O Ministério Público no atual contencioso administrativo português – continuação da representação do Estado ou preocupação exclusiva com a defesa da legalidade democrática?
Rita Calado[1]
RESUMO
No
presente post refere-se a figura do Ministério Público no atual contencioso
administrativo português (considerando a reforma de 2015). Serão analisadas as
várias funções do Ministério público, focando a função da representação do
Estado e da defesa da legalidade democrática e qual o papel do Ministério
público atualmente – continuidade para a representação do Estado ou preocupação
exclusiva com a defesa da legalidade democrática.
Palavras-chave: Ministério Público; contencioso
administrativo; representação do estado; legalidade democrática; autarquias
locais; regiões autónomas; órgão de justiça independente e autónomo;
Sumário:1. Origens e noção de Ministério Público; 2. Atribuições do Ministério Público; 3. Representação do Estado (nos Tribunais administrativos) e defesa da legalidade democrática; 4. Qual o papel do Ministério Público, atualmente, no contencioso administrativo – continuidade na representação do Estado ou preocupação exclusiva com a defesa da legalidade democrática?
ABSTRACT
The present
post refers to the figure of the Public Prosecutor in the current Portuguese
litigation. Several functions of the Public Prosecutor will be analysed, focusing
on the State representation and the democratic legality, in order to ascertain
the current role of the Portuguese Public Prosecutor – regarding the State
Representation or the exclusive concern with the democratic legality defendant.
Key Words: Public Prosecutor; administrative litigation; State representation;
Democratic legality; counties; autonomous regions; autonomous and independent
judicial body;
1.
Origens e noção de Ministério Público
Embora
com origens mais remotas – a doutrina portuguesa convém em que o aparecimento
do Ministério Público, como organização estável e permanente, se verificou,
entre nós, no século XIV[2] - foi apenas com “A
constituição de 1976 que houve a sistematização do Ministério Público num
capítulo próprio e o dotou de um estatuto inovador, ainda que relativamente
ambíguo”[3].
Foi
originariamente concebido como “órgão de ligação” entre o poder judicial e o
poder político, sendo nos termos constitucionais, um órgão do poder judicial[4], contemplado nos termos do
artigo 219º1 da Constituição da República Portuguesa, no artigo 1º do Estatuto
do Ministério Público (Lei n.º 47/86 de 15 de Outubro, com a última alteração
pela Lei n.º 9/2011 de 12 de Abril) e no artigo 51º do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF), onde estão cometidas as funções de
representação do Estado, do exercício da ação penal, da defesa da legalidade
democrática, de participação na execução da política criminal definida pelos
órgãos de soberania e dos demais interesses que a Constituição, o Estatuto do
Ministério Público e a lei determinarem[5].
Segundo
os professores GOMES CANOTILHO e VITAL
MOREIRA, o Ministério Público é um dos órgãos constitucionais integrados na
organização dos tribunais que mais dúvidas oferece quanto à sua posição constitucional.
Tendo em conta a sua evolução histórica (primeiro representante do rei junto da
autoridade judiciária, depois órgão dos tribunais dependente do Governo e, por
último, magistrados independentes e autónomos) é seguro afirmar que o paradigma
do Ministério Público acolhido pela Constituição de 1976 é o de um órgão da
justiça independente e autónomo, subtraído à dependência do poder executivo e
erguido à categoria de magistratura, com garantias próprias aproximadas das dos
juízes. Mas a Constituição é omissa quanto ao seu lugar nos tribunais enquanto
órgãos de soberania. De resto, é omissa também sobre a organização do
Ministério Público, inclusive sobre a sua estrutura hierárquica (salvo o
disposto quanto ao Procurador-Geral da República: artigo 220º1 CRP); nada diz
explicitamente sobre o seu estatuto face ao Governo, embora um regime de
subordinação seja certamente incompatível com a autonomização funcional e
orgânica do Ministério Público; e também pouco diz sobre o estatuto dos
magistrados[6].
