domingo, 4 de novembro de 2018

A Aceitação do Ato Administrativo: Um Pressuposto Processual Autónomo? - Particularidades e Minúcias -


A Aceitação do Ato Administrativo[1]: Um Pressuposto Processual Autónomo?
- Particularidades e Minúcias -

1. Enquadramento e contextualização sistemática – Um novo passo ou mera ilusão?
De modo introdutório, daremos o nosso primeiro passo nesta análise por via da feitura de um enquadramento sistemático do preceito em análise, útil para os nossos desenvolvimentos póstumos embora breves. Ora, o artigo 56º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), encontra atualmente a sua consagração jurídica sistemática no título II (da ação administrativa), do capitulo II (disposições particulares), da subsecção II (da legitimidade – legitimidade essa para a impugnação contenciosa de atos administrativos). Logo quanto a esta inserção, e recorrendo aos lugares paralelos das suas antigas consagrações, maxime o Regulamento do STA ao incluir no seu art. 47º norma idêntica em subsecção denominada “Da Legitimidade para Recorrer” ou o próprio art. 827ºCPA que regulava a aceitação do ato administrativo entre as disposições relativas à legitimidade ativa e ao prazo de recurso, podemos considerar ab initio que, de facto, este pressuposto processual negativo[2] apenas é tratado neste grupo de normas legitimadoras pela ideia já anacrónica de que os particulares não eram titulares de direitos subjetivos perante a Administração Pública, razão pela qual é retratada neste âmbito ao ser definida como um mero interesse do particular, pelo que nos podemos manifestar, a par de VASCO PEREIRA DA SILVA que tal tratamento e génese subjacente correspondente à ideia de que se deve inserir no âmbito da legitimação se encontra “algo deslocado [fruto] dos traumas da infância difícil que atravessou o Contencioso Administrativo[3]”.
Julgo importante referenciar uma alteração relevante ao preceito. Encontra-se no artigo em análise a propósito da aceitação do ato administrativo, que o legislador tem agora a preocupação de ressalvar que este instituto apenas releva como obstáculo à impugnação[4] de atos anuláveis, ou seja, a aceitação de um ato administrativo só impede a sua posterior impugnação contenciosa se esta se fundar na sua mera anulabilidade, mas já não em vícios geradores de nulidade. O Decreto-Lei n.º 214-G/2015[5] veio assim ao encontro da posição já maioritariamente defendida na jurisprudência e na doutrina, embora a solução agora adotada não se mostre isenta de críticas, nomeadamente por parte de autores[6] que – considerando que a aceitação do ato não diz, em bom rigor, respeito à legitimidade ativa mas ao interesse em agir – defendem que, em tese, nada impede a aceitação de um ato nulo, pois o que está em causa será aferir da utilidade da ação impugnatória face ao interesse prosseguido pelo autor no processo judicial, independentemente do desvalor jurídico que inquine o ato por este aceite.

            2. Princípios legitimadores e a aferição de uma eventual possibilidade de sanação do ato em si
Em segundo plano cabe aferir dos seus princípios legitimadores, de modo a tomar-mos posição no final deste escrito relativamente ao âmbito de aplicação deste preceito, como deve ser entendido e de que maneira se repercute no nosso Contencioso Administrativo.
No âmbito dos princípios constitucionais legitimadores do Estado de Direito Democrático, no qual nos inserimos, retiramos (essencialmente) a necessidade de segurança e estabilidade jurídica – art. 2ºCRP - a economia processual e a boa fé – art. 6º-A/1CPA (quanto a esta última que impede o abuso de direito, nomeadamente o fenómeno do venire contra factum proprium, sobre o qual já nos debruçaremos infra) – bem como a proteção da confiança e o interesse público.
