domingo, 9 de dezembro de 2018

Reforma do Contencioso Administrativo

O Deferimento Tácito: meio a utilizar para reagir perante esta figura e críticas que lhe afiguram

Diogo de Brito Fonseca, aluno 28559, subturma 8

Notas introdutórias

Na letra do CPA avulta, no n.º1 do artigo 9.º, o princípio da decisão. Segundo este, os órgãos administrativos têm, nos termos regulados pelo Código (ou seja, agindo procedimentalmente de acordo com o modelo funcional nele estabelecido), de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados pelos particulares, quer estes o façam na defesa de interesses individualizados, quer a título de participação cívica.[1]

A introdução da condenação à prática de ato legalmente devido, como MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/ RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, constituiu uma verdadeira inovação no ordenamento jurídico português, já que o facto de ter instituído um processo de plena jurisdição permite superar as naturais deficiências do clássico recurso contencioso de anulação em face de posições jurídicas de “conteúdo pretensivo ou dinâmico” dos interessados.

Um método alternativo de tutela dos particulares contra a inércia da administração em face de um pedido de autorização do exercício de um direito é o deferimento tácito em que a lei atribui a constituição de um efeito jurídico-administrativo permissivo à conduta omissiva por ela tipificada. [2]
A doutrina maioritária defende que o regime do pedido de condenação à prática de ato devido visa apenas as situações de silêncio da Administração em que, na legislação anterior, se formava ato de indeferimento tácito. JOÃO TIAGO SILVEIRA[3], colocando o seu cunho nesta questão, afirma primeiro que o deferimento tácito é uma figura do procedimento administrativo – constituindo precisamente um mecanismo destinado a evitar a necessidade de fazer valer uma pretensão junto dos tribunais perante o silêncio administrativo – e não uma figura do contencioso administrativo, pelo que o autor não vê possibilidade do novo Contencioso Administrativo ter pretendido revogá-lo.

Diferentemente, o indeferimento tácito era um instituto de direito processual que visava, até ao CPTA, permitir o recurso contencioso de anulação na sequência de uma situação de inércia da Administração, através da criação de uma simulação de existência de ato. Assim sendo, faz todo o sentido que o pedido de condenação à prática de ato devido, ao surgir como um instrumento de reação jurisdicional perante o silêncio administrativo, vise substituí-lo, sendo absurdo para SILVEIRA, estender esta intenção ao deferimento tácito, enquanto figura de direito substantivo que é[4], posição na qual me revejo.
Coloca-se, então, a questão de saber qual a via de reação face a um ato de deferimento tácito.


Via de reação face ao deferimento tácito

Alguns autores sustentam que a via de reação perante um ato de deferimento tácito será o pedido de impugnação de ato administrativo, da ação administrativa especial, e não a condenação à prática de atos administrativos (artigo 67.º/1., al. a) do CPTA), cujo objeto se circunscreve às situações em que, até à entrada em vigor do CPTA, havia lugar à formação de atos de indeferimento tácito.[5]

Afirma-se que nos casos de deferimento tácito não há lugar à propositura de uma ação de condenação à prática de ato ilegalmente omitido, pelo simples motivo de que a produção desse ato já resultou da lei, no sentido de que uma eventual ação de condenação à prática de ato devido, nos casos mencionados, enfermaria de impossibilidade de objeto, uma vez que o ato já existe, como SÉRVULO CORREIA o afirma. Mais se afirma que a via de reação contra atos de deferimento tácito só pode passar pelo pedido de impugnação de ato administrativo, dado que o regime do deferimento tácito é o do ato expresso, substituindo o ato tácito obtido, para todos os efeitos, o ato administrativo de sentido positivo que foi omitido, como se esse ato existisse[6].