Segundo
CUNHA RODRIGUES, tratando-se de uma
instituição que surgiu primeiramente na estrutura social e, depois, na lei, e
que não corresponde a um único modelo nem prossegue atribuições uniformes, sendo
diversas as definições do Ministério Público. Para uns, é os “olhos do
governo”, um ente encarregado de, em nome do poder executivo, perseguir os
crimes e fiscalizar a função do poder judiciário, assegurando a independência e
a liberdade de ação indispensáveis ao correto funcionamento da justiça; para
outros, ainda, é um órgão judicial, integrado nos tribunais ou, pelo menos,
exercendo funções junto deles, com poderes de iniciativa, representação e
controlo relativamente a todos os direitos e interesses em que o Estado é
chamado a exercer uma função de soberania ou tutela[7].
Também o Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República (CCPGR) vem caracterizando o Ministério Público
como órgão autónomo da Administração da Justiça e órgão do Estado de
administração da Justiça, a que cabe colaborar com o poder judicial na
realização do Direito[8].
2.
Atribuições do Ministério Público
Quanto
ao enquadramento normativo, a estrutura organizatória e funcional do Ministério
Público, o regime estatutário dos seus magistrados e o regime de intervenção
processual são concretizadas na lei ordinária – no Estatuto do Ministério
Público (EMP)[9],
referindo no seu Artigo 1º, a
representação do Estado, competência reafirmada em outras disposições legais de
organização judiciária. No artigo 51º do
ETAF é referida a representação do Estado, a defesa da legalidade democrática e
a promoção do interesse público.
Segundo
CUNHA RODRIGUES, as atribuições do
Ministério Público visam, nas democracias modernas, quatro grandes objetivos[10]: a promoção e defesa da
legalidade, a defesa da sociedade contra o crime, a realização do princípio da
igualdade no acesso ao direito e à justiça e a defesa da independência dos
tribunais.
Por
sua vez, para o professor MESQUITA
FURTADO, este sistematiza os poderes como: poderes de representação de
outros sujeitos processuais, poderes de iniciativa processual em nome próprio
(ação pública e ação popular) e poderes de intervenção em processos intentados
por outros sujeitos processuais[11]. Para o professor SÉRVULO CORREIA, as funções do
Ministério Público são três: ação pública, coadjuvação do tribunal na
realização do direito e a terceira consiste no patrocínio judiciário do Estado
e de outras pessoas representadas por imperativo legal[12]. Para CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, no âmbito da
justiça administrativa portuguesa, o Ministério Público goza de significativos
poderes processuais para cumprimento das suas variadas funções, poderes que,
avaliados no seu conjunto, o tornam uma figura ímpar relativamente às
instituições congéneres dos outros países europeus[13].
Segundos
os professores GOMES CANOTILHO e VITAL
MOREIRA, são muito diversificadas as funções do Ministério Público,
analisando-se em quatro áreas: representação
do Estado, nomeadamente nos tribunais, nas causas em que ele seja parte,
funcionando como uma espécie de advogado do Estado; exercer a ação penal, sendo todavia problemático se ele detém o
exclusivo nessa matéria e se se trata de um poder vinculado ou se dispõe de
alguma margem de liberdade; defender a
legalidade democrática, intervindo, entre outras coisas, no contencioso
administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade; defender os interesses de determinadas
pessoas mais carecidas de proteção, designadamente, verificados certos
requisitos, como os menores, os ausentes, os trabalhadores, etc[14]. O exercício simultâneo
destas várias funções pode não ser isento de conflitos e incompatibilidades,
pois nem sempre a defesa dos interesses privados do Estado pode ser
harmonizável com, por exemplo, a defesa da legalidade democrática[15]. Por essa razão, cabe melhor análise
destas duas atribuições do Ministério Público que podem gerar mais conflitos.
4.
