sábado, 3 de novembro de 2018


O Ministério Público no atual contencioso administrativo português – continuação da representação do Estado ou preocupação exclusiva com a defesa da legalidade democrática?



Rita Calado[1]

RESUMO
No presente post refere-se a figura do Ministério Público no atual contencioso administrativo português (considerando a reforma de 2015). Serão analisadas as várias funções do Ministério público, focando a função da representação do Estado e da defesa da legalidade democrática e qual o papel do Ministério público atualmente – continuidade para a representação do Estado ou preocupação exclusiva com a defesa da legalidade democrática.

Palavras-chave: Ministério Público; contencioso administrativo; representação do estado; legalidade democrática; autarquias locais; regiões autónomas; órgão de justiça independente e autónomo;


Sumário:1. Origens e noção de Ministério Público; 2. Atribuições do Ministério Público; 3. Representação do Estado (nos Tribunais administrativos) e defesa da legalidade democrática; 4. Qual o papel do Ministério Público, atualmente, no contencioso administrativo – continuidade na representação do Estado ou preocupação exclusiva com a defesa da legalidade democrática?

ABSTRACT
The present post refers to the figure of the Public Prosecutor in the current Portuguese litigation. Several functions of the Public Prosecutor will be analysed, focusing on the State representation and the democratic legality, in order to ascertain the current role of the Portuguese Public Prosecutor – regarding the State Representation or the exclusive concern with the democratic legality defendant.


Key Words: Public Prosecutor; administrative litigation; State representation; Democratic legality; counties; autonomous regions; autonomous and independent judicial body;

1. Origens e noção de Ministério Público
Embora com origens mais remotas – a doutrina portuguesa convém em que o aparecimento do Ministério Público, como organização estável e permanente, se verificou, entre nós, no século XIV[2] - foi apenas com “A constituição de 1976 que houve a sistematização do Ministério Público num capítulo próprio e o dotou de um estatuto inovador, ainda que relativamente ambíguo”[3].
Foi originariamente concebido como “órgão de ligação” entre o poder judicial e o poder político, sendo nos termos constitucionais, um órgão do poder judicial[4], contemplado nos termos do artigo 219º1 da Constituição da República Portuguesa, no artigo 1º do Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 47/86 de 15 de Outubro, com a última alteração pela Lei n.º 9/2011 de 12 de Abril) e no artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), onde estão cometidas as funções de representação do Estado, do exercício da ação penal, da defesa da legalidade democrática, de participação na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania e dos demais interesses que a Constituição, o Estatuto do Ministério Público e a lei determinarem[5].
                  Segundo os professores GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, o Ministério Público é um dos órgãos constitucionais integrados na organização dos tribunais que mais dúvidas oferece quanto à sua posição constitucional. Tendo em conta a sua evolução histórica (primeiro representante do rei junto da autoridade judiciária, depois órgão dos tribunais dependente do Governo e, por último, magistrados independentes e autónomos) é seguro afirmar que o paradigma do Ministério Público acolhido pela Constituição de 1976 é o de um órgão da justiça independente e autónomo, subtraído à dependência do poder executivo e erguido à categoria de magistratura, com garantias próprias aproximadas das dos juízes. Mas a Constituição é omissa quanto ao seu lugar nos tribunais enquanto órgãos de soberania. De resto, é omissa também sobre a organização do Ministério Público, inclusive sobre a sua estrutura hierárquica (salvo o disposto quanto ao Procurador-Geral da República: artigo 220º1 CRP); nada diz explicitamente sobre o seu estatuto face ao Governo, embora um regime de subordinação seja certamente incompatível com a autonomização funcional e orgânica do Ministério Público; e também pouco diz sobre o estatuto dos magistrados[6].
                  Segundo CUNHA RODRIGUES, tratando-se de uma instituição que surgiu primeiramente na estrutura social e, depois, na lei, e que não corresponde a um único modelo nem prossegue atribuições uniformes, sendo diversas as definições do Ministério Público. Para uns, é os “olhos do governo”, um ente encarregado de, em nome do poder executivo, perseguir os crimes e fiscalizar a função do poder judiciário, assegurando a independência e a liberdade de ação indispensáveis ao correto funcionamento da justiça; para outros, ainda, é um órgão judicial, integrado nos tribunais ou, pelo menos, exercendo funções junto deles, com poderes de iniciativa, representação e controlo relativamente a todos os direitos e interesses em que o Estado é chamado a exercer uma função de soberania ou tutela[7].
Também o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (CCPGR) vem caracterizando o Ministério Público como órgão autónomo da Administração da Justiça e órgão do Estado de administração da Justiça, a que cabe colaborar com o poder judicial na realização do Direito[8].