Dito isto, é claro que por via de um fácil exercício mental podemos retirar uma forte conclusão, de que a clássica e típica tutela jurisdicional efetiva positivada no art. 268ºCRP, concretiza uma garantia dos administrados que surge limitada pela tutela da confiança (art. 266º/2CRP ex vi art. 10º/2CPA), i.e., numa das ramificações do abuso de direito, referimo-nos ao nosso já conhecido venire contra factum proprium que, in casu, se vai traduzir no comportamento contrário por parte do particular ao do que inicialmente se fez expressar ou deu a entender, ou seja, o particular impugna um ato contraditoriamente e incompatível à conduta anteriormente exteriorizada de aceitação do ato administrativo, e os ditames da boa fé exigem a tutela das expectativas de terceiros, maxime, a Administração Pública e os interessados no próprio ato, uma vez que o sujeito aceitou o ato cujo conteúdo lesou um direito subjetivo, vinculando-se posteriormente a não agir contrariamente a tal posição inicial[7]. Tal ideia de compressão do direito em termos impugnatórios, podemos retirar das sábias palavras de VIEIRA DE ANDRADE, quando nos indica que o “acesso aos tribunais administrativos só é assegurado pela Constituição aos particulares na medida em que estes sejam sujeitos de direitos ou interesses legalmente protegidos e não a qualquer titular de interesse direto, pessoal e legítimo na anulação do ato que tenha legalmente direito de recurso[8], o que sucede ao extinguir-se o direito ou qualquer interesse por efeito da aceitação de um ato que lese o particular, perdendo as posições substantivas que tinha aquando da aceitação do ato administrativo apesar de tal não configurar expressamente na lei.
Neste seguimento, aproveita-se para responder à questão de saber se será eventualmente possível sanar-se tal ato. Existem várias considerações a serem feitas: Começando por separar os conceitos entre não impugnabilidade e sanação, é mister que em ambos os casos se verifica uma certa estabilização dos efeitos do ato: i) na sanação porque o ato inicialmente iníquo deixa de o ser e como tal não pode ser impugnado; na não impugnabilidade porque, não obstante o ato ainda estar viciado, também não pode ser impugnado; ii) a sanação tem eficácia erga omnes, enquanto que a não impugnabilidade do ato é uma característica do ato que se reflete no sujeito, pelo que apenas pode ser inimpugnável para um dos destinatários do ato e não para todos; iii) Sanação é entendida como meio de supressão do vicio que afeta o conteúdo de um ato[9], já a inimpugnabilidade tem um cariz essencialmente processual, como impedimento à impugnação de um determinado ato.
Portanto, concluímos que a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que ao impugnar-se um ato que inicialmente o particular aceitou, embora a sua vontade seja outra, não vemos como uma manifestação de vontade possa dispor sobre a legalidade de atuação administrativa e contrariamente ao que sucede na confirmação do negócio anulável, em que estão em causa interesses privados, na aceitação do ato administrativo está em causa a definição de interesses públicos por parte da Administração, cujo conteúdo é indisponível por vontade dos particulares. Todavia, indaga-se, o que sucederá existindo uma situação de rebus sic stantibus relativamente a estes atos? De facto, parece constatar-se uma cessação do motivo que deu origem à aceitação dos aspetos desfavoráveis do ato pelo que a aceitação se extingue, tendo o sujeito a possibilidade de impugnação de tal ato, aliás, nas palavras de VASCO PEREIRA DA SILVA “alteradas as circunstâncias em que se deu a aceitação, o particular pode revogar tal declaração e impugnar o ato aceite desde que os prazos para impugnação ainda se encontrem a decorrer[10]”, uma vez que outra solução seria inconstitucional por violação do art. 268º/4 CRP.
Fechamos este ponto subscrevendo uma linha de pensamento de VIEIRA DE ANDRADE, o qual, fruto de um seu olhar atento, transmite-nos e relembra que “o juiz não vai averiguar se o comportamento comprova que o particular (subjetivamente) não quis impugnar, mas se um tal comportamento é adequado (objetiva e valorativamente) por parte de quem queira impugnar o ato[11], em momento póstumo ao ato de aceitação ter sido apreciado normativamente em momento prévio por poder ter implicado um uso abusivo do direito de ação.