Representação do Estado (nos Tribunais Administrativos) e defesa da legalidade
democrática
O
Ministério Público representa o Estado, exercendo a ação penal e defendendo a
legalidade, mas também na defesa de interesses públicos. Por outro lado, o
Ministério Público não representa o Estado enquanto este atuar como pessoa
privada (artigo 80º a) e B) EMP). É em virtude desta ambiguidade em que o
Ministério Público afivela duas máscaras – a de “advogado do Estado” e de
“Procurador do Estado”. A representação do Estado significa, em termos
jurídico-constitucionais e simbólicos, que lhe incumbe a tarefa de defesa dos
interesses da comunidade em que se possa reconhecer cada um dos cidadãos e o
povo em geral, não só porque se considera necessária essa incumbência, mas
também porque ela se julga justa e adequada ao bem comum[16].
Primeiramente,
discute-se se ao Ministério Público incumbe representar apenas o Estado ou deve
representar também as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais.
Nos termos dos artigos 51º1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF),
artigo 11º1 do Código do
Procedimento Tributário e Administrativo (CPTA), artigo 1º do Estatuto do Ministério Público (EMP) e do artigo 219º1 da Constituição da República
Portuguesa, apenas existe referência à representação do Estado pelo Ministério
Público. Porém, nos termos dos artigos 3º1
a) e 5º1 b) do Estatuto do Ministério Público, existe a referência à
representação das Autarquias Locais e das Regiões Autónomas por parte do MP.
Não
existindo qualquer referência do ETAF e do CPTA à representação das Autarquias
Locais e das Regiões Autónomas, alguns autores, como ALEXANDRA LEITÃO,
consideram que sendo estes diplomas posteriores ao Estatuto do Ministério
Público, aqueles derrogam este[17]. MESQUITA FURTADO afirma
que efetivamente, já tem sido sustentado que a formulação do artigo 51º do ETAF, circunscrevendo a representação processual
do MP ao Estado parece excluir a sua intervenção em representação das Regiões
Autónomas e das Autarquias Locais[18].
Consequentemente, o artigo 5.º do Estatuto do
Ministério Público, que prevê a intervenção principal do Ministério Público
quer quando represente o Estado [alínea a)], quer quando represente as regiões
autónomas e as autarquias locais [alínea b)] deve ser interpretado em
conformidade, aplicando-se apenas, no que a estas diz respeito, a intervenção
acessória prevista na alínea a) do n.º 4
do mesmo artigo 5.º Claro que o Ministério Público só pode intervir como
parte acessória em processos nos quais não seja parte principal, por exemplo,
no âmbito de uma ação pública ou quando represente o Estado, como autor ou como
demandado. Só assim não seria se os estatutos das regiões ou a lei das
autarquias locais dispusessem em contrário, o que não acontece, uma vez que
estes diplomas são omissos quanto à possibilidade de patrocínio judiciário pelo
Ministério Público[19]. Refira-se que, apesar
de, aparentemente, a alínea a) do n.º 1
do artigo 3.º do Estatuto do Ministério Público equiparar a situação do
Estado à das regiões autónomas e das autarquias locais, a verdade é que as
situações são diferentes. No caso do Estado prevê-se uma verdadeira representação, uma vez que nas ações cíveis e nas
ações administrativas de responsabilidade civil e de contratos o Estado é
citado na pessoa do procurador junto do tribunal competente. Pelo contrário, no
caso das regiões autónomas e das autarquias locais, estas é que são citadas,
nas pessoas dos respetivos chefes dos órgãos executivos, podendo solicitar ao
Ministério Público que as defenda. Está em causa um verdadeiro e próprio patrocínio judiciário, atuando o Ministério
Público como advogado[20].
