Introdução
A
tramitação dos processos administrativos baseia-se largamente na tramitação
presente no processo civil, tanto quanto aos articulados e momentos que a
compõem, como os princípios que a norteiam. Porém, o contencioso administrativo
reveste algumas especificidades em relação ao processo civil.
Dentro destas referidas, uma
grande particularidade é a intervenção do Ministério Público no processo sem
fazer parte direta no mesmo, nos termos do artigo 85º do Código de Procedimento
Administrativo (doravante CPTA).
Razão
de ser
As
próprias características do direito administrativo, do uso do ius imperii por parte de entidades
públicas e a possível violação de direitos e interesses legalmente protegidos
que pode advir desse uso tornam premente a necessidade de um controlo de
legalidade que não pode apenas ficar sujeito ao princípio do dispositivo e
assim, na dependência da instauração de ações pelas partes ativas e pela sua
correta alegação por parte dos particulares. Deste modo, o Ministério Público
surge como defensor da legalidade e zela pela justa composição do litígio no
Contencioso Administrativo. Quanto à sua atuação no exercício do artigo 85º, o
MP pretende auxiliar a justiça, numa ótica de amicus curiae, de modo a realizar devidamente o direito.
A sua função neste âmbito fica
assim entre a função jurisdicional e a função administrativa. O MP não julga a
ação, por um lado, mas também não pleita, por outro, estando numa posição de
pura imparcialidade para auxiliar a decisão da procedência ou improcedência da
ação.[1] O
objetivo da sua atuação é similar ao do juiz, pretendendo atingir a paz
jurídica, a proteção de interesses públicos e a justa composição do litígio.[2]
Outros papéis
do MP no CAT
Este não é
o único papel do Ministério Público a nível jurisdicional com valor para o
contencioso administrativo. Para além do objeto do presente artigo, ou seja, a
intervenção nos processos de que não faz parte ao abrigo do artigo 85º, o MP
tem ainda legitimidade ativa para interpor ações de defesa de interesses
difusos (artigo 9º CPTA) e para defender a legalidade de atos, normas
regulamentares e contratos (artigo 55º/1/b), 68º/1/b) CPTA), 73º/1 e 77º-A/1/b) CPTA). O MP desempenha ainda a
importante função do patrocínio judiciário do Estado, como dispõe o artigo
11º/1.
O Ministério Público exerce também
funções de auxiliar de justiça no campo dos recursos administrativos. De acordo
com o artigo 146º, este está sujeito a um regime de intervenção algo similar ao
que iremos analisar.
Destas várias funções entendemos a
critica da doutrina quando ao papel do MP ambivalente no plano jurídico
português. Por vezes surge como defensor da legalidade contra o Estado, por
outras surge como defensor do próprio Estado, exercendo o patrocínio
judiciário, e ainda surge outras vezes como parte imparcial nos processos.[3]
Princípios
que norteiam a sua atuação
Feita esta
pequena introdução, cabe analisar os princípios que norteiam e fundamentam a
atuação de uma entidade como o Ministério Público a intervir em processos
judiciais, não sendo parte dos mesmos.
A atuação
do Ministério Público funda-se em vários princípios administrativos presentes
no CPA. Neste sentido, conferir um
lugar de participação concreta a um terceiro que zele pela defesa de interesses
difusos e pela legalidade de atos que os possam afetar totalmente contende com
o controlo do princípio da legalidade, presente no art. 3º do CPA. Ao ajudar na
realização da justiça, o MP executa um papel ativo em assegurar a proteção de
direitos dos cidadãos e do interesse público, na linha do artigo 4º do CPA.
A defesa de interesses por parte
do MP está também consagrada na CRP, no artigo 219º/1, tendo este a competência
para defender interesses que a lei determinar. Assim, o Estatuto do Ministério Público (Lei 47/86, de 15 de outubro)
concretiza o preceito no seu artigo 3º/1/e).
No âmbito processual, o MP garante
ainda uma tutela jurisdicional ativa, nos termos do artigo 2º/1 do CPTA. O seu conhecimento técnico do
direito leva a uma melhor concretização das pretensões submetidas aos tribunais
administrativos, evitando muitas vezes demoras e recursos.
Regime
Analisados
os fundamentos e princípios que alicerçam o papel de amicus curiae, analisemos o regime jurídico presente no artigo 85º
do CPTA.
Quanto aos
pressupostos de atuação do MP ao
abrigo do artigo 85º é de notar que estes não são abundantes. Desde que não
figure parte no processo, todas as causas que sigam a forma de ação
administrativa podem ser objeto de uma intervenção do Ministério Público.