VASCO PEREIRA DA SILVA[7] afasta-se do entendimento acima explanado por considerar que o deferimento tácito não é um ato administrativo, sustentando a diferença entre a produção de efeitos decorrentes de uma “ficção legal”, em caso de comportamento omissivo por parte da Administração, e a atuação intencional da Administração, materializada num procedimento destinado á emissão de um ato administrativo. Contudo, o auto reconhece como obstáculo, independentemente de se admitir ou não que da omissão administrativa que conduz ao deferimento tácito resulta um ato administrativo, “o facto de estar em causa uma ficção legal com efeitos positivos que, o mesmo é dizer, (em princípio) favorável ao particular[8]. Ainda assim, o autor não desconsidera a admissibilidade de pedidos de condenação, em plena ação administrativa especial, pelo menos em duas situações, como assim o aponta:
a)     O deferimento tácito não corresponder integralmente às pretensões do particular;
b)    No âmbito de uma relação jurídica multilateral, em face de qualquer outro sujeito que se vê confrontado com uma omissão geradora de efeitos desfavoráveis, que lhes deve permitir a utilização da via do pedido de condenação.[9]

Penso que é questionável a configuração de situações de deferimento tácito parcialmente desfavorável às pretensões do particular requerente. Nos casos de deferimento tácito, por ficção legal, o resultado da omissão ilegal da Administração equivale a um “autorizo”, “aprovo”. Querendo com isto dizer que a pretensão do particular é atendida integralmente, ou seja, o legislador, através da criação deste “expediente”, por mero decurso de prazo, concede um descondicionamento total do exercício do direito do particular sem limitações ou parcelas. Outro resultado não se configura imaginável, pois se não se pronunciou de todo, como conceber que a Administração só aceitou uma parte da pretensão integral do particular? Nos casos de deferimento tácito podemos afirmar que a “Administração cala, logo consente na íntegra”[10].

Sendo um regime bastante discutido na doutrina, naturalmente que terá críticas “fatais” e “assassinas” perante a sua existência.


Críticas do instituto do deferimento tácito

Bastantes autores têm colocado em evidência as fraquezas desta figura, desde logo, o ato de deferimento tácito é acusado comummente de potenciar uma permissão legal para a adoção de atos ilegais, pondo em causa o próprio ordenamento jurídico.[11] Com o efeito, o risco de ocorrência de ilegalidades é superior nos casos de deferimento tácito, dada a ausência de apreciação da legalidade da pretensão do particular pelo órgão decisor, pegando como exemplo o autor, JOÃO TIAGO SILVEIRA, a previsão do deferimento tácito no domínio do pedido de autorização de operações urbanísticas, no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.

Este instituto é acusado de ser também potenciador de vícios no funcionamento da Administração. A obtenção de decisões favoráveis ilegais ocorre com a conivência das autoridades administrativas, sem que estas respondam efetivamente por isso, sem que sejam objeto de qualquer sanção.[12] O que acabará por significar que o deferimento tácito acaba por potenciar vícios na atividade administrativa, uma vez que o silêncio da Administração tende, mal, a transformar-se num elemento quase natural do procedimento administrativo.

Podemos invocar até a potenciação dos casos de corrupção. Pensemos nas situações em que o titular do órgão decisor é seduzido pelo particular requerente a decidir favoravelmente, sendo fortemente “apelativo perder-se” no silêncio, ao invés de se pronunciar através de ato expresso favorável. Exemplo dado por SÓNIA AFONSO VASQUES[13] é espelho nítido destas situações, onde a omissão pode ser justificada pela desculpa da complexidade da questão ou da escassez de recursos humanos.

Com o dito, seria mais adequado que toda a “decisão” resultante de um silêncio” positivo fosse acompanhada de uma ação inspetiva efetiva sobre a atuação da Administração que explanasse os seus motivos, porquanto ela implica uma infração legal. Defendo a mesma solução quando esteja em causa o silêncio negativo, por configurar, na mesma medida, uma infração legal, como ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA[14], defende. Porém, a eficácia destas ações estaria dependente do estabelecimento de um regime disciplinar severo, como forma de combate à demissão por parte da Administração do dever legal de decidir.


Conclusão: Posição adotada

É inegável que o deferimento tácito contra a passividade da Administração desempenha uma função primordialmente garantística do particular, permitindo-lhe a imediata satisfação da pretensão formulada.