            3. A natureza da Aceitação do Ato Administrativo
A aceitação do ato gera a preclusão do direito de impugnação do mesmo, cuja consequência radica na necessidade de garantir a estabilidade dos tribunais administrativos, visto não ser razoável nem sensato, que os particulares venham impugnar atos que já antes tenham aceite, criando confusão e sujeitando a maior demora todos os restantes processos contribuindo para a morosidade dos mesmos.
A par de Itália, já se suscitou a discussão e a exigência sobre uma reflexão mais aprofundada face à questão de saber se a aceitação do ato deve ser entendida como um negócio jurídico ou como um simples ato jurídico do particular, bem como a de saber qual o alcance substantivo e mesmo processual da aceitação do conteúdo do ato. RUI MACHETE toma as rédeas da discussão adotando uma conceção sui generis após criticar a posição tradicional da doutrina e da jurisprudência, parecendo inclinar-se para considerar a aceitação como um ato de disposição de uma situação subjetiva que esteja na titularidade do particular e, mais concretamente, um negócio jurídico unilateral de direito substantivo[12], que traduz a renúncia ao direito ou interesse legítimo tendo como consequência a perda da faculdade de impugnação do ato. Salvo a devida vénia, inserimo-nos na esteira de VIEIRA DE ANDRADE ao entender que esta construção não é a única admissível, sendo que não deixa de “limita[r] o alcance do regime jurídico, não sendo porventura, a mais adequada à concreta especificidade da aceitação do ato, na lei administrativa portuguesa[13]”. Desta feita, preferimos conceptualizar a génese do ato como um mero ato jurídico, cuja verificação da lei determina a produção de um efeito, sendo que a perda da faculdade de impugnar é independente do conteúdo da vontade do particular, cuja subordinação se cinge à prévia aceitação ou ausência desta, não obstante, certamente que a aceitação do ato deve consistir numa declaração ou, pelo menos, numa manifestação de vontade (expressa ou tácita[14]) que vise aceitar as transformações jurídicas operadas pelo ato, constituindo pois um ato jurídico, mas há que separar conceitos.
De acordo com VIEIRA DE ANDRADE[15], a figura da aceitação do ato poderá caracterizar-se como um ato jurídico voluntário ao qual a lei reporta um certo efeito de direito – a perda da faculdade de impugnar – independentemente do particular ter ou não querido a efetiva produção desse resultado[16].  No mesmo sentido encontram-se MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, que ao se referirem à manifestação tácita da declaração, transmitem a ideia de que a aceitação tácita será aquela que resultar de factos praticados ou de declarações feitas com objeto diferente, mas que apontam concludentemente no sentido de que o seu autor se conformou com os efeitos do ato praticado, “é dizer, que há aí um comportamento incompatível com a vontade de impugnar[17] – que, se se quisesse impugnar, não se praticariam tais factos ou fariam tais declarações.
Chegando à mesma solução, por via de outra figura jurídica, diversamente, RUI MACHETE considera a aceitação do ato administrativo, enquanto requisito negativo de legitimidade, “um ato de disposição de uma situação subjetiva que esteja na titularidade do particular, [na qual a] aceitação da disciplina desfavorável do ato administrativo [se traduziria] em abdicar do seu interesse à disciplina favorável, isto é, em renunciar ao interesse legítimo[18]”. Estaríamos, neste caso, perante uma figura próxima da renúncia ao recurso.[19]/[20]
Por último, mas não menos importante, importa salientar na doutrina CARLOS CADILHA, ao entender[21] que a caracterização dessa exceção (aceitação do ato administrativo) depende da opção que se fizer quanto à natureza jurídica da aceitação: poderá entender-se como uma situação de ilegitimidade ativa, por perda do interesse pessoal e direto em impugnar, ou como uma situação de falta de interesse em agir, por o aceitante não ter já necessidade da tutela judicial, ou ainda como um caso de inimpugnabilidade do ato pelo aceitante, entendido como um pressuposto processual autónomo.
