domingo, 9 de dezembro de 2018

O papel do Ministério Público como amicus curiae: O artigo 85º do CPTA


Introdução

              A tramitação dos processos administrativos baseia-se largamente na tramitação presente no processo civil, tanto quanto aos articulados e momentos que a compõem, como os princípios que a norteiam. Porém, o contencioso administrativo reveste algumas especificidades em relação ao processo civil.
              Dentro destas referidas, uma grande particularidade é a intervenção do Ministério Público no processo sem fazer parte direta no mesmo, nos termos do artigo 85º do Código de Procedimento Administrativo (doravante CPTA).
             
Razão de ser

              As próprias características do direito administrativo, do uso do ius imperii por parte de entidades públicas e a possível violação de direitos e interesses legalmente protegidos que pode advir desse uso tornam premente a necessidade de um controlo de legalidade que não pode apenas ficar sujeito ao princípio do dispositivo e assim, na dependência da instauração de ações pelas partes ativas e pela sua correta alegação por parte dos particulares. Deste modo, o Ministério Público surge como defensor da legalidade e zela pela justa composição do litígio no Contencioso Administrativo. Quanto à sua atuação no exercício do artigo 85º, o MP pretende auxiliar a justiça, numa ótica de amicus curiae, de modo a realizar devidamente o direito.
              A sua função neste âmbito fica assim entre a função jurisdicional e a função administrativa. O MP não julga a ação, por um lado, mas também não pleita, por outro, estando numa posição de pura imparcialidade para auxiliar a decisão da procedência ou improcedência da ação.[1] O objetivo da sua atuação é similar ao do juiz, pretendendo atingir a paz jurídica, a proteção de interesses públicos e a justa composição do litígio.[2]

Outros papéis do MP no CAT

              Este não é o único papel do Ministério Público a nível jurisdicional com valor para o contencioso administrativo. Para além do objeto do presente artigo, ou seja, a intervenção nos processos de que não faz parte ao abrigo do artigo 85º, o MP tem ainda legitimidade ativa para interpor ações de defesa de interesses difusos (artigo 9º CPTA) e para defender a legalidade de atos, normas regulamentares e contratos (artigo 55º/1/b), 68º/1/b) CPTA), 73º/1 e  77º-A/1/b) CPTA). O MP desempenha ainda a importante função do patrocínio judiciário do Estado, como dispõe o artigo 11º/1.
              O Ministério Público exerce também funções de auxiliar de justiça no campo dos recursos administrativos. De acordo com o artigo 146º, este está sujeito a um regime de intervenção algo similar ao que iremos analisar.
              Destas várias funções entendemos a critica da doutrina quando ao papel do MP ambivalente no plano jurídico português. Por vezes surge como defensor da legalidade contra o Estado, por outras surge como defensor do próprio Estado, exercendo o patrocínio judiciário, e ainda surge outras vezes como parte imparcial nos processos.[3]

Princípios que norteiam a sua atuação

              Feita esta pequena introdução, cabe analisar os princípios que norteiam e fundamentam a atuação de uma entidade como o Ministério Público a intervir em processos judiciais, não sendo parte dos mesmos.
              A atuação do Ministério Público funda-se em vários princípios administrativos presentes no CPA. Neste sentido, conferir um lugar de participação concreta a um terceiro que zele pela defesa de interesses difusos e pela legalidade de atos que os possam afetar totalmente contende com o controlo do princípio da legalidade, presente no art. 3º do CPA. Ao ajudar na realização da justiça, o MP executa um papel ativo em assegurar a proteção de direitos dos cidadãos e do interesse público, na linha do artigo 4º do CPA.
              A defesa de interesses por parte do MP está também consagrada na CRP, no artigo 219º/1, tendo este a competência para defender interesses que a lei determinar. Assim, o Estatuto do Ministério Público (Lei 47/86, de 15 de outubro) concretiza o preceito no seu artigo 3º/1/e).
              No âmbito processual, o MP garante ainda uma tutela jurisdicional ativa, nos termos do artigo 2º/1 do CPTA. O seu conhecimento técnico do direito leva a uma melhor concretização das pretensões submetidas aos tribunais administrativos, evitando muitas vezes demoras e recursos.