2. Atribuições do Ministério Público
                  Quanto ao enquadramento normativo, a estrutura organizatória e funcional do Ministério Público, o regime estatutário dos seus magistrados e o regime de intervenção processual são concretizadas na lei ordinária – no Estatuto do Ministério Público (EMP)[9], referindo no seu Artigo 1º, a representação do Estado, competência reafirmada em outras disposições legais de organização judiciária. No artigo 51º do ETAF é referida a representação do Estado, a defesa da legalidade democrática e a promoção do interesse público.
                  Segundo CUNHA RODRIGUES, as atribuições do Ministério Público visam, nas democracias modernas, quatro grandes objetivos[10]: a promoção e defesa da legalidade, a defesa da sociedade contra o crime, a realização do princípio da igualdade no acesso ao direito e à justiça e a defesa da independência dos tribunais.
                  Por sua vez, para o professor MESQUITA FURTADO, este sistematiza os poderes como: poderes de representação de outros sujeitos processuais, poderes de iniciativa processual em nome próprio (ação pública e ação popular) e poderes de intervenção em processos intentados por outros sujeitos processuais[11]. Para o professor SÉRVULO CORREIA, as funções do Ministério Público são três: ação pública, coadjuvação do tribunal na realização do direito e a terceira consiste no patrocínio judiciário do Estado e de outras pessoas representadas por imperativo legal[12]. Para CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, no âmbito da justiça administrativa portuguesa, o Ministério Público goza de significativos poderes processuais para cumprimento das suas variadas funções, poderes que, avaliados no seu conjunto, o tornam uma figura ímpar relativamente às instituições congéneres dos outros países europeus[13].
                  Segundos os professores GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, são muito diversificadas as funções do Ministério Público, analisando-se em quatro áreas: representação do Estado, nomeadamente nos tribunais, nas causas em que ele seja parte, funcionando como uma espécie de advogado do Estado; exercer a ação penal, sendo todavia problemático se ele detém o exclusivo nessa matéria e se se trata de um poder vinculado ou se dispõe de alguma margem de liberdade; defender a legalidade democrática, intervindo, entre outras coisas, no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade; defender os interesses de determinadas pessoas mais carecidas de proteção, designadamente, verificados certos requisitos, como os menores, os ausentes, os trabalhadores, etc[14]. O exercício simultâneo destas várias funções pode não ser isento de conflitos e incompatibilidades, pois nem sempre a defesa dos interesses privados do Estado pode ser harmonizável com, por exemplo, a defesa da legalidade democrática[15]. Por essa razão, cabe melhor análise destas duas atribuições do Ministério Público que podem gerar mais conflitos.