Em qualquer caso, importa reconhecer que a aceitação, desde que posterior à prática do ato (o que constitui uma condição do carácter livre e esclarecido da aceitação), preclude o direito de impugnar ainda que seja emitida posteriormente à propositura da ação, visto que, mesmo nesse caso, não deixa de constituir uma questão prévia que obsta ao prosseguimento do processo, nada impedindo que, como facto extintivo superveniente, ela possa ser tida em consideração mesmo após a pronúncia do despacho saneador[22].

4. Destrinça entre figura(s) afim(ns):
Chegado a este ponto, há que proceder a uma delimitação de conceitos e figuras (mais concretamente, a figura da renúncia) que, fruto da proximidade de concretização não se encontram muito distantes apesar das factuais diferenças entre ambas. Passo a espelhá-las: i) A renúncia ao recurso implica uma manifestação de vontade do titular dirigida ao não exercício de impugnar, ao passo que a aceitação do ato é uma manifestação de vontade positiva, expressa ou tácita quanto ao conteúdo do ato e seus efeitos substanciais; ii) A aceitação do ato apenas produz efeitos substantivos em relação ao sujeito aceitante, não se alargando a qualquer pessoa que também tenha interesse no ato uma vez que está em causa uma manifestação de vontade de um sujeito que é valorada pela lei no sentido de tal sujeito se <<autovincular>> a não agir em sentido contrário e de molde a não colocar em causa as expetativas geradas nos outros. Não faria sentido que a aceitação de um sujeito viesse a interferir nas posições jurídicas substantivas de outros sujeitos; iii) A aceitação tem como objeto o ato administrativo que seja lesivo de um direito ou interesse do sujeito aceitante e implica, desde logo, a perda do direito de impugnação deste ato lesivo, daí que, a questão que se coloca agora será a de compreender se, com a manifestação de vontade de aceitar, se extingue o tal direito ou interesse que inicialmente existe na esfera jurídica do sujeito e que o ato de aceitação colocou em causa; iv) Através da aceitação visa-se aderir ao conteúdo de um ato, enquanto que, com a renúncia, se pretende rejeitar um interesse ou direito, i.e., a motivação do sujeito aceitante é diversa, num caso positiva e noutro negativa; v) Na renúncia a vontade constitui um elemento essencial para a existência dos efeitos jurídicos, já no que concerne à aceitação de vontade, esta surge como mero elemento da conduta em relação à qual a lei fixa os efeitos jurídicos; vi) Por último, e como bem nos elucida VIEIRA DE ANDRADE, a aceitação difere da renúncia quanto ao direito de impugnação, pelo que se deve entender “que se trata de um mero ato jurídico e não de uma declaração negocial”[23], entendimento que RUI MACHETE defende enquanto declaração negocial, que, não obstante o parêntesis e na esteira do que já foi referenciado supra interpreta que estamos perante um efeito de perda do direito que a lei impõe face a uma atitude do particular de conformação com os efeitos desfavoráveis do ato, i.e., uma aceitação voluntária do resultado (livre e esclarecida), que se explica por razões de economia processual associadas à ilegitimidade do particular e à estabilização dos efeitos do ato administrativo, concluindo o seu pensamento com um exemplo afeto á determinação por lei especial[24].

5. A Aceitação Tácita exarada de um comportamento concludente
Os números 2 e 3 do artigo 56º CPTA apresentam-se como concretizações da aceitação tácita, critérios gerais de interpretação desta manifestação de aceitação do ato administrativo.