Regime

              Analisados os fundamentos e princípios que alicerçam o papel de amicus curiae, analisemos o regime jurídico presente no artigo 85º do CPTA.
              Quanto aos pressupostos de atuação do MP ao abrigo do artigo 85º é de notar que estes não são abundantes. Desde que não figure parte no processo, todas as causas que sigam a forma de ação administrativa podem ser objeto de uma intervenção do Ministério Público. Significa então que sempre que este seja a parte ativa (artigo 9º) ou parte passiva (por patrocínio judiciário – artigo 11º), a sua intervenção está vedada. Este raio de ação surge mais alargado em relação ao regime anterior ao CPTA de 2015, que limitava a atuação do MP apenas nos casos de uso de ius imperii, impugnação ou condenação à prática de atos ou normas.[4]
              A atuação do MP deve ainda fundamentar-se, em virtude do artigo 85º/2, na defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, interesses públicos especialmente relevantes ou dos valores para os quais tem legitimidade ativa para interpor ações, referidos no artigo 9º/2. Assim, se se decidir pela intervenção, o MP deve fundamentar o interesse que verdadeiramente visa proteger.
              Caso o Ministério Público seja parte no processo, ou caso o mesmo não envolva nenhum dos valores enunciados no artigo 85º/2, a sua intervenção no processo está vedada, devendo qualquer parecer emitido não ser objeto de ponderação por parte do juiz.
              Esclarecendo uma questão importante, é de referir que a intervenção permitida no artigo 85º constitui uma verdadeira faculdade. A atuação não é de todo obrigatória, nem se retira qualquer consequência jurídica da sua inexistência. Isto permite ao Ministério Público uma verdadeira liberdade de escolha de casos que merecem verdadeira atenção e nos quais pretende ajudar a realização da justiça.
              De seguida, falemos dos passos que se concretizam na atuação do MP. O processo inicia-se logo que os demandados são citados, devendo a secretaria judicial enviar a petição inicial e todos os documentos necessários ao MP (nº1 do artigo 85º). Feito o envio, este último dispõe de 30 dias (nº4), a contar da junção ao processo dos autos ou da última contestação, para decidir pela intervenção ou não intervenção no processo, baseando-se na importância do caso e na defesa dos valores do nº2[5]. Caso a faculdade não seja exercida, o processo continuará sem a sua intervenção.
              Decidindo-se pela intervenção, o Ministério Público pode elaborar um parecer relativo ao mérito da causa. Note-se que a sua esfera de ação é algo similar à de um juiz neste caso. Não sendo parte, ao MP cabe apenas auxiliar o juiz quanto à decisão a tomar no que respeita ao mérito da causa, estando-lhe bloqueada a possibilidade de fazer novas alegações de facto e de direito. Ao contrário do que sucedia antes do CPTA, o MP deve apenas pronunciar-se sobre as questões de direito material em questão, não podendo invocar ou pronunciar-se sobre eventuais exceções. Pretende-se assim que esta entidade olhe para os factos como descritos pelas partes e determine quem, a seu ver, tem razão, numa posição de imparcialidade cingida à legalidade material. Assim, em regra geral, a participação do Ministério Público esgota-se normalmente na elaboração de um parecer.[6] [7]
              Porém, existe uma exceção ao referido no parágrafo anterior, relativa às ações de impugnação de atos ou normas administrativas. Caso seja esta a pretensão, o poder do MP estende-se, nos termos do nº3 do artigo 85º, podendo este invocar novos factos fundadores de invalidade diferentes das arguidas pelo autor do processo. Os magistrados do MP podem ainda pedir a realização de diligências instrutórias, para o melhor conhecimento do litígio e a clarificação da prova.
              Entende-se perfeitamente que, nos atos de impugnação, uma entidade como o Ministério Público, como entidade verdadeiramente defensora da legalidade, tenham um raio de ação relativamente maior. Tal raio de ação permite defender a legalidade de atos administrativos, bem como evita a necessidade de o MP recorrer ele próprio à constituição da instância como parte ativa na insuficiência e, consequentemente, improcedência da pretensão do autor, salvaguardando a economia processual.
              Ao densificar a possibilidade do MP solicitar a realização de diligências instrutórias, referimos o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 01075/15, de 25 de novembro de 2015, que referiu o seguinte:  tem uma maior justificação no processo administrativo do que no processo civil, pois não estão apenas em causa pretensões de cariz subjetivista, estão em causa também pretensões de cariz objetivo, como o princípio da legalidade e de defesa do interesse da coisa pública.
              Sendo assim, concluímos que quanto aos processos que não sejam relativos à impugnação de atos e normas, a participação do Ministério Público concretiza-se apenas na emissão do parecer. Já quanto à exceção para os processos impugnatórios, o MP desempenha um papel muito mais ativo na defesa da legalidade e da justa composição do litígio, perdendo em parte o seu caráter imparcial.

