O trabalho em questão
prende-se com a análise de um mecanismo existente na ordem jurídica portuguesa,
que resultou da transposição de uma Diretiva da UE, o artigo 103.º-A, do Código
de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).
Esta disposição legal é
uma novidade no âmbito da reforma do contencioso administrativo, introduzida
pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro[1].
Esta diretiva veio impor aos Estados-Membros a consagração de um efeito
suspensivo automático da decisão de adjudicação de um contracto, até que o
Tribunal se pronunciasse sobre o pedido requerido pelo autor.
O ato de adjudicação
corresponde a um ato administrativo, praticado pelo órgão competente para a
decisão de contratar e através do qual se escolhe a proposta apresentada ou a
melhor proposta dentro das que foram apresentadas (aquela que ficou melhor
classificada, atendendo ao critério de adjudicação previsto no convite ou no
programa do procedimento). O efeito suspensivo automático da decisão de
adjudicação acaba por corresponder a um incidente específico do contencioso
pré-contractual, associado à propositura da ação de impugnação de atos de
adjudicação, cujo objetivo passa por assegurar que as ilegalidades atinentes ao
procedimento são corrigidas antes da celebração e execução do contracto e que,
durante o período que medeia até que uma instância jurisdicional se pronuncie
sobre a viabilidade da pretensão, o efeito da celebração do contracto fique
suspenso. Através do efeito suspensivo automático visa-se assegurar a utilidade
do processo principal e combater a estratégia administrativa do facto ilegal
consumado.
Associado ao mecanismo
da suspensão automática existe um outro procedimento, a ser exercido pelo demandado
ou contrainteressados na ação principal, cujo objetivo é o de obstar à
suspensão dos efeitos do ato de adjudicação. O legislador europeu consagrou a
possibilidade de um levantamento do efeito suspensivo automático como forma de
conferir uma certa proteção à outra parte, que deste modo se pode defender da
pretensão do autor, demonstrando que do efeito suspensivo poderão advir
consequências que lhe são bastante prejudiciais. Como critério, para aferir do
levantamento do efeito suspensivo automático estabeleceu-se o critério da
ponderação de interesses, que requer de ser apreciada pelo Tribunal. Aquando do
requerimento para levantamento do efeito suspensivo, o demandante pode optar
por não responder, caso entenda que não foram invocados prejuízos graves ou
optar por responder, contestando as razões invocadas pela outra parte e/ou
alegando e provando os graves prejuízos que para si resultariam com a
procedência do pedido da entidade adjudicante. Assim, o tribunal terá de
decidir com base nas alegações e provas demonstradas pelos envolvidos e
posterior juízo sobre os interesses e prejuízos que resultarão da sua decisão.
O efeito suspensivo
automático sofreu algumas alterações posteriores à sua transposição para a
ordem jurídica portuguesa e ainda hoje é objeto de várias críticas por parte da
doutrina.
A transposição da Diretiva
2007/66/CE, incorporada no texto do CPTA, de 2002, distanciou-se bastante
daquilo que o diploma europeu visava. Ao contrário do que se teria previsto, o
CPTA de 2002 não chegou a prever que a impugnação do ato de adjudicação, dentro
do prazo de standstill[2],
produzisse o efeito suspensivo da decisão de adjudicação. Para que se pudesse
suspender os efeitos do ato de adjudicação era necessário recorrer a uma
providência cautelar e estas, quando relativas a procedimentos de formação de
contractos, encontravam-se referenciadas nos termos do artigo 132.º, n.º3, do
CPTA de 2002 e não estavam ainda sujeitas às regras do capítulo no qual se
encontrava consagrado o efeito da suspensão automática, no artigo 128º, desse
diploma. Em 2002, o CPTA não estava organizado no que respeita a esta
problemática e esta situação acabou por ter um efeito prolongado, sendo que
durante muito tempo o Supremo Tribunal Administrativo continuou a recusar a aplicação
do artigo 128º às providências cautelares, no âmbito do contencioso
pré-contractual e mesmo após a reforma de 2015 alguns tribunais ainda recusavam
um entendimento diferente.