4. Representação do Estado (nos Tribunais Administrativos) e defesa da legalidade democrática
                  O Ministério Público representa o Estado, exercendo a ação penal e defendendo a legalidade, mas também na defesa de interesses públicos. Por outro lado, o Ministério Público não representa o Estado enquanto este atuar como pessoa privada (artigo 80º a) e B) EMP). É em virtude desta ambiguidade em que o Ministério Público afivela duas máscaras – a de “advogado do Estado” e de “Procurador do Estado”. A representação do Estado significa, em termos jurídico-constitucionais e simbólicos, que lhe incumbe a tarefa de defesa dos interesses da comunidade em que se possa reconhecer cada um dos cidadãos e o povo em geral, não só porque se considera necessária essa incumbência, mas também porque ela se julga justa e adequada ao bem comum[16].
                  Primeiramente, discute-se se ao Ministério Público incumbe representar apenas o Estado ou deve representar também as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais.
                   Nos termos dos artigos 51º1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), artigo 11º1 do Código do Procedimento Tributário e Administrativo (CPTA), artigo 1º do Estatuto do Ministério Público (EMP) e do artigo 219º1 da Constituição da República Portuguesa, apenas existe referência à representação do Estado pelo Ministério Público. Porém, nos termos dos artigos 3º1 a) e 5º1 b) do Estatuto do Ministério Público, existe a referência à representação das Autarquias Locais e das Regiões Autónomas por parte do MP.
                  Não existindo qualquer referência do ETAF e do CPTA à representação das Autarquias Locais e das Regiões Autónomas, alguns autores, como ALEXANDRA LEITÃO, consideram que sendo estes diplomas posteriores ao Estatuto do Ministério Público, aqueles derrogam este[17]. MESQUITA FURTADO afirma que efetivamente, já tem sido sustentado que a formulação do artigo 51º do ETAF, circunscrevendo a representação processual do MP ao Estado parece excluir a sua intervenção em representação das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais[18].
                  Consequentemente, o artigo 5.º do Estatuto do Ministério Público, que prevê a intervenção principal do Ministério Público quer quando represente o Estado [alínea a)], quer quando represente as regiões autónomas e as autarquias locais [alínea b)] deve ser interpretado em conformidade, aplicando-se apenas, no que a estas diz respeito, a intervenção acessória prevista na alínea a) do n.º 4 do mesmo artigo 5.º Claro que o Ministério Público só pode intervir como parte acessória em processos nos quais não seja parte principal, por exemplo, no âmbito de uma ação pública ou quando represente o Estado, como autor ou como demandado. Só assim não seria se os estatutos das regiões ou a lei das autarquias locais dispusessem em contrário, o que não acontece, uma vez que estes diplomas são omissos quanto à possibilidade de patrocínio judiciário pelo Ministério Público[19]. Refira-se que, apesar de, aparentemente, a alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Estatuto do Ministério Público equiparar a situação do Estado à das regiões autónomas e das autarquias locais, a verdade é que as situações são diferentes. No caso do Estado prevê-se uma verdadeira representação, uma vez que nas ações cíveis e nas ações administrativas de responsabilidade civil e de contratos o Estado é citado na pessoa do procurador junto do tribunal competente. Pelo contrário, no caso das regiões autónomas e das autarquias locais, estas é que são citadas, nas pessoas dos respetivos chefes dos órgãos executivos, podendo solicitar ao Ministério Público que as defenda. Está em causa um verdadeiro e próprio patrocínio judiciário, atuando o Ministério Público como advogado[20].
                  Ficando claro que o Ministério Público deve representar somente o Estado, cumpre questionar quando o deve representar e de que tipo de representação se trata. Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA pode dizer-se que "A representação do Estado significa, em termos jurídico-constitucionais e simbólicos que lhe incumbe a tarefa de defesa dos interesses da comunidade (isto é, da República)."[21]Comenta SÉRVULO CORREIA o mesmo artigo 219º CRP da seguinte forma: "A enunciação de uma competência de representação é extremamente genérica. O texto não diz quais as matérias a que respeitará a representação, nem quais as circunstâncias- nomeadamente os tipos de processo- em que esta se desenvolverá.". [22] Também quanto ao artigo 219º CRP considera ALEXANDRA LEITÃO que o indirizzo constitucional tem sido interpretado restritivamente no que respeita à representação do Estado no âmbito do contencioso administrativo, no sentido de a limitar à defesa dos interesses patrimoniais do Estado, tal como está consagrado na alínea a) do artigo 53º do Estatuto do Ministério Público.[23]
                  Em matéria de representação processual do Estado, o CPTA apresentava, ainda há pouco tempo, uma solução dual. A representação processual cabia, por regra, a advogados ou licenciados em Direito com funções de apoio jurídico. Mas nos processos que tinham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, a representação processual do Estado era obrigatoriamente assegurada pelo Ministério Público, no artigo 11º/1/2 CPTA. Ficavam assim excluídas do âmbito de representação do Ministério Público a representação das pessoas coletivas de direito público e a representação processual em todas as formas de ação que não diziam respeito a relações contratuais e responsabilidade. Tal restrição ao papel do Ministério Público devia-se ao facto de a representação processual do Estado operar apenas em ações em que estivessem em causa interesses patrimoniais estaduais[24].  
                  De acordo com o Anteprojeto do artigo 11º1/ 2 do CPTA, nas ações em que o pedido principal tenha por objeto relações contratuais ou de responsabilidade, a representação processual cabe em princípio ao Ministério Público, mas determina-se com cariz inovatório que passa a ser possível a representação processual do Estado, por mandatário judicial próprio, ou seja, por advogado ou licenciado em Direito com funções de apoio jurídico. Haveria assim uma radical modificação do artigo referido. Sobre esta proposta pronunciou-se o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público da seguinte forma: “Versa este número sobre a possibilidade da representação do Estado em juízo ser assegurada por mandatário judicial. Trata-se de uma inovação, mas é uma solução que não tem qualquer justificação na exposição de motivos da proposta, para além do que se diz no, como tal designado, «Sexto Aspecto» da mesma: «…flexibilizando-se tal representação nas acções sobre responsabilidade e contratos, de modo a permitir ao Estado, perante um litígio em concreto, optar pela forma que melhor entender para representação dos seus interesses.»(…) Pelo exposto, a opção de permitir sem restrições nem limites a constituição de mandatários judiciais pelas entidades públicas nos seus litígios na jurisdição administrativa revela-se, a nosso ver, de muito duvidosa constitucionalidade e contraria, sem qualquer razão coerente nem clara (para além da «flexibilização» referida na exposição de motivos) a generalidade das normas, com sólida tradição no nosso ordenamento jurídico, que atribuem a defesa desses interesses ao Ministério Público. Mais, trata-se de uma previsão que tem de ser qualificada como potencialmente despesista e que não apresenta qualquer perspectiva de melhoria de resultados para a causa pública, tendo em consideração as percentagens e cifras anteriormente citadas. Pelo exposto, tal proposta merece a nossa franca e aberta discordância, em nome do interesse público.”[25]Considerava TIAGO SERRÃO quanto à versão do Anteprojecto que “A proposta em análise consubstancia uma clara mitigação do sistema dualista previsto no CPTA em vigor. Dito de outro modo, estamos diante de uma nítida flexibilização do quadro legal vigente…”[26] Tratava-se de uma solução a meio caminho, que sem deixar de atribuir a representação processual do Estado ao Ministério Público, abria portas à representação por meio de mandatário judicial próprio. Porém, considerava o Autor que se tratava de uma “proposta tímida”, uma vez que “O legislador deve ir mais longe e virar, de uma vez por todas, a página, em matéria de representação processual do Estado.”[27]
                  Porém não foi esta versão do Anteprojeto que passou para a norma legal e face ao atual artigo 11º do CPTA pergunta TIAGO SERRÃO se “Estará a ser perspectivada uma solução (i) de pura continuidade, (ii) de “evolução na continuidade” ou, por fim, (iii) de corte com o passado e com o presente?”.[28]
                  Cumpre, de seguida, esclarecer qual o tipo de representação que aqui está em causa. Tem sido muito discutido o problema da natureza jurídica da representação do Estado por parte do Ministério Público — orgânica ou legal — ou se, pelo contrário, se trata de um simples patrocínio judiciário. Na representação, um sujeito atua em nome de outrem, realizando atos jurídicos em seu nome, quer a representação seja legal — por imposição da lei —, quer seja voluntária — por manifestação de vontade do representado. Por sua vez, a representação orgânica ocorre quando esta é assumida por um órgão do representado. Tradicionalmente, tem-se entendido que a representação do Estado pelo Ministério Público é uma representação orgânica, na medida em que é um órgão do Estado[29]. No site do Ministério Público é possível ler-se: "A competência de representação do Estado está intimamente ligada com a defesa da legalidade democrática, que também é atribuída pela lei ao Ministério Público. Por isso não se trata de um patrocínio, como se de um mandatário se tratasse, mas de uma verdadeira representação orgânica. Porque, mesmo nesses casos, o Ministério Público actua de forma imparcial e isenta e não comandado por qualquer órgão específico do aparelho do Estado. E todos desejamos que os interesses do Estado sejam representados em tribunal dessa forma."[30] Na opinião de ALEXANDRA LEITÃO tal suscita dúvidas pois o Ministério Público é, de facto, um órgão do Estado, mas não é um órgão da pessoa coletiva Estado (...) Dito isto, fácil será perceber que, na minha opinião, a tese da representação legal se apresenta como a mais correta, uma vez que também não se trata apenas de um simples patrocínio judiciário, que pressupõe uma representação voluntária[31]. A verdade é que a epígrafe do artigo 11º CPTA faz referência tanto a patrocínio judiciário como a representação. No nº 2 a expressão utilizada é "representação do Estado"[32] Quanto a esta questão pronuncia-se o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público da seguinte forma: "São conceitos diversos, representação e patrocínio, aos quais podemos dizer que subjaz uma diferente filosofia no tocante à concepção da presença do Estado em juízo e que por isso não devem ser confundidos. A sua mistura na proposta de forma tão flagrante revela logo à partida contradições e incongruências na posição de princípio sobre esta questão, de que o texto em análise não se consegue libertar. Na verdade, não é, nem por norma nem por princípio, tarefa do Ministério Público patrocinar entidades, órgãos ou serviços públicos concretos, mas sim representar o Estado, entendido como entidade que prossegue e deve prosseguir o bem público.”[33]