Conclusão

              Exposto o regime do artigo 85º do CPTA, é necessário fazer algumas comparações e retirar algumas conclusões.
              Em primeiro lugar, devemos notar que o papel de amicus curiae do Ministério Público tem vindo a reduzir-se ao longo do tempo. No regime anterior ao CPTA, o MP não estava impedido de se pronunciar sobre questões de legalidade processual, apreciando a causa no seu todo. Este tinha ainda dois momentos obrigatórios de intervenção, os chamados visto inicial e visto final, participando ainda na discussão, nos termos do artigo 15º da Lei 267/85, de 16 de julho (Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais, doravante LPTA). Hoje isto não sucede, estando agora limitado à sua única atuação pela emissão do parecer sobre o mérito da causa.[8]
              Este declínio da esfera de atuação decorre da declaração de inconstitucionalidade do referido artigo 15º da LPTA por parte do Tribunal Constitucional[9], baseando-se nas declarações do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de que a presença de uma tal entidade nos processos violava o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 6º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, no nosso ordenamento jurídico, o artigo 20º/4 da Constituição. No acórdão o Tribunal Constitucional refere: “Com efeito, o respeito por um processo equitativo supõe a criação de condições objetivas que permitam assegurá-lo. Ora, não se vê como tal possa acontecer quando um elemento exterior ao colégio de juízes, que tem por missão decidir a controvérsia, pode participar na discussão e assistir à deliberação,(…), numa fase em que qualquer intervenção se apresenta como particularmente decisiva porque antecede imediatamente a tomada de decisão.”.
Pela nossa parte, é de louvar a decisão do Tribunal Constitucional. A interferência de tal modo ativa de uma entidade exterior à instância no momento final da discussão tem verdadeiras consequências práticas, preterindo o princípio do dispositivo e do contraditório na medida em que as partes não tinham maneira de se pronunciar após o tal visto final.
Concluindo, penso que a redução do papel do Ministério Público como auxiliar de justiça e de realização do Direito veio dar lugar a um maior equilíbrio entre as partes no Contencioso Administrativo. Do exposto não resulta um total desaparecimento da influência do MP neste campo de ação, tendo ainda uma palavra forte com a elaboração de um parecer não vinculativo e com a possibilidade de pedir a realização de diligências instrutórias, podendo, aí sim, acompanhar o processo mais atentamente, atendendo ao disposto no nº5 do artigo 85º.
              Também o facto de este já não se poder pronunciar sobre a legalidade processual não deve passar despercebido. Para todos os efeitos, a intervenção do MP tem os seus alicerces nos interesses que visa proteger. Não sendo um órgão de aplicação do Direito, não se pode substituir às partes ou ao juiz a realização do processo quanto ao seu mérito processual.
Francisco Horta Caetano
Nº28147, Subturma 8
Bibliografia

·       ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina
·       ANDRADE, José Carlos Vieira de, A justiça administrativa: Lições, Coimbra, 2015
·       CORREIA, Sérvulo, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público¸ Coimbra Editora, 2001
·       FURTADO, Leonor do Rosário Mesquita, A intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo, in Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra 2014.
·       SILVA, Cláudia Alexandra dos Santos, O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, in Revista Eletrónica de Direito Público, Vol. 3 Número 1, 2016


[1] CORREIA, Sérvulo, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público¸ Coimbra Editora, 2001, p. 309
[2] CORREIA, Sérvulo, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público¸ Coimbra Editora, 2001, p. 313

[3] CORREIA, Sérvulo, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público¸ Coimbra Editora, 2001, p. 304

[4] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina, p. 357

[5] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina, p. 357
[6] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, Almedina, p. 358 e
[7] FURTADO, Leonor do Rosário Mesquita, A intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo, Coimbra, 2014, p. 778
[8] SILVA, Cláudia Alexandra dos Santos, O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, 2016, p. 178
[9] Ac. TC 157/2001, de 5 de outubro

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