domingo, 9 de dezembro de 2018

Efeito Suspensivo Automático


O trabalho em questão prende-se com a análise de um mecanismo existente na ordem jurídica portuguesa, que resultou da transposição de uma Diretiva da UE, o artigo 103.º-A, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).
Esta disposição legal é uma novidade no âmbito da reforma do contencioso administrativo, introduzida pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro[1]. Esta diretiva veio impor aos Estados-Membros a consagração de um efeito suspensivo automático da decisão de adjudicação de um contracto, até que o Tribunal se pronunciasse sobre o pedido requerido pelo autor.
O ato de adjudicação corresponde a um ato administrativo, praticado pelo órgão competente para a decisão de contratar e através do qual se escolhe a proposta apresentada ou a melhor proposta dentro das que foram apresentadas (aquela que ficou melhor classificada, atendendo ao critério de adjudicação previsto no convite ou no programa do procedimento). O efeito suspensivo automático da decisão de adjudicação acaba por corresponder a um incidente específico do contencioso pré-contractual, associado à propositura da ação de impugnação de atos de adjudicação, cujo objetivo passa por assegurar que as ilegalidades atinentes ao procedimento são corrigidas antes da celebração e execução do contracto e que, durante o período que medeia até que uma instância jurisdicional se pronuncie sobre a viabilidade da pretensão, o efeito da celebração do contracto fique suspenso. Através do efeito suspensivo automático visa-se assegurar a utilidade do processo principal e combater a estratégia administrativa do facto ilegal consumado.
Associado ao mecanismo da suspensão automática existe um outro procedimento, a ser exercido pelo demandado ou contrainteressados na ação principal, cujo objetivo é o de obstar à suspensão dos efeitos do ato de adjudicação. O legislador europeu consagrou a possibilidade de um levantamento do efeito suspensivo automático como forma de conferir uma certa proteção à outra parte, que deste modo se pode defender da pretensão do autor, demonstrando que do efeito suspensivo poderão advir consequências que lhe são bastante prejudiciais. Como critério, para aferir do levantamento do efeito suspensivo automático estabeleceu-se o critério da ponderação de interesses, que requer de ser apreciada pelo Tribunal. Aquando do requerimento para levantamento do efeito suspensivo, o demandante pode optar por não responder, caso entenda que não foram invocados prejuízos graves ou optar por responder, contestando as razões invocadas pela outra parte e/ou alegando e provando os graves prejuízos que para si resultariam com a procedência do pedido da entidade adjudicante. Assim, o tribunal terá de decidir com base nas alegações e provas demonstradas pelos envolvidos e posterior juízo sobre os interesses e prejuízos que resultarão da sua decisão.
O efeito suspensivo automático sofreu algumas alterações posteriores à sua transposição para a ordem jurídica portuguesa e ainda hoje é objeto de várias críticas por parte da doutrina.
A transposição da Diretiva 2007/66/CE, incorporada no texto do CPTA, de 2002, distanciou-se bastante daquilo que o diploma europeu visava. Ao contrário do que se teria previsto, o CPTA de 2002 não chegou a prever que a impugnação do ato de adjudicação, dentro do prazo de standstill[2], produzisse o efeito suspensivo da decisão de adjudicação. Para que se pudesse suspender os efeitos do ato de adjudicação era necessário recorrer a uma providência cautelar e estas, quando relativas a procedimentos de formação de contractos, encontravam-se referenciadas nos termos do artigo 132.º, n.º3, do CPTA de 2002 e não estavam ainda sujeitas às regras do capítulo no qual se encontrava consagrado o efeito da suspensão automática, no artigo 128º, desse diploma. Em 2002, o CPTA não estava organizado no que respeita a esta problemática e esta situação acabou por ter um efeito prolongado, sendo que durante muito tempo o Supremo Tribunal Administrativo continuou a recusar a aplicação do artigo 128º às providências cautelares, no âmbito do contencioso pré-contractual e mesmo após a reforma de 2015 alguns tribunais ainda recusavam um entendimento diferente.
A correção da situação relativa à aplicação do artigo 128.º, foi feita ainda durante a vigência do CPTA de 2002, contudo o mesmo apresentava ainda outras falhas nomeadamente, no que diz respeito à fraca proteção conferida ao demandante da ação de suspensão, uma vez que este poderia ver o mecanismo, por si acionado, ser posto de lado através de uma simples demonstração, por parte da entidade adjudicante, da existência de prejuízos para o interesse público resultantes do diferimento da ação, sem que para o efeito os interesses do primeiro fossem também ponderados (cfr. o artigo 128.º, n.º 1, in fine, do CPTA/2002), o legislador português não adotou o critério da ponderação de interesses e portanto, neste aspeto, a transposição da Diretiva acabou por não ir ao encontro daquilo que, com a sua adopão, se pretendia.