Significa então que sempre que este seja a parte ativa (artigo 9º) ou parte
passiva (por patrocínio judiciário – artigo 11º), a sua intervenção está
vedada. Este raio de ação surge mais alargado em relação ao regime anterior ao
CPTA de 2015, que limitava a atuação do MP apenas nos casos de uso de ius imperii, impugnação ou condenação à
prática de atos ou normas.[4]
A atuação do MP deve ainda
fundamentar-se, em virtude do artigo 85º/2, na defesa de direitos fundamentais
dos cidadãos, interesses públicos especialmente relevantes ou dos valores para
os quais tem legitimidade ativa para interpor ações, referidos no artigo 9º/2.
Assim, se se decidir pela intervenção, o MP deve fundamentar o interesse que
verdadeiramente visa proteger.
Caso o Ministério Público seja
parte no processo, ou caso o mesmo não envolva nenhum dos valores enunciados no
artigo 85º/2, a sua intervenção no processo está vedada, devendo qualquer
parecer emitido não ser objeto de ponderação por parte do juiz.
Esclarecendo uma questão
importante, é de referir que a intervenção permitida no artigo 85º constitui
uma verdadeira faculdade. A atuação não é de todo obrigatória, nem se retira
qualquer consequência jurídica da sua inexistência. Isto permite ao Ministério
Público uma verdadeira liberdade de escolha de casos que merecem verdadeira
atenção e nos quais pretende ajudar a realização da justiça.
De seguida, falemos dos passos que
se concretizam na atuação do MP. O processo
inicia-se logo que os demandados são citados, devendo a secretaria judicial
enviar a petição inicial e todos os documentos necessários ao MP (nº1 do artigo
85º). Feito o envio, este último dispõe de 30 dias (nº4), a contar da junção ao
processo dos autos ou da última contestação, para decidir pela intervenção ou
não intervenção no processo, baseando-se na importância do caso e na defesa dos
valores do nº2[5].
Caso a faculdade não seja exercida, o processo continuará sem a sua intervenção.
Decidindo-se pela intervenção, o
Ministério Público pode elaborar um parecer relativo ao mérito da causa.
Note-se que a sua esfera de ação é algo similar à de um juiz neste caso. Não
sendo parte, ao MP cabe apenas auxiliar o juiz quanto à decisão a tomar no que
respeita ao mérito da causa, estando-lhe bloqueada a possibilidade de fazer
novas alegações de facto e de direito. Ao contrário do que sucedia antes do
CPTA, o MP deve apenas pronunciar-se sobre as questões de direito material em
questão, não podendo invocar ou pronunciar-se sobre eventuais exceções.
Pretende-se assim que esta entidade olhe para os factos como descritos pelas
partes e determine quem, a seu ver, tem razão, numa posição de imparcialidade
cingida à legalidade material. Assim, em regra geral, a participação do
Ministério Público esgota-se normalmente na elaboração de um parecer.[6] [7]
Porém, existe uma exceção ao
referido no parágrafo anterior, relativa às ações de impugnação de atos ou
normas administrativas. Caso seja esta a pretensão, o poder do MP estende-se,
nos termos do nº3 do artigo 85º, podendo este invocar novos factos fundadores
de invalidade diferentes das arguidas pelo autor do processo. Os magistrados do
MP podem ainda pedir a realização de diligências instrutórias, para o melhor
conhecimento do litígio e a clarificação da prova.
Entende-se perfeitamente que, nos
atos de impugnação, uma entidade como o Ministério Público, como entidade
verdadeiramente defensora da legalidade, tenham um raio de ação relativamente
maior. Tal raio de ação permite defender a legalidade de atos administrativos,
bem como evita a necessidade de o MP recorrer ele próprio à constituição da
instância como parte ativa na insuficiência e, consequentemente, improcedência
da pretensão do autor, salvaguardando a economia processual.
Ao densificar a possibilidade do
MP solicitar a realização de diligências instrutórias, referimos o acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo 01075/15, de 25 de novembro de 2015, que
referiu o seguinte: “tem uma maior justificação no processo
administrativo do que no processo civil, pois não estão apenas em causa
pretensões de cariz subjetivista, estão em causa também pretensões de cariz objetivo,
como o princípio da legalidade e de defesa do interesse da coisa pública.”
Sendo assim, concluímos que quanto
aos processos que não sejam relativos à impugnação de atos e normas, a
participação do Ministério Público concretiza-se apenas na emissão do parecer.
Já quanto à exceção para os processos impugnatórios, o MP desempenha um papel
muito mais ativo na defesa da legalidade e da justa composição do litígio,
perdendo em parte o seu caráter imparcial.