No que concerne ao número 1 do art. 56º CPTA, a aceitação tácita deve ser espontânea no sentido de que as razões que levam um sujeito a agir de determinada forma partam exclusivamente da sua vontade e que, por sua vez, não suscite indagação quanto à existência dessa vontade de aceitação integral do conteúdo do ato. Partilhamos da opinião de SANDRA LOPES LUÍS, quando procede a uma interpretação restritiva ao art. 56º/2 CPTA, na medida em que a aceitação tácita do ato deve ser determinada em termos de declaração tácita, recorrendo ao art. 217º CC, referindo que “na descoberta de uma aceitação tácita, devemos, partindo de um determinado comportamento do sujeito, verificar se este se configura como incompatível com a vontade de recorrer e depois saber se dele se pode inferir com toda a probabilidade uma manifestação de vontade de aceitar[25]. Nesta esteira, podemos afirmar que não existe aceitação quando outro comportamento não era exigível ao particular, visto que a total rejeição do ato agravaria a sua posição jurídica global de forma intolerável e inadmissível. Relativamente ao número 2 do art. 56º CPTA, a aceitação tácita diz respeito aos funcionários ou agentes administrativos. Neste âmbito, para que exista uma efetiva aceitação tácita, a escolha da oportunidade da execução tem de depender da vontade do agente ou funcionário, mas é neste campo que se coloca uma questão: o que se deve entender por escolha da oportunidade da execução? No entender[26] de SANDRA LOPES LUÍS podemos interpretar a expressão de duas maneiras: Tanto pode seguir-se o caminho de considerar que o funcionário ou agente possa escolher o momento em que vai executar determinado ato, como pode optar-se pelo entendimento de que há uma escolha da <<possibilidade>> ou <<faculdade>> da execução. Na primeira situação é concedida uma margem de liberdade na determinação da altura em que a execução irá ocorrer, ao passo que na segunda é concedida ao funcionário ou agente a liberdade de optar entre agir ou não agir (executar ou não o ato). Em bom rigor, refere VIEIRA DE ALMEIDA, que o art. 56º/2 CPTA deve ler-se como referindo “prática de facto que revele a conformação com os efeitos do ato em termos incompatíveis com a vontade de o impugnar[27].
Para constatação de tais factos, atente-se ao sumário do Ac. do STA de 04/06/96, ao proferir que “Constitui aceitação tácita de uma deliberação camarária que declarou extinto um concurso público para cedência de parcela em regime de direito de superfície, o facto de o concorrente se apresentar, sem reserva, a novo concurso público com o mesmo objeto[28]”. (ênfase acrescentada nossa)

6. De que lado se encontra a Jurisprudência?
Ao chegar a este momento, corpo fulcral do nosso escrito, cabe-nos questionar de que forma a nossa Jurisprudência se tem pronunciado e debruçado sobre o assunto. Sub Judice encontra-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo (Sul)[29] e referente à matéria de facto coube aferir se a recorrente, ao ter concorrido ao novo concurso aberto na sequência do ato de anulação impugnado o aceitou tacitamente, o que faria face ao disposto no art. 56º do CPTA com que o mesmo fosse inimpugnável. Ora no caso em apreço, a recorrente teve conhecimento que a ré anulou o concurso público e posteriormente, com a abertura de novo concurso (por deliberação de 20/04/2010) a recorrente candidatou-se ao mesmo sem qualquer reserva (publicitado no DR, II Série, de 22.04.2010), tendo por data limite de apresentação das propostas o dia 07/05/2010. Aqui surge a pedra de toque de todo o acórdão, é que só após a abertura das cinco propostas neste apresentadas (no anterior haviam sido apresentadas apenas duas, a do recorrente e a da contra - interessada) e do conhecimento (em 10/05/2010) dos valores propostos por cada uma delas, superiores ao seu, bem como da adjudicação provisória e mesmo da celebração do contrato pela ré com a contra – interessada da exploração objeto do concurso (em 28/05/2010), é que o ora recorrente veio impugnar o ato que havia anulado o anterior concurso, tendo a presente ação dado entrada em 08/06/2010. Como se pode ler no sumário (aditamento) Ac. do STA[30] de 07/01/2009: “Quando uma entidade adjudicante abre e anuncia um procedimento concursal formula uma oferta, uma declaração negocial, apresentando uma proposta que faz parte de um contrato em expectativa. A esta oferta ou declaração contrapõe os concorrentes as legalmente designadas propostas e candidaturas, cujo conteúdo e relevância jurídica resultam da própria lei”. Esta referência jurisprudencial tem a devida importância pois resulta da matéria de facto, que os concorrentes