A correção da situação
relativa à aplicação do artigo 128.º, foi feita ainda durante a vigência do
CPTA de 2002, contudo o mesmo apresentava ainda outras falhas nomeadamente, no
que diz respeito à fraca proteção conferida ao demandante da ação de suspensão,
uma vez que este poderia ver o mecanismo, por si acionado, ser posto de lado
através de uma simples demonstração, por parte da entidade adjudicante, da
existência de prejuízos para o interesse público resultantes do diferimento da
ação, sem que para o efeito os interesses do primeiro fossem também ponderados
(cfr. o artigo 128.º, n.º 1, in fine, do CPTA/2002), o legislador português não
adotou o critério da ponderação de interesses e portanto, neste aspeto, a
transposição da Diretiva acabou por não ir ao encontro daquilo que, com a sua
adopão, se pretendia.
Por outo lado, a
apreciação dos incidentes de declaração de ineficácia dos atos de execução
indevida era bastante demorada. Portanto, a transposição da diretiva ficou
muito aquém das expetativas.
Posteriormente, com a
reforma do CPTA, em 2015, tentou-se solucionar estas questões e procedeu-se à correta
transposição das garantias previstas na Diretiva, associando o efeito
suspensivo automático à impugnação dos atos de adjudicação. O artigo 103.º-A
surgiu assim em substituição do artigo 128.º e a nova redação trouxe a
possibilidade de se fazer suspender imediatamente os efeitos do ato impugnado,
no âmbito do contencioso pré-contratual. A reforma do CPTA permitiu um
alargamento da tutela do impugnante, de forma a colmatar as falhas do CPTA de
2002, no entanto apresentou um alargamento que foi para além do que a própria
Diretiva previa. Em sentido diferente ao do diploma europeu, o legislador estabeleceu
que a propositura da ação, no âmbito contencioso pré-contratual, determinaria a
suspensão dos efeitos da decisão de adjudicação, mas também a suspensão da
execução do contracto. No que respeita ao levantamento do efeito suspensivo, o
legislador português consagrou dois critérios para que este mecanismo fosse acionado,
nomeadamente através da demonstração de um prejuízo para o interesse público,
caso a suspensão do efeito se mantivesse e por outro lado, o critério da
ponderação das consequências que a decisão do juiz, fosse ela qual fosse, podia
abarcar.
O mecanismo do
levantamento do efeito suspensivo automático passou a estar referido no artigo
103º-A, n.º2, 3 e 4, do CPTA sendo que o argumento subjacente a tal pedido, não
muito diferente do que estabelecido no código anterior, prende-se com a
possibilidade de o diferimento da celebração, ou execução, do contracto ser
bastante prejudicial para o interesse público, ou capaz de originar
consequências nefastas para os demais interesses envolvidos. O demandante pode
responder ao pedido de levantamento da suspensão no prazo de 7 dias, sendo que
no final deste prazo o juiz tem de decidir, no prazo máximo de 10 dias,
recorrendo para o efeito à aplicação do critério da ponderação de interesses
consagrada no art. 120.º, n.º2, do CPTA e é esta questão, a relativa à
ponderação de interesses, que consubstancia uma enorme transformação face ao
CPTA de 2002. A partir de 2015 deixou de bastar a demonstração fundamentada de
um prejuízo para o interesse público e passou a ser necessário uma ponderação
de todos os interesses envolvidos. Foi no Acórdão datado de 05.04.2017, Proc.
n.º 031/17[3],
que a questão do levantamento do efeito suspensivo automático, prevista no
artigo 103º-, n.º 2, 3 e 4, articulado com o artigo 120.º/2, do CPTA, foi pela
primeira vez objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Administrativo. Estaria
em causa o levantamento do efeito suspensivo automático quanto à execução de um
contracto, no âmbito de um concurso público internacional, cujo objeto incidia
sobre a prestação de serviços de recolha e transporte de resíduos urbanos e de
limpeza urbana. Neste contexto, o Supremo Tribunal Administrativo analisou,
pela primeira vez, os fundamentos da entidade adjudicante, que neste caso era o
Município de Matosinhos, no que respeita à alegação e prova dos danos
resultantes do não levantamento do efeito suspensivo, procedendo à devida
ponderação para aferir da sua decretação.
A automaticidade do
mecanismo de suspensão do ato leva a que a entidade adjudicante que se vê
lesada por tal mecanismo deva proceder ao levantamento do mesmo, ao abrigo de
um “requerimento processual, propulsor de um (…) incidente processual”[4] e
como tal a “parte fica sujeita às regras sobre ónus da prova, consagrados nos
artigos 342.º, n.º 1, do Código Civil, 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, 293.º, n.º 1,
410.º, 414.º do Código de Processo Civil e, em especial, o artigo 103.º-A, n.º
2, do CPTA, de 2015”[5].
