domingo, 9 de dezembro de 2018

Maria Francisca São Miguel Bento Nº27941 S8 4ºAno 
Batalhas internas na mente do interesse em agir 
A impugnação de concurso público 


Conflitos Internos 
legitimidade é um conceito que acompanha qualquer jurista desde cedo.  Constitui-se como pilar de qualquer ação de direito, todavia, não obstante de se manter fiel à sua ratio, sofre mutações quando analisado sobre diferentes “luzes”.  
Dentro do Contencioso Administrativo, o pressuposto da legitimidade preenche-se na conjugação com o interesse em agir - este não se confunde, porém, com a legitimidade, agindo como pressuposto autónomo desta. Este interesse em especial, começando por tomar um lugar algo teórico e avançando ao longo da história do Contencioso Administrativo como pressuposto estanque de legitimidade, tornou-se um critério essencial à impugnação de atos administrativos. Segundo Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, o interesse em agir “(…) consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação1 e terá de concretizar uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação2. 
O conceito vem descrito no artigo 55º a) CPTA, a legitimidade ativa para impugnação de ato passa pela titularidade do sujeito de uma pretensão de obter da ação administrativa uma utilidade em especial, neste sentido Miguel Teixeira de Sousa  “(…) interesse em agir é um pressuposto processual que se destina a assegurar a utilidade da tutela jurisdicional, isto é, que visa evitar que os tribunais sejam chamados a exercer a sua função em situação nas quais não se justifica a concessão de qualquer tutela ou nas quais a eventual concessão dessa tutela não representa qualquer benefício para o seu requerente3 essa utilidade atribui-se a qualidade de interesse como pressuposto autónomo de legitimidadeAssim, seguindo Manuel Andrade, diferentemente da legitimidade, o interesse em agir consiste no facto de o direito do demandante estar carecido de tutela judicial4, trata-se da ressalva da utilidade da sentença. Não descurando a importância do interesse em agir em todas as ações administrativas, em casos de concurso público, onde os ânimos estão elevados e os concorrentes são bastantes, os casos de legitimidade e interesse para a impugnação tomam uma outra dimensão. Assim, a impugnação de um concurso público terá sempre de passar por um interesse efetivo que, no caso dos concursos, se materializa na tomada de parte no concurso. 
Com as exigências de legitimidade descritas no artigo 55 importa analisar o fundo prático da norma. Estaremos a exigir em excesso? Que papel tem efetivamente o interesse em agir aquando a impugnação de um concurso - alegadamente - inválido? Requerendo como pressuposto necessário um interesse efetivo em âmbito de concurso (que se concretiza com a participação no mesmo), não estaremos a subvalorizar o disposto no artigo 56º CPTA? 
Em âmbito de concursos parece-me que a ratio do interesse em agir entra em conflito consigo mesma, assim, cabe concretizar a questão. 