Conclusão
Exposto o regime do artigo 85º do
CPTA, é necessário fazer algumas comparações e retirar algumas conclusões.
Em primeiro lugar, devemos notar
que o papel de amicus curiae do Ministério Público tem vindo a reduzir-se ao
longo do tempo. No regime anterior ao CPTA, o MP não estava impedido de se
pronunciar sobre questões de legalidade processual, apreciando a causa no seu
todo. Este tinha ainda dois momentos obrigatórios de intervenção, os chamados
visto inicial e visto final, participando ainda na discussão, nos termos do
artigo 15º da Lei 267/85, de 16 de julho (Lei de Processo dos Tribunais
Administrativos e Fiscais, doravante LPTA). Hoje isto não sucede, estando agora
limitado à sua única atuação pela emissão do parecer sobre o mérito da causa.[8]
Este declínio da esfera de atuação decorre da declaração
de inconstitucionalidade do referido artigo 15º da LPTA por parte do Tribunal
Constitucional[9],
baseando-se nas declarações do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de que a
presença de uma tal entidade nos processos violava o princípio do processo
equitativo, consagrado no artigo 6º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem e, no nosso ordenamento jurídico, o artigo 20º/4 da Constituição. No
acórdão o Tribunal Constitucional refere: “Com efeito, o
respeito por um processo equitativo supõe a criação de condições objetivas que
permitam assegurá-lo. Ora, não se vê como tal possa acontecer quando um
elemento exterior ao colégio de juízes, que tem por missão decidir a
controvérsia, pode participar na discussão e assistir à deliberação,(…), numa
fase em que qualquer intervenção se apresenta como particularmente decisiva
porque antecede imediatamente a tomada de decisão.”.
Pela nossa parte, é de louvar a decisão do
Tribunal Constitucional. A interferência de tal modo ativa de uma entidade
exterior à instância no momento final da discussão tem verdadeiras
consequências práticas, preterindo o princípio do dispositivo e do
contraditório na medida em que as partes não tinham maneira de se pronunciar
após o tal visto final.
Concluindo, penso que a redução do papel do
Ministério Público como auxiliar de
justiça e de realização do Direito veio dar lugar a um maior equilíbrio entre
as partes no Contencioso Administrativo. Do exposto não resulta um total desaparecimento
da influência do MP neste campo de ação, tendo ainda uma palavra forte com a
elaboração de um parecer não vinculativo e com a possibilidade de pedir a
realização de diligências instrutórias, podendo, aí sim, acompanhar o processo
mais atentamente, atendendo ao disposto no nº5 do artigo 85º.
Também o facto de este já não se poder
pronunciar sobre a legalidade processual não deve passar despercebido. Para
todos os efeitos, a intervenção do MP tem os seus alicerces nos interesses que
visa proteger. Não sendo um órgão de aplicação do Direito, não se pode
substituir às partes ou ao juiz a realização do processo quanto ao seu mérito
processual.
Francisco
Horta Caetano
Nº28147, Subturma 8
Bibliografia
·
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina
·
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A justiça administrativa: Lições, Coimbra,
2015
·
CORREIA, Sérvulo, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério
Público¸ Coimbra Editora, 2001
·
FURTADO, Leonor do Rosário Mesquita, A intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo, in Estudos em
memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra 2014.
·
SILVA, Cláudia Alexandra dos Santos, O Ministério Público no atual contencioso
administrativo português, in Revista Eletrónica de Direito Público, Vol. 3
Número 1, 2016
[1] CORREIA,
Sérvulo, A reforma do contencioso
administrativo e as funções do Ministério Público¸ Coimbra Editora, 2001,
p. 309
[2] CORREIA,
Sérvulo, A reforma do contencioso
administrativo e as funções do Ministério Público¸ Coimbra Editora, 2001,
p. 313
[3] CORREIA,
Sérvulo, A reforma do contencioso
administrativo e as funções do Ministério Público¸ Coimbra Editora, 2001,
p. 304
[5] ALMEIDA,
Mário Aroso de, Manual de Processo
Administrativo, 2017, Almedina, p. 357
[6] ALMEIDA,
Mário Aroso de, Manual de Processo
Administrativo, 2017, Almedina, p. 358 e
[7] FURTADO,
Leonor do Rosário Mesquita, A intervenção
do Ministério Público no Contencioso
Administrativo, Coimbra, 2014, p. 778
[8] SILVA, Cláudia Alexandra dos Santos,
O Ministério Público no atual contencioso
administrativo português, 2016, p. 178
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