Se, por exemplo, a entidade adjudicante não conseguir provar os prejuízos
atinentes à suspensão do ato (ou do contracto), o juiz não pode julgar
procedente o pedido de levantamento da suspensão, incumbe-lhe, enquanto
aplicador do direito, zelar pela paz pública, que nem sempre se coaduna com o
interesse da parte que alega que tal suspensão prejudica o interesse público,
portanto a sua decisão tem de ser imparcial e assentar num juízo ponderativo
acerca dos interesses e danos em causa. A suspensão do ato de adjudicação, ou
da execução do contracto, originará sempre uma lesão do interesse público,
sendo este um ato da administração, cujo escopo passa pela prossecução do
interesse público, mas isso não significa que o interesse da outra parte, neste
caso do demandante, não possa ser considerado merecedor de maior tutela.
O juiz ficará incumbido
de avaliar o efeito que o diferimento da ação terá para o interesse público e
demais interesses, bem como ponderar se será mais prejudicial manter ou afastar
tal efeito suspensivo. Caber-lhe-ia também averiguar se no caso de resultar um
prejuízo grave do diferimento da ação principal as consequências lesivas que
resultariam da manutenção do efeito suspensivo seriam desproporcionadas em
relação ao dano que para o impugnante resultaria do levantamento desse efeito.
O professor Mário Aroso
de Almeida fez faz ainda uma ressalva quanto à problemática do mecanismo
consagrado no art. 103º - A, n.º2, 3 e 4, uma vez que foi não estipulado nenhum
prazo para que os demandados e contrainteressados possam requerer junto do
tribunal o levantamento do efeito suspensivo[6].
Deste modo, este pedido poderá ser feito até que a discussão seja dada por
terminada. Esta possibilidade prende-se com o facto de se tratar de uma
iniciativa pela qual se deduz uma pretensão que vai desencadear um incidente,
assim sendo apenas existiria um prazo se a lei o determinasse e tal não
aconteceu. Esta omissão poderá desencadear alguma insegurança jurídica para a
parte que beneficia com a suspensão automática e que poderá vir a ser afetada
pelo levantamento deste mecanismo, a todo o tempo.
Duarte Rodrigues da
Silva, numa análise ao procedimento em causa, defende que a transposição da
diretiva também apresentou falhas no CPTA de 2015, uma vez que da interpretação
das normas portuguesas parece resultar a possibilidade de o efeito suspensivo
perpetuar ainda que o autor não invoque qualquer prejuízo, sendo que desta
situação poderão resultar outras manifestamente injustas, no limite poder-se-á
estar a premiar intuitos ocultos meramente dilatórios. Deste modo, apesar de se
ter alargado a tutela do autor da impugnação do ato, diminui-se a proteção a
conferir àquele que do ato de adjudicação beneficiava. A automaticidade do
efeito desobriga a que o demandante tenha de invocar um prejuízo derivado do
ato que quer impugnar ou da celebração do contracto e por isso, a entidade
adjudicante fica submetida a tal efeito suspensivo, ainda que o autor da
impugnação não tenha demonstrado, com fundamentação rigorosa, os danos que a
procedência do ato de adjudicação lhe trariam.
O artigo 103.º-A, n.º
2, remete o critério de decisão para o artigo 120.º, n.º 2 e neste sentido,
para Duarte Rodrigues da Silva parece resultar que o Tribunal pode incluir no
juízo do incidente a adoção de outras medidas provisórias que permitam atenuar
ou limitar os efeitos da sua decisão, se bem que o n.º4 deste artigo não parece
seguir este entendimento[7].
Segundo o mesmo autor,
a ideia parece ser a de que o legislador nacional visou limitar o poder do
Tribunal, optando por não o capacitar a substituir o efeito suspensivo
automático do ato de adjudicação por qualquer outra medida provisória.
A ideia subjacente à
criação deste mecanismo, na Diretiva 2007/66/CE, ia no sentido de proteger as
partes e capacitá-las para que se pudessem proteger de um ato da contraparte,
numa relação jurídico-administrativa. A primeira transposição que o legislador
português elaborara fora em sentido contrário e a segunda acabou por estender
para além do que se visava tutelar.