Ficando
claro que o Ministério Público deve representar
somente o Estado, cumpre questionar quando o deve representar e de que tipo
de representação se trata. Segundo GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA pode dizer-se que "A representação do Estado
significa, em termos jurídico-constitucionais e simbólicos que lhe incumbe a
tarefa de defesa dos interesses da comunidade (isto é, da República)."[21]Comenta SÉRVULO CORREIA o mesmo artigo 219º CRP da seguinte forma: "A
enunciação de uma competência de representação é extremamente genérica. O texto
não diz quais as matérias a que respeitará a representação, nem quais as
circunstâncias- nomeadamente os tipos de processo- em que esta se
desenvolverá.". [22] Também quanto ao artigo 219º CRP considera ALEXANDRA LEITÃO que o indirizzo constitucional
tem sido interpretado restritivamente no que respeita à representação do Estado
no âmbito do contencioso administrativo, no sentido de a limitar à defesa dos
interesses patrimoniais do Estado, tal como está consagrado na alínea a) do
artigo 53º do Estatuto do Ministério Público.[23]
Em
matéria de representação processual do Estado, o CPTA apresentava, ainda há
pouco tempo, uma solução dual. A representação processual cabia, por regra, a
advogados ou licenciados em Direito com funções de apoio jurídico. Mas nos
processos que tinham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, a
representação processual do Estado era obrigatoriamente assegurada pelo
Ministério Público, no artigo 11º/1/2 CPTA. Ficavam assim excluídas do âmbito
de representação do Ministério Público a representação das pessoas coletivas de
direito público e a representação processual em todas as formas de ação que não
diziam respeito a relações contratuais e responsabilidade. Tal restrição ao
papel do Ministério Público devia-se ao facto de a representação processual do
Estado operar apenas em ações em que estivessem em causa interesses
patrimoniais estaduais[24].
De acordo com o Anteprojeto do
artigo 11º1/ 2 do CPTA, nas ações em que o pedido principal tenha por objeto
relações contratuais ou de responsabilidade, a representação processual cabe em
princípio ao Ministério Público, mas determina-se com cariz inovatório que
passa a ser possível a representação processual do Estado, por mandatário
judicial próprio, ou seja, por advogado ou licenciado em Direito com funções de
apoio jurídico. Haveria assim uma radical modificação do artigo referido. Sobre
esta proposta pronunciou-se o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
da seguinte forma: “Versa este número sobre a possibilidade da representação do
Estado em juízo ser assegurada por mandatário judicial. Trata-se de uma
inovação, mas é uma solução que não tem qualquer justificação na exposição de
motivos da proposta, para além do que se diz no, como tal designado, «Sexto
Aspecto» da mesma: «…flexibilizando-se tal representação nas acções sobre
responsabilidade e contratos, de modo a permitir ao Estado, perante um litígio
em concreto, optar pela forma que melhor entender para representação dos seus
interesses.»(…) Pelo exposto, a opção de permitir sem restrições nem limites a
constituição de mandatários judiciais pelas entidades públicas nos seus
litígios na jurisdição administrativa revela-se, a nosso ver, de muito duvidosa
constitucionalidade e contraria, sem qualquer razão coerente nem clara (para
além da «flexibilização» referida na exposição de motivos) a generalidade das
normas, com sólida tradição no nosso ordenamento jurídico, que atribuem a
defesa desses interesses ao Ministério Público. Mais, trata-se de uma previsão
que tem de ser qualificada como potencialmente despesista e que não apresenta
qualquer perspectiva de melhoria de resultados para a causa pública, tendo em
consideração as percentagens e cifras anteriormente citadas. Pelo exposto, tal
proposta merece a nossa franca e aberta discordância, em nome do interesse
público.”[25]Considerava