                   Quando à defesa da legalidade democrática, que a Constituição (artigo 219º1 CRP) atribui ao Ministério Público, é entendida como dever de fiscalização dos atos e comportamentos das autoridades públicas e das entidades privadas com poderes públicos segundo os princípios da legalidade e da juridicidade[34].
                  Esta defesa aponta hoje para um alargamento das funções do Ministério Público: tem legitimidade para impugnar um ato administrativo (o Ministério Público avalia discricionariamente a oportunidade de impugnar atos administrativos ilegais sem dependência do tipo de vício ou da natureza ou importância dos interesses ofendidos, se bem que sem prejuízo de eventuais orientações internas do Ministério Público que possam limitar esta sua iniciativa), segundo o artigo 55º/1 al.b) CPTA; tem legitimidade para assumir, no exercício da ação pública, a posição de autor, requerendo o seguimento de processo que, por decisão ainda não transitada, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor, segundo o artigo 62º/1 CPTA; tem legitimidade para intentar ações de condenação à prática de ato devido, quando o dever de praticar o ato resulte diretamente da lei e esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um interesse público especialmente relevante ou de qualquer dos valores e bens referidos no nº 2 do artigo 9º, segundo o artigo 68º/1 al.b) CPTA; tem legitimidade para requerer a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de norma imediatamente operativa. Pode ainda o Ministério Público quando os efeitos de uma norma não se produzam imediatamente mas só através de um acto administrativo de aplicação, suscitar a questão da ilegalidade da norma aplicada. Tem ainda o dever de pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade, assim como recorrer das decisões de primeira instância que declarem a ilegalidade com força obrigatória geral[35][36]