Interesse em agir ou falta dele? There can be only one 
A legitimidade prende-se com a conexão direta do sujeito à obtenção da situação de vantagem, quem institui uma ação administrativa nos termos do artigo 9º CPTA deve ser legítimo no sentido de ser capaz para propor a mesma ação, ser parte na relação controvertida e, consequentemente, ter uma conexão estreita com o bem jurídico alegado. 
A alegação de um interesse pessoal releva para aferir da legitimidade, enquanto que a alegação de um interesse direto releva para aferir do interesse em agir. Este interesse não analisa a possibilidade legal normativa para o sujeito impor uma ação, mas sim, o quão estreita será a relação desse mesmo sujeito com o objeto da ação, operando “como condição para a obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa”5. O artigo 55/1 A) estabelece com densificação do critério de interesse que este seja direto e pessoal. 
O facto de ser direto prende-se com as características de atual e efetivo do interesse. Isto é, a particularidade de interesse direto dirige-nos para a necessidade efetiva de tutela jurisdicional que justifique a utilidade do processoutilidade essa que ao momento de propositura do processo ainda será possível, útil -stricto sensu- e desejada. Assim, por referência de Mário Aroso Almeida6, foi expresso e referido, no Acórdão STA 27 de fevereiro de 1996, que o interesse direto ser «de repercussão imediata na esfera do interessado»7 cabendo ao interesse direto uma relação não com a legitimidade, mas sim com o interesse em agir.  
Dentro de um concurso público, tem um interesse pessoal aquele que pessoalmente dentro da sua própria esfera jurídica- seja ela de uma entidade pública ou privada vai sofrer uma alteração, isto é uma vantagem que será útil para si como sujeito em concreto, será a substância dessa vantagem que resulta na legitimidade do sujeito. Nenhuma parte pode sofrer uma vantagem, desvantagem ou qualquer efeito relativo a um concurso público, se não for parte nesse mesmo concurso. Está em causa o princípio da economia processual e da necessidade útil do processo para as partes 
A conclusão parece estável também na jurisprudência: terá legitimidade nos termos do Artigo 55.º, alínea a), quem tiver um interesse direto e pessoal (ou seja, efetivo, atual e subjetivamente necessário). Não tendo, carecerá de legitimidade ativa nos termos do artigo 55º1/ a) por falta de concretização do pressuposto autonomizado pelo artigo 39 CPTA: interesse 
Parece ser uma solução lógica. Não faz sentido atribuir a um sujeito aleatório a possibilidade de impugnar um concurso, em extremos de má-fé poderia levar à inexequibilidade de qualquer concurso.  
Do outro lado do espelho, na subsecção legitimidade, sucede ao artigo da legitimidade ativa o Artigo 56.º CPTA, relativo à aceitação. O princípio expresso por este artigo será o de que a partir do momento em que o sujeito aceita o ato, este perde a possibilidade de pedir a anulabilidade do mesmo. Este preceito foi discutido ao longo do tempo, a discussão consistia no problema de, contido na subsecção II de legitimidade, trataria de um problema de legitimidade ou de interesse. Não podendo ser de outra forma, tendo o interesse uma expressão autónoma como pressuposto no contencioso administrativo e sendo a aceitação um ato que presume a falta de interesse na ação subsequente de impugnação desse mesmo ato, a discussão conclui-se numa atribuição ao artigo 56 de um conteúdo de relação estreita com o interesse em agir. Não estaria, porém, em causa o interesse em agir em razão na anulabilidade, mas sim a falta dele (interesse negativo). 
Ao aceitar um ato, expressa ou tacitamente, o sujeito estaria a concordar com o mesmo, consequentemente, dele pretende retirar algum tipo de benefício pelo que há uma presunção de que o sujeito não tem interesse stricto sensu na anulabilidade Quem aceita um ato administrativo não poderá, mais tarde, ver requerer a anulabilidade (relembrando o princípio venire contra factum proprium). Mas, se para impugnar um concurso se exige um interesse atual e efetivo e isso se materializa na participação do concurso (aplicando o artigo 55/n.º1/ alínea A), como se conjuga esta realidade com o previsto no Artigo 56.º?  
Tanto a necessidade do interesse em agir presente no Artigo 55 CPTA, como a falta de interesse presumida pelo Artigo 56.º, parecem ser duas conclusões doutrinárias e legais que resultaram de vários anos de discussão. Contudo, relativamente aos concursos públicos, se a empresa X quiser participar num concurso público de qualquer género, então esta deve resguardar-se de todos os efeitos que possam resultar desse mesmo concurso. Se a empresa X considera que o concurso sofre de uma ilegalidade tão fulcral que inicia um processo de impugnação, até que ponto é que a sua ingressão num concurso viciado consciente da sua invalidade não resulta numa aceitação tácita desse mesmo concurso? A situação aparenta um conflito entre o interesse negativo de agir do Artigo 56.º CPTA e do interesse em agir ativo no Artigo 55 CPTA. 
Sendo assim, porque é que se entende que o sujeito deve participar num concurso que acha à partida que resulta numa invalidade? A resposta está dividida em dois pontos: a interpretação feita ao Artigo 56.º e a existência efetiva de interesse relativo ao Artigo 55.º no caso concreto. Talvez haja um conflito entre os interesses, mas talvez ainda não seja necessário seguir para uma batalha.  

