser reconhecido o
mesmo direito às Regiões Autónomas.
Abordámos
assim, este mecanismo legal, pois acreditamos na sua mais recorrente utilização
na área ambiental, com base no princípio da prevenção, o qual “tem como
finalidade evitar lesões do meio ambiente”[10]. Numa era assolada com
problemas ambientais e seguindo a linha de raciocínio que VASCO PEREIRA DA
SILVA abordou na obra previamente citada, não obstante a repressão e a
prevenção poderem andar associadas, “a existência de mecanismos eficazes e
atempados de contencioso ambiental possui um efeito dissuasor de eventuais comportamentos
ilícitos, desta forma desempenhando também, ainda que indirectamente, uma
função preventiva”.
[2] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de
Processo Administrativo”, 2017, Almedina, (p. 60-63)
[3] Art. 9.º, n.º 2 do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos (Lei n.º 15/2002, de 22/02, retificada
pela retificação n.º 17.º/2002, de 06/04; alterada pelas Leis n.º 4-A/2003, de
19/02, n.º 59/2008, de 11/09, n.º 63/2011, de 14/12 e pelo Decreto-Lei n.º
214-G/2015, de 02/10).
[4] “A presente lei define os casos e
termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação
popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a
prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º
3 do artigo 52.º da Constituição. “
[5] Lei n.º 83/95, de 31/08
(retificada pela Declaração de Retificação n.º 4/95, de 12/10 e alterada pelo
Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10)
[6] Nas palavras de MARGARIDA PAZ
(“Entre as Bases da Política do Ambiente e a Ação Popular: a legitimidade do
Ministério Público na defesa dos interesses difusos”, in Revista do Ministério Público, Ano 38, N.º 152, Outubro/Dezembro
2017, pp. 31-62): “Os interesses difusos, entendidos no seu sentido lato,
apresentam-se como interesses plurindividuais, supraindividuais ou
transindividuais, distintos, por um lado, dos interesses individuais e, por
outro, do interesse público, apesar de aglutinarem características de ambos.
Assim, os interesses difusos lato sensu são os interesses individuais
generalizados, de “marcada dimensão social”, estando assim próximos do
interesse público, mas de natureza essencialmente privatística, o que os
aproxima dos interesses individuais. Com efeito, estes interesses são relativos
à fruição de bens de uso pessoal, mas insuscetíveis de apropriação exclusiva
pelos respetivos titulares. (…) Numa outra definição, interesses difusos serão
os “interesses de que todos participam pela pertença a uma comunidade: são
indissociáveis dessa pertença, intransmissíveis e insuscetíveis de divisão com
destino a titularidades individuais ou até da fragmentação em quotas ou partes
ideais”. (…) “Podem ser indicados os seguintes exemplos de interesses difusos
lato sensu: 1. O interesse na cessação de atividade contaminadora relativamente
a uma zona residencial ou, de forma mais abrangente, a contaminação ambiental
do ar, da água de um rio ou do mar” (p. 36-38). “Assim, ensaiando uma possível
definição, podemos afirmar que nos interesses difusos stricto sensu os
respetivos titulares não têm entre si qualquer ligação em particular para além
da que resulta da localização geográfica ou do consumo de um determinado
produto. (…) Os interesses difusos em sentido estrito recaem sobre bens
indivisíveis, pelo que pertencem a uma pluralidade indiferenciada de sujeitos,
que os gozam conjuntamente, numa dimensão coletiva, sem possibilidade de se
tornar exclusivo de um deles e sem que origine qualquer conflito com outros
interessados” (Idem, pp. 39-40).
[7] Cfr. LILIANA ABREU GUIMARÃES,
(2010, 21 de Fevereiro). Causas da Aluvião na Ilha da Madeira, RTP 1. Extraído de: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/causas-da-aluviao-na-ilha-da-madeira/
[8] Cfr. ANA RODRIGUES, (2018, 20 de
Abril). Base das Lajes. Contaminação de solos é problema que autoridades
“empurram para debaixo do tapete”, Rádio
Renascença. Extraído de: https://rr.sapo.pt/noticia/111237/base-das-lajes-contaminacao-de-solos-e-problema-que-autoridades-empurram-para-debaixo-do-tapete
[9] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “A
acção popular ao serviço do ambiente”, in Ab
Vno Omnes: 75 anos de Coimbra Editora 1920-1995, 1998, pp. 797-809
[10]
VASCO PEREIRA DA SILVA,
““Mais Vale Prevenir do que Remediar” Prevenção e Precaução no Direito do
Ambiente” in Direito Ambiental
Contemporâneo – Prevenção e Precaução”, 2009, pp. 11-30 (p. 12)
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