manifestam ou materializam tal vontade de forma expressa nos documentos integrantes da proposta e candidatura, e foi precisamente assim que procedeu a recorrente, daí ser forçoso concluir que esta aceitou expressamente todo o novo procedimento concursal aberto pelo Município, pelo que juridicamente será inevitável concluir que a recorrente aceitou expressamente o novo ato concursal e os atos procedimentais em que este se concretizou, ou seja, estamos ante a aplicação plena do art. 56º/1 CPTA, nos termos do qual não pode impugnar um ato administrativo quem o tenha aceite expressamente, depois de praticado, uma vez que a manifestação expressa da vontade de contratar constante da proposta e da candidatura[31] não pode ser qualificada como uma mera aceitação tácita do ato do concurso. (ênfase acrescentada nossa)
            Nesta linha, podemos encontrar dados jurisprudenciais que caminham ao lado desta interpretação, atente-se o Ac. do TCA (Sul)[32] de 04/03/2010, ao referir que “a aceitação tácita do ato administrativo é um pressuposto processual autónomo[33] que implica a impossibilidade de impugnação ou a ilegitimidade superveniente, consoante a aceitação ocorra após a prática do ato, mas antes da propositura da ação, ou já na pendência desta” ou o Ac. do STA[34] de 25/01/2006, expressando-se a favor de que “a aceitação do ato deriva da prática espontânea e sem reservas, de facto incompatível com a vontade de recorrer, devendo tal comportamento ter um significado unívoco, que não deixe quaisquer duvidas quanto ao seu significado de acatamento integral do ato, das determinações nele contidas, e da inerente vontade de renunciar ao recurso”. Observe-se, igualmente, o Ac. do STA[35] de 07/01/2009, ao mencionar que “quando uma entidade adjudicante abre e anuncia um procedimento concursal formula uma oferta, uma declaração negocial, apresentando uma proposta que faz parte de um contrato em expectativa, a esta oferta ou declaração contrapõe os concorrentes as legalmente designadas propostas e candidaturas, cujo conteúdo e relevância jurídica resultam da própria lei, nos termos do disposto no art. 44º do DL. nº 197/99: Nas propostas e candidaturas os concorrentes manifestam a sua vontade de contratar (…)”.
            Por tudo o que ficou dito, relativamente ao nosso acórdão principal sub judice é possível retirar-mos claras conclusões, nomeadamente que os concorrentes manifestaram ou materializaram aquela vontade de forma expressa nos documentos integrantes da proposta e candidatura, entre os quais a recorrente, pelo que aceitou expressamente todo o novo procedimento concursal aberto pelo Município, sendo juridicamente incomensurável aferir que a recorrente aceitou expressamente o novo ato concursal e os atos procedimentais em que este se concretiza, ou seja, estamos ante a aplicação plena do art. 56º/1 CPTA nos termos do qual, não pode impugnar um ato administrativo quem o tenha aceitado expressamente, depois de praticado, uma vez que a manifestação expressa da vontade de contratar constante da proposta e da candidatura não pode ser qualificada como uma mera aceitação tácita do ato do concurso, daí ter-se extinto o direito de impugnação no âmbito do novo procedimento concursal. A própria doutrina subscreve este entendimento, ao afirmar que “a mera reserva formal de não aceitação, quando o particular atua concludentemente no sentido da aceitação, não lhe confere legitimidade para a respetiva impugnação[36].

7. Considerações finais
A figura da aceitação compõe-se de um ato jurídico voluntário, que exprime a conformação do particular com os efeitos da decisão, e de um efeito preclusivo legalmente determinado, tornando a impugnação impossível para o aceitante. Tendo em conta a sua razão de ser, compreende-se que a aceitação só possa ter relevo preclusivo relativamente a atos administrativos que não sejam nulos, uma vez que os atos nulos não merecem estabilidade e apenas desta forma é que será possível a aplicação deste regime relativamente a atos já praticados. Embora não seja necessário o animus de renúncia - sendo pressuposto lógico e valorativo da preclusão legal a existência comprovada de uma vontade livre e esclarecida de aceitar os efeitos do ato, não valendo a conformação determinada pelo receio, pela ignorância e em geral, por qualquer defeito de vontade (erro, dolo , coação) ou quando não fosse exigível ao aceitante outro comportamento - a aceitação do ato, verificadas as condições já referidas, implica a perda da legitimidade ou a impossibilidade da impugnação, em termos de excluir o dever e a faculdade que assiste ao juiz de Direito de conhecer do mérito da causa.  