Concurso Públicos - o duende no fim do arco-íris 
Os concursos públicos são processos de seleção entre determinados participantes para atribuição de uma qualquer função, bem ou direito na esfera da Administração Público. 
A impugnação de atos administrativos está condicionada pela natureza do ato. Definido pelo Art. 51º CPTA, o ato administrativo tem de ser impugnável (susceptível de anulabilidade, sendo que a impugnação por nulidade foi vinda a ser retirada da ação em especial8- DL. 214-G/2015) segundo as alíneas e exigências do artigo para que se possa instaurar um processo impugnatório.  
Dentro do concurso público o ato impugnável pode referir-se a vários atos administrativos referentes ao mesmo. Podemos estar perante uma impugnação de: i) do ato administrativo de constituição do concurso; ii) do objeto do concurso em si (ex: impugnação de um projeto referente a um terreno de hasta publica); iii) ou do ato relativo ao resultado do mesmo. Qualquer um destes atos cabe na definição de ato impugnável dada pelo artigo 51/1 e 2 CPTA (com remissa para os Artigos 284/n.º4 CRP e 143.º CPA).   
Para a discussão de conflito entre os Artigos 55 e 56 CPTA não importa a impugnação do resultado, sendo que, mesmo participando, discute-se a legitimidade em termos de interesse processual dos próprios candidatos do concurso. Relativamente aos outros atos impugnáveis, os concursos públicos urgem interpretações mais concretas na averiguação da legitimidade 
Para evitar situações de abusocomo a referida pelo Professor José Duarte Coimbra9 do bolseiro que pode perder a sua bolsa porque o seu colega (não concorrente) quer impugnar o ato de atribuição da bolsa ao primeiro-, é exigido que se participe no concurso para preencher o interesse direto. Contudo, há particularidades específicas dos concursos públicos a ter em conta quando analisada a questão da ingressão como aceitação nos termos do Artigo 56.º. 
Numa análise comum, a ingressão num concurso pode parecer uma aceitação tácita como referida no Artigo 56.º. A participação num concurso público implica o envio de proposta e aceitação de termos, o que presume uma aceitação com os termos do concurso (a sua constituição) e com o projeto adjuvante, tudo isto pode consistir numa aceitação espontânea clara e sem reservas- Artº 56/2 CPTA. Contudo, quando um sujeito tem pretensões de participar num concurso público deixamos de estar no âmbito da autonomia privada. Um concurso resulta num acordo de vontades - a contratação ou atribuição do concurso -, mas os termos e condições do concurso não são definidos pelos participantes. Assim, perante a oportunidade pontual de um concurso, apesar de consciente da sua invalidade, é compreensível que o sujeito tenha intenção de participar por ser uma oportunidade não controlada pela autonomia privada, o convite a contratar de um concurso é único e temporário, a sua disponibilidade não está na esfera do participante. Tendo esta ideia como pressuposto, urge uma nova interpretação restritiva do Art. 56º CPTA relativa à aceitação stricto sensu, dentro da esfera dos concursos públicos. Não se pode considerar a participação num concurso como uma aceitação de todos os atos possivelmente impugnáveis presentes num concurso, mas sim como uma demonstração de vontade de adquirir a situação jurídica vantajosa que o concurso promove.  
Aplicar o Art. 56º CPTA aos participantes de concursos públicos seria uma aplicação desproporcionalmente desvantajosa para os participantes e demostraria má-fé na contratação públic(que não parece ser a ratio do artigo) 