No passado o risco da formação de deferimento tácito inválido era preferível do ponto de vista do particular e suportável do ponto de vista do interesse público e de terceiros, o que difere na atualidade em que o ordenamento jurídico português passa a contemplar um instrumento processual que tem em vista superar o défice de proteção jurídica que deriva do silêncio administrativo. Como refere CARLOS FERNANDES CADILHA, “o silêncio positivo não é hoje, pois, uma absoluta exigência do direito”.

Contudo, admitir a possibilidade de reação contenciosa em todos os casos em que a Administração decide por uma conduta omissiva ilegal, pode albergar uma “avalanche” de processos inúteis nos tribunais, traduzindo-se num verdadeiro bloqueio do sistema judicial.[15]

Preservar o instituto do deferimento tácito no atual estado de desenvolvimento do Contencioso Administrativo, permitindo a sua coexistência com a regra da ausência de atribuição de valor jurídico ao silêncio e com possibilidade, neste caso, de reação contenciosa através do pedido de condenação à prática de ato devido, só nos parece admissível quando o poder administrativo seja estritamente vinculado quanto ao sentido da decisão. Nestes casos, reconheço não ser justificável obrigar o particular a recorrer aos tribunais para fazer valer a sua pretensão material, através de uma ação condenatória, com toda a morosidade e custos inerentes.

Penso que, embora a extinção da figura do deferimento tácito não seja a mais razoável, esta deveria deixar de assentar em cláusulas gerais, remetendo-se exclusivamente para leis especiais a tipificação das situações de deferimento tácito e a fixação de prazos para a sua formação adequados à natureza de cada situação concreta.




Bibliografia

CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, O silêncio administrativo, in Cadernos de justiça administrativa, n.º 28, Julho/Agosto 2001
CORREIA, José Manuel Sérvulo, o Incumprimento do dever de decidir, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Professor Doutor António de Sousa Franco, Lisboa, Volume II, 2006
OLIVEIRA, ANTÓNIO CÂNDIDO, O “silêncio” e a “última palavra da Administração Pública”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º19, (Janeiro/Fevereiro 2000)
SILVA, Vasco Pereira da, o Contencioso no Divã da Psicanálise Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2005
SILVEIRA, João Tiago, O Deferimento TácitoEsboço do Regime Jurídico do Acto Tácito Positivo na Sequência de pedido do Particular, Coimbra, Coimbra Editora, 2004
VASQUES, Sónia Afonso, Duas Implicações do CPTA: no silêncio da administração e no recurso hierárquico necessário, Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas Relatório do Seminário de Direito Administrativo – B Professor Doutor José Manuel Sérvulo Correia, Lisboa, 2005/2006




[1] SÉRVULO CORREIA, o Incumprimento do dever de decidir…, cit., página 226
[2] SÉRVULO CORREIA, o Incumprimento do dever de decidir…, cit., página 230
[3] JOÃO TIAGO SILVEIRA, O Deferimento…, cit., página 255
[4] SÓNIA AFONSO VASQUES, Duas Implicações do CPTA…, cit., página 31
[5] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Lisboa, 2007, págs. 205 e segs; VIEIRA DE ANDRADE, A justiça administrativa (Lições), Almedina, Coimbra, 2005, pág. 226
[6] JOÃO TIAGO SILVEIRA, O Deferimento…, cit., págs. 94, 95 e 258
[7] VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso…, cit., págs. 366 e 367
[8] VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso…, cit., pág. 367
[9] SÓNIA AFONSO VASQUES, Duas Implicações do CPTA…, cit., página 33
[10] SÓNIA AFONSO VASQUES, Duas Implicações do CPTA…, cit., página 33
[11] MARCOS PUENTE GOMEZ, La inactividad de la administración, Pamplona, Aranzadi 2002, págs. 134 e 135
[12] ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA, O “silêncio” e a “última palavra…, cit., pág. 21
[13] SÓNIA AFONSO VASQUES, Duas Implicações do CPTA…, cit., página 36
[14] ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA, O “silêncio” e a “última palavra…, cit., pág. 21
[15] SÓNIA AFONSO VASQUES, Duas Implicações do CPTA…, cit., página 42


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