 Igualmente aludir para a importância do art. 632º CPC, uma norma essencial para o entendimento sistemático do regime jurídico da aceitação do ato administrativo previsto no art. 56º CPTA, sendo certo que este regime tem sempre como limites inultrapassáveis, o princípio da economia processual e o instituto do abuso de direito - art. 334º CC - que deriva da boa-fé civil encontrando-se, ipso facto, materializado na figura do abuso de direito na ação de modo a evitar certas e determinadas situações abusivas, maxime, de venire contra factum proprium.
Em suma, no que diz respeito à aceitação do ato, suportada pelo duvidoso elemento sistemático da manutenção do artigo 56º CPTA na subsecção relativa à legitimidade, não aceitamos a autonomização da aceitação do ato administrativo como pressuposto processual autónomo[37] tal como tem vindo a ser preconizado pela nossa Jurisprudência como foi aliás observado nos acórdãos supra referenciados ao se manifestar a favor da autonomização da figura, reconduzindo-o antes a uma dimensão negativa da legitimidade ativa ou numa falta de interesse em agir[38]/[39] causada pelo próprio sujeito uma vez que a aceitação tem de ser vista como uma particularidade do instituto da legitimidade processual ativa e não como um pressuposto autónomo que causaria a impossibilidade de impugnação, i.e., a aceitação numa das suas vertentes (expressa ou tácita) reconduz-se à mera eliminação do interesse direto, pessoal e legitimo, de modo a que os efeitos preclusivos de aceitação façam sentido à luz da sua aptidão para extinguir o interesse, não obstante o preenchimento de certos e determinados requisitos que, uma vez preenchidos, levam à perda do direito de impugnação: i) tratar-se de facto espontâneo e sem reserva, fruto de uma vontade livre e esclarecida; ii) estar em causa uma desconformidade entre a manifestação de aceitação prévia ao ato e uma conduta póstuma distinta do que se deu efetivamente a entender; iii) que o ato não seja nulo e que possa ser qualificado pelo tribunal como normativamente incompatível com a impugnação por corresponder a um uso desnecessário ou abusivo desta.




Frederico Moreira Ventura Fernandes Sequeira







[1] Art. 56º CPTA. Extrinsecamente encontra semelhanças com o disposto no art. 632º CPC.
[2] Assim o denominamos apenas neste momento, de modo a ser clara a contextualização.
[4] Coimbra, José Duarte, “A impugnabilidade de atos administrativos no Anteprojeto de Revisão do CPTA”, in Gomes, Carla Amado, neves, Ana Fernanda, Serrão, Tiago (Coordenação), in “O Anteprojeto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate”, 2014, AAFDL, pp. 371 - 373
[5] De 2 de Outubro.
[6] Entre eles, encontra-se Marco Caldeira, in “Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA”, pp. 257-258
[7] Infra analisaremos um par de acórdãos jurisprudenciais onde tal ideia será espelhada de forma clara e contribuirá para uma melhor compreensão do que se encontra efetivamente em causa.
[8] Andrade José Carlos Vieira de, “A aceitação do ato administrativo”, in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Volume Comemorativo do 75.º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, 2003, pp. 915 - 916
[9] Da ilegalidade do ato, partilhando desta ideia, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2006, p. 284
[10] Silva, Vasco Pereira da, in “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009, p. 311
[11] Andrade, José Carlos Vieira de, in “A Justiça Administrativa - (Lições)”, [anotação 750], 13ª edição, Almedina, 2014, p. 273
[12] Machete, Rui, “A Sanação do ato administrativo inválido”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume VII, 1996, p. 339
[14] A lei exige que quanto à manifestação tácita , que essa vontade seja “espontânea e sem reserva” e a jurisprudência tem acrescentado a necessidade de ser esclarecida, mas já lá chegaremos infra.           