TIAGO SERRÃO quanto à versão do Anteprojecto que “A proposta em análise
consubstancia uma clara mitigação do sistema dualista previsto no CPTA em
vigor. Dito de outro modo, estamos diante de uma nítida flexibilização do
quadro legal vigente…”[26] Tratava-se
de uma solução a meio caminho, que sem deixar de atribuir a representação
processual do Estado ao Ministério Público, abria portas à representação por
meio de mandatário judicial próprio. Porém, considerava o Autor que se tratava
de uma “proposta tímida”, uma vez que “O legislador deve ir mais longe e virar,
de uma vez por todas, a página, em matéria de representação processual do
Estado.”[27]
Porém não foi esta versão do
Anteprojeto que passou para a norma legal e face ao atual artigo 11º do CPTA pergunta TIAGO SERRÃO se “Estará a
ser perspectivada uma solução (i) de pura continuidade, (ii) de “evolução na
continuidade” ou, por fim, (iii) de corte com o passado e com o presente?”.[28]
Cumpre,
de seguida, esclarecer qual o tipo de representação que aqui está em causa. Tem
sido muito discutido o problema da natureza jurídica da representação do Estado
por parte do Ministério Público — orgânica ou legal — ou se, pelo contrário, se
trata de um simples patrocínio judiciário. Na representação, um sujeito atua em
nome de outrem, realizando atos jurídicos em seu nome, quer a representação
seja legal — por imposição da lei —, quer seja voluntária — por manifestação de
vontade do representado. Por sua vez, a representação orgânica ocorre quando
esta é assumida por um órgão do representado. Tradicionalmente, tem-se
entendido que a representação do Estado pelo Ministério Público é uma representação
orgânica, na medida em que é um órgão do Estado[29]. No site do Ministério
Público é possível ler-se: "A competência de representação do Estado está
intimamente ligada com a defesa da legalidade democrática, que também é
atribuída pela lei ao Ministério Público. Por isso não se trata de um patrocínio,
como se de um mandatário se tratasse, mas de uma verdadeira representação
orgânica. Porque, mesmo nesses casos, o Ministério Público actua de forma
imparcial e isenta e não comandado por qualquer órgão específico do aparelho do
Estado. E todos desejamos que os interesses do Estado sejam representados em
tribunal dessa forma."[30] Na opinião de ALEXANDRA
LEITÃO tal suscita dúvidas pois o Ministério Público é, de facto, um órgão do
Estado, mas não é um órgão da pessoa coletiva Estado (...) Dito isto, fácil
será perceber que, na minha opinião, a tese da representação legal se apresenta
como a mais correta, uma vez que também não se trata apenas de um simples
patrocínio judiciário, que pressupõe uma representação voluntária[31]. A verdade é que a
epígrafe do artigo 11º CPTA faz referência tanto a patrocínio judiciário como a
representação. No nº 2 a expressão utilizada é "representação do
Estado"[32]
Quanto a esta questão pronuncia-se o Sindicato dos Magistrados do Ministério
Público da seguinte forma: "São conceitos diversos, representação e
patrocínio, aos quais podemos dizer que subjaz uma diferente filosofia no
tocante à concepção da presença do Estado em juízo e que por isso não devem ser
confundidos. A sua mistura na proposta de forma tão flagrante revela logo à
partida contradições e incongruências na posição de princípio sobre esta
questão, de que o texto em análise não se consegue libertar. Na verdade, não é,
nem por norma nem por princípio, tarefa do Ministério Público patrocinar
entidades, órgãos ou serviços públicos concretos, mas sim representar o Estado,
entendido como entidade que prossegue e deve prosseguir o bem público.”[33]
Quando à defesa da legalidade democrática, que a Constituição (artigo 219º1 CRP) atribui ao Ministério Público, é entendida como dever de fiscalização dos atos e comportamentos das autoridades públicas e das entidades privadas com poderes públicos segundo os princípios da legalidade e da juridicidade[34].