5. Ministério Público: continuidade na representação do Estado ou preocupação exclusiva com a defesa da legalidade democrática?
                    Na opinião de ALEXANDRA LEITÃO, a melhor solução seria retirar ao Ministério Público a função de representação do Estado exatamente para evitar situações de conflito entre a defesa da legalidade e a defesa do Estado[37]. Esta autora argumenta que o leque de concretizações do artigo 9º2 do CPTA relacionadas aos poderes do Ministério Público em sede de defesa da legalidade democrática, significa que o Ministério Público desempenha, simultaneamente, funções estritamente objetivistas, inscritas numa dimensão teleológica, ou seja, de proteção de certos fins e interesses — defesa da legalidade democrática e dos valores referidos no artigo 9.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos — e funções de índole subjetivista, que visam a defesa de uma parte, na qual se inscreve a representação do Estado. Esta contraposição é temperada pela circunstância de o Estado prosseguir o interesse público e não interesses particulares. Isso não significa, contudo, que o interesse público tal como é perspetivado e defendido em cada caso pelo Estado seja sempre coincidente com o princípio da legalidade. É exatamente nas situações em que a atuação administrativa seja ilegal ou de duvidosa legalidade que o Ministério Público se encontra numa encruzilhada entre a prossecução do interesse público e a defesa da legalidade democrática. A maioria dos Autores defende que todas as atuações do Ministério Público têm, necessariamente, de se pautar por critérios de legalidade, imparcialidade e objetividade e que, por isso, em caso de contradição, deve ceder a função de representação do Estado. Assim, quando a pretensão do Estado seja manifestamente ilegal, o Ministério Público não deve representá-lo, optando por solicitar à Ordem dos Advogados a indicação de um advogado para representar o Estado, de acordo com o disposto no artigo 69.º do Estatuto do Ministério Público[38]. No mesmo sentido, VIERA DE ANDRADE argumenta que a CRP não impõe que no contexto do contencioso administrativo atual a função de representação processual do Estado seja atribuída ao Ministério Público. Parece que só com a sua ausência nesse domínio se “… resolverá satisfatoriamente o conflito virtual entre a autonomia do Ministério Público e a representação do Estado parte (…), bem como, em algumas situações, a dificuldade de conciliação da defesa da Administração (e do interesse público) com a estrita garantia da legalidade.”[39]
                    Concluindo, o Ministério Público é uma figura que como bem se entende se aperfeiçoou ao longo do tempo, transformando-se num "…MP novo, como órgão constitucional integrado no órgão de soberania Tribunais, muito diferente, nos planos estrutural, funcional, estatutário e organizacional, da anterior homónima instituição, que definitivamente ficou enterrada.".[40] O Ministério Público é tradicionalmente entendido como sendo indispensável para o processo administrativo porque faz com que este seja mais justo; serve de garante dos direitos fundamentais assim como de valores constitucionalmente protegidos, de cada sujeito considerado ou da comunidade; e para tal dispõe de várias formas de ação. O Ministério Público não só controla o cumprimento da lei, como defende os interesses dos particulares e da comunidade[41]. Já dizia RIBEIRO DE ALMEIDA quanto à anterior Reforma, e parece manter-se presente, com a nova Reforma de 2015, a mesma ideia: o estatuto geral do Ministério Público "É, pois, de manter, sem prejuízo da necessidade ou simples conveniência de introduzir aperfeiçoamentos que, porém, não deverão descaracterizar um modelo de provas dadas e cuja obliteração seria passível de diminuir o grau de densidade da protecção dos interesses (públicos ou privados) conformes ao direito e à lei no âmbito da justiça administrativa."[42]