[15] Andrade José Carlos Vieira de, “A aceitação do ato administrativo”, in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Volume Comemorativo do 75.º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, 2003, p. 942
[16] Nesta linha ver também, os pareceres de Mário Aroso de Almeida e de Carlos Alberto Fernandes Cadilha em anotação ao artigo 56º CPTA, in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4ª edição, 2017
[17] In “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2004, pp. 372 - 373
[18] Machete, Rui, “A Sanação do ato administrativo inválido”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume VII, 1996, p. 341
[19] De novo, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2006, p. 286
[20] Analisaremos mais pormenorizadamente infra a figura da renúncia enquanto figura afim.
[21] Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, in “Dicionário de Contencioso Administrativo”, Almedina, 2ª edição, p. 96
[22] CF. Art. 86º e 87º/2 CPTA.
[23] Andrade José Carlos Vieira de, “A aceitação do ato administrativo”, in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Volume Comemorativo do 75.º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, 2003, p. 922
[24] Referimo-nos ao art. 52º-A da Lei 50/2006, de 29 Agosto, relativamente ás contra ordenações ambientais ao estabelecer que “o pagamento da coima após a notificação da decisão administrativa que a aplicou preclude o direito de impugnação judicial relativamente à mesma”, in “A Justiça Administrativa - (Lições)”, [anotação 749], 13ª edição, Almedina, 2014, p. 273
[25] Luís, Sandra Lopes,  in “A aceitação do ato administrativo: conceito, fundamentos e efeitos”, Lisboa, 2008, p. 112
[26] Luís, Sandra Lopes,  in “A aceitação do ato administrativo: conceito, fundamentos e efeitos”, Lisboa, 2008, p. 113
[27] Andrade José Carlos Vieira de, “A aceitação do ato administrativo”, in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Volume Comemorativo do 75.º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, 2003, p. 933
[28] Processo nº 038967, relator (RUI PINHEIRO)
[29] De 25/11/2011, Processo nº 08219/11 relator (CLARA RODRIGUES)
[30] Processo nº 0912/08, relator (SÃO PEDRO)
[31] CF. art. 44º DL 197/99, de 8 Junho
[32] Processo nº 02745/07, relator (ANTÓNIO VASCONCELOS)
[33] Apesar de não concordarmos com a nomenclatura (que se irá aferir infra), o que se deseja transmitir é a aplicação do art. 56º CPTA.
[34] Processo nº 0111/03, relator (ABEL ATANÁSIO)
[35] Processo nº 0912/08, relator (SÃO PEDRO)
[36] Referimo-nos a Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, em anotação ao artigo 56º CPTA, in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4ª edição, 2017
[37] Admitindo a aceitação do ato administrativo enquanto pressuposto processual autónomo encontra-se Sandra Lopes Luís, in “A aceitação do ato administrativo: conceito, fundamentos e efeitos”, Lisboa, 2008, pp. 194-197
[38] Parece que chegamos a uma conclusão próxima do entendimento de Vasco Pereira da Silva ao considerar a figura da aceitação do ato administrativo como uma hipótese de falta interesse em agir, in “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2ª edição, 2009, pp. 373 – 374.
[39] Mário Aroso de Almeida não o autonomiza, entendendo antes que estamos perante um “pressuposto processual especifico de conteúdo negativo” in “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2017, 3ª Edição, p. 304.
Embora tomemos a posição apresentada, compreende-se melhor esta designação do que efetivamente considerar a aceitação do ato como um pressuposto autónomo colocando-o num nível de paridade semelhante aos restantes pressupostos processuais - da personalidade e capacidade judiciária, do patrocínio judiciário e da legitimidade processual – não nos parece muito coerente nem sistematicamente atendível, assim como sugere desconformidade com a intenção do legislador.


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