Esta
defesa aponta hoje para um alargamento das funções do Ministério Público: tem
legitimidade para impugnar um ato administrativo (o Ministério Público avalia
discricionariamente a oportunidade de impugnar atos administrativos ilegais sem
dependência do tipo de vício ou da natureza ou importância dos interesses
ofendidos, se bem que sem prejuízo de eventuais orientações internas do
Ministério Público que possam limitar esta sua iniciativa), segundo o artigo
55º/1 al.b) CPTA; tem legitimidade para assumir, no exercício da ação pública,
a posição de autor, requerendo o seguimento de processo que, por decisão ainda
não transitada, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria
do autor, segundo o artigo 62º/1 CPTA; tem legitimidade para intentar ações de
condenação à prática de ato devido, quando o dever de praticar o ato resulte
diretamente da lei e esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um
interesse público especialmente relevante ou de qualquer dos valores e bens
referidos no nº 2 do artigo 9º, segundo o artigo 68º/1 al.b) CPTA; tem
legitimidade para requerer a declaração de ilegalidade com força obrigatória
geral de norma imediatamente operativa. Pode ainda o Ministério Público quando
os efeitos de uma norma não se produzam imediatamente mas só através de um acto
administrativo de aplicação, suscitar a questão da ilegalidade da norma
aplicada. Tem ainda o dever de pedir a declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de
uma norma com fundamento na sua ilegalidade, assim como recorrer das decisões
de primeira instância que declarem a ilegalidade com força obrigatória geral[35][36]
5.
Ministério Público: continuidade na representação do Estado ou preocupação
exclusiva com a defesa da legalidade democrática?
Na
opinião de ALEXANDRA LEITÃO, a
melhor solução seria retirar ao Ministério Público a função de representação do
Estado exatamente para evitar situações de conflito entre a defesa da
legalidade e a defesa do Estado[37]. Esta autora argumenta
que o leque de concretizações do artigo 9º2 do CPTA relacionadas aos poderes do
Ministério Público em sede de defesa da legalidade democrática, significa que o
Ministério Público desempenha, simultaneamente, funções estritamente
objetivistas, inscritas numa dimensão teleológica, ou seja, de proteção de
certos fins e interesses — defesa da legalidade democrática e dos valores
referidos no artigo 9.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos — e funções de índole subjetivista, que visam a defesa de uma
parte, na qual se inscreve a representação do Estado. Esta contraposição é
temperada pela circunstância de o Estado prosseguir o interesse público e não
interesses particulares. Isso não significa, contudo, que o interesse público
tal como é perspetivado e defendido em cada caso pelo Estado seja sempre
coincidente com o princípio da legalidade. É exatamente nas situações em que a
atuação administrativa seja ilegal ou de duvidosa legalidade que o Ministério
Público se encontra numa encruzilhada entre a prossecução do interesse público
e a defesa da legalidade democrática. A maioria dos Autores defende que todas
as atuações do Ministério Público têm, necessariamente, de se pautar por
critérios de legalidade, imparcialidade e objetividade e que, por isso, em caso
de contradição, deve ceder a função de representação do Estado. Assim, quando a
pretensão do Estado seja manifestamente ilegal, o Ministério Público não deve
representá-lo, optando por solicitar à Ordem dos Advogados a indicação de um
advogado para representar o Estado, de acordo com o disposto no artigo 69.º do
Estatuto do Ministério Público[38]. No mesmo sentido, VIERA DE ANDRADE argumenta que a CRP não impõe que no contexto do
contencioso administrativo atual a função de representação processual do Estado
seja atribuída ao Ministério Público. Parece que só com a sua ausência nesse
domínio se “… resolverá satisfatoriamente o conflito virtual entre a autonomia
do Ministério Público e a representação do Estado parte (…), bem como, em
algumas situações, a dificuldade de conciliação da defesa da Administração (e
do interesse público) com a estrita garantia da legalidade.”[39]
Concluindo,
o Ministério Público é uma figura que como bem se entende se aperfeiçoou ao
longo do tempo, transformando-se num "…MP novo, como órgão constitucional
integrado no órgão de soberania Tribunais, muito diferente, nos planos
estrutural, funcional, estatutário e organizacional, da anterior homónima
instituição, que definitivamente ficou enterrada.".[40] O Ministério Público
é tradicionalmente entendido como sendo indispensável para o processo
administrativo porque faz com que este seja mais justo; serve de garante dos
direitos fundamentais assim como de valores constitucionalmente protegidos, de
cada sujeito considerado ou da comunidade; e para tal dispõe de várias formas
de ação. O Ministério Público não só controla o cumprimento da lei, como