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BIBLIOGRAFIA:
CANOTINHO, J.J Gomes in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Almedina
CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital in Constituição Anotada da república Portuguesa, VOL. II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2010
CORREIA, Sérvulo et al., A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001
FURTADO, Mesquita et al., A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, in Estudos em Memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora, Coimbra, 2014
MARÇALO, Paula in Estatuto do Ministério Público – Anotado, Coimbra Editora, 1ª edição, Setembro de 2011
MATOS, Manuel Pereira Augusto de in O Ministério Público e a representação do Estado na jurisdição administrativa – Anteprojeto de Revisão do código do Procedimento dos Tribunais administrativos, SERRÃO, Tiago; NEVES, Ana Fernanda; GOMES, Carla Amado in O Anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em debate (P.245 – 268)
LEITÃO, Alexandra in A representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR (P.193). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
ANDRADE, Vieira de in A Justiça Administrativa, Almedina, 2014,
SERRÃO, Tiago et al., A representação processual do Estado no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
FONSECA, Guilherme et al., O ministério público em Portugal (os dias de ontem e os dias de hoje) in Educar, Defender, Julgar para uma Reforma das funções do Estado, Almedina, Coimbra.
ALMEIDA, Ribeiro de, Uma teoria de Justiça, Justificação do Ministério Público no Contencioso Administrativo, in Separata da Revista do Ministério da Justiça nº84, Editorial Minerva, Lisboa, 2000

LINKS:

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[1] 4º Ano Dia, subturma 8; Nº 25959
[2] MARÇALO, Paula in Estatuto do Ministério Público (P.35)
[3] MARÇALO, Paulo in Estatuto do Ministério Público (p. 31)
[4] CANOTINHO, J.J Gomes in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Almedina (P.684)
[5] MATOS, Manuel Pereira Augusto de in O Ministério Público e a representação do Estado na jurisdição administrativa – Anteprojeto de Revisão do código do Procedimento dos Tribunais administrativos, SERRÃO, Tiago; NEVES, Ana Fernanda; GOMES, Carla Amado in O Anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em debate (P.245 – 268)
[6] CANOTILHO, Gomes, MOREIRA, Vital in Constituição Anotada da república Portuguesa, VOL. II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2010, (P. 601)
[7] MARÇALO, Paulo in Estatuto do Ministério Público (P.37)
[8] MATOS, Manuel Pereira Augusto de in O Ministério Público e a representação do Estado na jurisdição administrativa – Anteprojeto de Revisão do código do Procedimento dos Tribunais administrativos, SERRÃO, Tiago; NEVES, Ana Fernanda; GOMES, Carla Amado in O Anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em debate (P.246)
[9] MATOS, Manuel Pereira Augusto de in O Ministério Público e a representação do Estado na jurisdição administrativa – Anteprojeto de Revisão do código do Procedimento dos Tribunais administrativos, SERRÃO, Tiago; NEVES, Ana Fernanda; GOMES, Carla Amado in O Anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em debate (P.247)
[10]  MARÇALO, Paulo in Estatuto do Ministério Público (P.37)
[11] FURTADO, Mesquita et al., A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, in Estudos em Memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, (P.770)
[12] SÉRVULO CORREIA et al., A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, (p.303)
[13] MATOS, Manuel Pereira Augusto de in O Ministério Público e a representação do Estado na jurisdição administrativa – Anteprojeto de Revisão do código do Procedimento dos Tribunais administrativos, SERRÃO, Tiago; NEVES, Ana Fernanda; GOMES, Carla Amado in O Anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em debate (P.250)
[14] CANOTILHO, Gomes, MOREIRA, Vital in Constituição Anotada da república Portuguesa, VOL. II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2010, (P. 602)
[16] CANOTILHO, Gomes, MOREIRA, Vital in Constituição Anotada da república Portuguesa, VOL. II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2010, (P. 603)
[17] LEITÃO, Alexandre in A representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR (P.193). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[18] FURTADO, Mesquita et al., A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, p. 771.
[19] LEITÃO, Alexandre in A representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR (P.193). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[20] LEITÃO, Alexandre in A representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR (P.193). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[21] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, ver anotação ao artigo 219º.
[22] CORREIA, Sérvulo et al., A representação das pessoas colectivas públicas na arbitragem administrativa, p.119.
[23] LEITÃO, Alexandre in A representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR (P.192). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[24] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[26] TIAGO SERRÃO et al., A representação processual do Estado no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in O Anteprojecto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014, p. 236.
[27] TIAGO SERRÃO et al., A representação processual do Estado no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in O Anteprojecto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014, p.236.
[29] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[31] ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, (PP. 206 e 207)
[32] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[34] CANOTILHO, Gomes, MOREIRA, Vital in Constituição Anotada da república Portuguesa, VOL. II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2010, (P. 602)
[35] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[36] Nota: não se encontram todos os artigos mencionados, dado à sua grande extensão.
[37] LEITÃO, Alexandre in A representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR (P.200). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[38] LEITÃO, Alexandre in A representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR (P.197). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[39] ANDRADE, Vieira de in A Justiça Administrativa, Almedina, 2014, p. 229.
[40] GUILHERME FONSECA et al., O ministério público em Portugal (os dias de ontem e os dias de hoje) in Educar, Defender, Julgar para uma Reforma das funções do Estado, Almedina, Coimbra, 2014, p.104.
[41] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[42] RIBEIRO DE ALMEIDA, Uma teoria de Justiça, Justificação do Ministério Público no Contencioso Administrativo, in Separata da Revista do Ministério da Justiça nº84, Editorial Minerva, Lisboa, 2000, p.117

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