Um tiro ao lado num campo de batalha vazio - Conclusões 
Um concurso público é um instituto que abarca vários atos administrativos que podem vir a ser impugnáveis. Essa impugnação está dependente da legitimidade referida no Artigo 55.º CPTA, não obstante do exposto acima, o Artigo 55/1 alínea a) refere a legitimidade de quem tenha um interesse direto e pessoal, mas o artigo elenca outras alíneas que apontam legitimidade. Não parece que o Direito esteja a exigir em demasia a um sujeito que efetivamente participe no concurso para preencher uma delas. Se a impugnação do ato tem efetivamente uma relação estreita com o sujeito que a está a tentar impugnar, então essa relação deve ir de encontro a uma das alíneas do Artigo 55.º CPTA. Não prosseguindo de encontro a estas alíneas significaria uma inexistência de legitimidade 
O conflito entre a participação mandatória para impugnação e a aceitação do Artigo 56 CPTA não se põe no sentido em que: caso uma empresa queira participar num concurso e o ache, de algum modo, ilegal, a impugnação do mesmo deve passar pela participação (sob consequência de, se não o fosse exigido, facilitar situações de utilização da tutela jurisdicional que não justificadas). A tenebrosa hipótese de o direito obrigar um sujeito a entrar num concurso que ache ilegal e aplicar-lhe, consequentemente, a aceitação do Artigo 56.º cai por terra quando avaliamos o resto das hipóteses de legitimidade ativa. Não há uma obrigatoriedade de participação para impugnação, pelo que não se coloca a questão nos termos apresentados. 
Na verdade, a exigência de participação não passa de um requisito de atribuição de legitimidade, o que se deve proteger é, sim, o interesse em participar do sujeito. Assim, havendo um interesse efetivo na obtenção da vantagem resultante do concurso, na hipótese, do concurso ser impugnado, seria exigir em demasia que o sujeito participasse e se considerasse por isso que se estava perante uma aceitação dos atos relativos ao concurso.  
O interesse positivo presente no Artigo 55 CPTA e o interesse negativo do Artigo 56 CPTA não entram em conflito desde que seja feita uma interpretação restritiva do conceito de aceitação tácita. Interpretação esta que se prenda com a oportunidade esporádica de um concurso público e com o pressuposto de que um sujeito não tem de participar para estar num concurso, pelo que não há uma “coação” à participação. 
Trata-se de um conflito aparente. No campo de batalha, os Artigos 55.º e 56.º CPTA, em hora de concurso público, não se encontram. Batalham sozinhos, no campo teórico.  

BIBLIOGRAFIA BASE 
Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil”, 2ª edição 
Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil 

Marco CaldeiraImpugnação de actos no novo CPTA: âmbito, delimitação e pressupostos”, presente na obra “Comentários à revisão do ETAF e do CPTA”, AAFDL, 2016 

Mário Aroso Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2 Edição, 2016, Almedina, 
Miguel Teixeira de SousaReflexões sobre a legitimidade das partes em processo civilin Cadernos de Direito Privado n.º 1, Janeiro/Março de 2003 
Jose Duarte CoimbraA «legitimidade» do Interesse na Legitimidade Activa de Particulares para impugnação de actos administrativos 


1 Vide, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 179 e ss. 
2 Vide, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 179 e ss. 
3 Miguel Teixeira de Sousa, Reflexões sobre a legitimidade das partes em processo civil, in Cadernos de Direito Privado n.º 1, Janeiro/Março de 2003, pág. 6
4 Manuel Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 79
5 Mário Aroso Almeida, in Manual de Processo Administrativo, 2 Edição, 2016, Almedina, pg.219 
6 Mário Aroso Almeida, in Manual de Processo Administrativo, 2 Edição, 2016, Almedina, pg.221 
7 Acórdão 27 Fevereiro de 1996, Rc.nº24386
8 Neste sentido, Marco Caldeira em “Impugnação de actos no novo CPTA: âmbito, delimitação e pressupostos”, presente na obra “Comentários à revisão do ETAF e do CPTA” pg.258, AAFDL, 2016
9 A «legitimidade» do Interesse na Legitimidade Activa de Particulares para impugnação de actos administrativos, Jose Duarte Coimbra

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