O efeito suspensivo
automático não deixou de ser alvo de críticas uma vez que, representando a
prevalência dos interesses cautelares ou provisórios do demandante sobre os
interesses do adjudicatário, consubstancia uma vertente garantística levada ao
extremo. Por um lado, o autor não precisa de invocar qualquer prejuízo para que
a suspensão ocorra, esta é automática, por outro, mesmo que de forma objetiva,
o procedimento cautelar não provoque quaisquer danos na esfera do autor, esta
suspensão vai ter efeitos, podendo originar situações injustas e premiar
situações que apenas visam ser dilatórias. A par destas críticas alguns autores
fazem referência a outro tipo de soluções que visassem alcançar os objetivos do
efeito suspensivo automático.
O Dr. Marco Caldeira,
por exemplo, entende que o efeito suspensivo automático não deveria existir e
em vez de uma suspensão automática poder-se-ia ter optado por uma suspensão
determinada pelo autor, mediante a existência de um direito potestativo deste
em requerer a suspensão, ainda que não tivesse de justificá-la. Desta forma
continuava a garantir-se a tutela efetiva e ao mesmo tempo a garantir um
equilíbrio dos vários interesses envolvidos. Outra posição é apresentada pelo
Professor Pedro Cerqueira Gomes, que enfatiza a celeridade no contencioso
pré-contratual, enquanto o verdadeiro interesse dos concorrentes. Para o autor,
outros mecanismos poderiam ter sido adotados ao invés do efeito suspensivo
automático e dá o exemplo do sistema espanhol e dinamarquês. Em Espanha
prevê-se que juiz tenha de resolver a questão de fundo em 5 dias uteis e
portanto a duração média do recurso é de 15 a 25 dias desde a entrada na esfera
da entidade responsável, que é no caso concreto uma entidade administrativa
detentora de poderes especiais. No caso da Dinamarca há um sistema de recurso
que assenta em providências cautelares e apresenta uma duração média de 30
dias, ficando também a cargo de uma entidade administrativa independente, com
poderes parajudiciais. Estes dois autores entendem que em vez de existir este
efeito suspensivo automático deviam existir outros mecanismos.
Existe, no entanto, uma
outra parte da doutrina que entende que o efeito suspensivo automático, tal
como consagrado no artigo 103.º-A, n.º1, representa uma solução equilibrada do
sistema jurídico. O Professor Rodrigo Esteves de Oliveira considera que a
solução materializa um equilíbrio possível e justo dos interesses envolvidos na
relação triangular originada pela adjudicação, permitindo que o tribunal possa
resolver atempadamente o incidente provisório.
Beatriz Teixeira
Nº 28266
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Mário Aroso
de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2013
ANDRADE, Vieira de, A
Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 12ª Edição, 2012
OLIVEIRA, Mário Esteves
e OLIVEIRA, Rodrigo Esteves, "Código de Processo nos Tribunais
Administrativos", Vol. I, Almedina, 2006
OLIVEIRA, Rodrigo
Esteves; CALDEIRA, Marco; CABRAL, Margarida Olazabal; FERREIRA, Rui Cardona;
CARDILHA, Carlos; SÁNCHEZ, Pedro Fernández– “Contencioso Pré-Contratual”
Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, Fevereiro, 2017
OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de, in, “A tutela
"cautelar" ou provisória associada à impugnação da adjudicação de
contratos públicos”, CJA 115, Janeiro-Fevereiro 2016
SILVA, Duarte Rodrigues in “O levantamento do Efeito
Suspensivo Automático no Contencioso Pré-Contratual”, Cadernos Sérvulo de
Contencioso Administrativo Arbitragem #01/2016, Coleção Sérvulo, consultável in,
[2] Cláusula de
standstill corresponde ao prazo de 10 dias úteis contados da notificação da
decisão de adjudicação, período em que não se poderá celebrar contracto, artº
95º nº 3 e art. 104º nº 1 alínea a) do CCP
[3] Acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo, 1ª Secção, de 05.04.2017 P.031/17
[4] SILVA, Duarte Rodrigues in “O levantamento do Efeito Suspensivo Automático no
Contencioso Pré-Contratual”, Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo
Arbitragem #01/2016, Coleção Sérvulo
[5] SILVA, Duarte Rodrigues in “O levantamento do Efeito Suspensivo Automático no
Contencioso Pré-Contratual”, Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo
Arbitragem #01/2016, Coleção Sérvulo
[6] ALMEIDA, Mário
Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, página 398 e seguintes,
Almedina, 2013
[7] SILVA, Duarte Rodrigues in “O levantamento do Efeito Suspensivo Automático no
Contencioso Pré-Contratual”, Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo
Arbitragem #01/2016, Coleção Sérvulo
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