defende os interesses dos particulares e da comunidade[41]. Já dizia RIBEIRO DE ALMEIDA quanto à anterior
Reforma, e parece manter-se presente, com a nova Reforma de 2015, a mesma
ideia: o estatuto geral do Ministério Público "É, pois, de manter, sem
prejuízo da necessidade ou simples conveniência de introduzir aperfeiçoamentos
que, porém, não deverão descaracterizar um modelo de provas dadas e cuja obliteração
seria passível de diminuir o grau de densidade da protecção dos interesses
(públicos ou privados) conformes ao direito e à lei no âmbito da justiça
administrativa."[42]
____________________________________________________________
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[2] MARÇALO, Paula in Estatuto do Ministério Público (P.35)
[3] MARÇALO, Paulo in Estatuto do Ministério Público (p. 31)
[4] CANOTINHO, J.J
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[6] CANOTILHO, Gomes,
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[7] MARÇALO, Paulo in Estatuto do Ministério Público (P.37)
[8] MATOS, Manuel
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[9]
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[10] MARÇALO, Paulo in Estatuto do Ministério Público (P.37)
[11] FURTADO, Mesquita et
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administrativo, in Estudos em Memória do Conselheiro Artur Maurício,
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[12] SÉRVULO
CORREIA et al., A reforma do contencioso administrativo e
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[13] MATOS, Manuel
Pereira Augusto de in O Ministério Público e a representação do
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[14] CANOTILHO, Gomes,
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[16] CANOTILHO, Gomes,
MOREIRA, Vital in Constituição Anotada da
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[17] LEITÃO, Alexandre
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[18] FURTADO, Mesquita et
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[19] LEITÃO, Alexandre
in A representação do Estado pelo
Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR
(P.193). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[20] LEITÃO, Alexandre
in A representação do Estado pelo
Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR
(P.193). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[21] GOMES CANOTILHO e
VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol.
II, ver anotação ao artigo 219º.
[22] CORREIA,
Sérvulo et al., A representação das pessoas colectivas
públicas na arbitragem administrativa, p.119.
[23] LEITÃO, Alexandre
in A representação do Estado pelo
Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR
(P.192). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[24] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português,
Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[26] TIAGO SERRÃO et al., A representação processual
do Estado no Anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, in O Anteprojecto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate,
AAFDL, Lisboa, 2014, p. 236.
[27] TIAGO SERRÃO et
al., A representação processual do Estado no Anteprojecto de
revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in O
Anteprojecto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014,
p.236.
[29] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português,
Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[31] ALEXANDRA
LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais
administrativos, (PP. 206 e 207)
[32] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português,
Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[33] Disponível
em http://www.smmp.pt/wp-content/PARECER-DO-SMMP-CPTA-ETAF.pdf .
[34] CANOTILHO, Gomes,
MOREIRA, Vital in Constituição Anotada da
república Portuguesa, VOL. II, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2010, (P.
602)
[35] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português,
Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[37]
LEITÃO,
Alexandre in A representação do Estado
pelo Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR
(P.200). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[38] LEITÃO, Alexandre
in A representação do Estado pelo
Ministério Público nos Tribunais administrativos, artigo da revista JULGAR
(P.197). Link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf
[40] GUILHERME
FONSECA et al., O ministério público em Portugal (os dias
de ontem e os dias de hoje) in Educar, Defender, Julgar para uma
Reforma das funções do Estado, Almedina, Coimbra, 2014, p.104.
[41] SILVA, Cláudia Santos in O Ministério Público no atual contencioso administrativo português,
Link: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010
[42] RIBEIRO DE
ALMEIDA, Uma teoria de Justiça, Justificação do Ministério Público no
Contencioso Administrativo, in Separata da Revista do Ministério da Justiça
nº84, Editorial Minerva, Lisboa, 2000, p.117
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