Por outo lado, a apreciação dos incidentes de declaração de ineficácia dos atos de execução indevida era bastante demorada. Portanto, a transposição da diretiva ficou muito aquém das expetativas.
Posteriormente, com a reforma do CPTA, em 2015, tentou-se solucionar estas questões e procedeu-se à correta transposição das garantias previstas na Diretiva, associando o efeito suspensivo automático à impugnação dos atos de adjudicação. O artigo 103.º-A surgiu assim em substituição do artigo 128.º e a nova redação trouxe a possibilidade de se fazer suspender imediatamente os efeitos do ato impugnado, no âmbito do contencioso pré-contratual. A reforma do CPTA permitiu um alargamento da tutela do impugnante, de forma a colmatar as falhas do CPTA de 2002, no entanto apresentou um alargamento que foi para além do que a própria Diretiva previa. Em sentido diferente ao do diploma europeu, o legislador estabeleceu que a propositura da ação, no âmbito contencioso pré-contratual, determinaria a suspensão dos efeitos da decisão de adjudicação, mas também a suspensão da execução do contracto. No que respeita ao levantamento do efeito suspensivo, o legislador português consagrou dois critérios para que este mecanismo fosse acionado, nomeadamente através da demonstração de um prejuízo para o interesse público, caso a suspensão do efeito se mantivesse e por outro lado, o critério da ponderação das consequências que a decisão do juiz, fosse ela qual fosse, podia abarcar.
O mecanismo do levantamento do efeito suspensivo automático passou a estar referido no artigo 103º-A, n.º2, 3 e 4, do CPTA sendo que o argumento subjacente a tal pedido, não muito diferente do que estabelecido no código anterior, prende-se com a possibilidade de o diferimento da celebração, ou execução, do contracto ser bastante prejudicial para o interesse público, ou capaz de originar consequências nefastas para os demais interesses envolvidos. O demandante pode responder ao pedido de levantamento da suspensão no prazo de 7 dias, sendo que no final deste prazo o juiz tem de decidir, no prazo máximo de 10 dias, recorrendo para o efeito à aplicação do critério da ponderação de interesses consagrada no art. 120.º, n.º2, do CPTA e é esta questão, a relativa à ponderação de interesses, que consubstancia uma enorme transformação face ao CPTA de 2002. A partir de 2015 deixou de bastar a demonstração fundamentada de um prejuízo para o interesse público e passou a ser necessário uma ponderação de todos os interesses envolvidos. Foi no Acórdão datado de 05.04.2017, Proc. n.º 031/17[3], que a questão do levantamento do efeito suspensivo automático, prevista no artigo 103º-, n.º 2, 3 e 4, articulado com o artigo 120.º/2, do CPTA, foi pela primeira vez objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Administrativo. Estaria em causa o levantamento do efeito suspensivo automático quanto à execução de um contracto, no âmbito de um concurso público internacional, cujo objeto incidia sobre a prestação de serviços de recolha e transporte de resíduos urbanos e de limpeza urbana. Neste contexto, o Supremo Tribunal Administrativo analisou, pela primeira vez, os fundamentos da entidade adjudicante, que neste caso era o Município de Matosinhos, no que respeita à alegação e prova dos danos resultantes do não levantamento do efeito suspensivo, procedendo à devida ponderação para aferir da sua decretação.
A automaticidade do mecanismo de suspensão do ato leva a que a entidade adjudicante que se vê lesada por tal mecanismo deva proceder ao levantamento do mesmo, ao abrigo de um “requerimento processual, propulsor de um (…) incidente processual”[4] e como tal a “parte fica sujeita às regras sobre ónus da prova, consagrados nos artigos 342.º, n.º 1, do Código Civil, 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, 293.º, n.º 1, 410.º, 414.º do Código de Processo Civil e, em especial, o artigo 103.º-A, n.º 2, do CPTA, de 2015”[5]. Se, por exemplo, a entidade adjudicante não conseguir provar os prejuízos atinentes à suspensão do ato (ou do contracto), o juiz não pode julgar procedente o pedido de levantamento da suspensão, incumbe-lhe, enquanto aplicador do direito, zelar pela paz pública, que nem sempre se coaduna com o interesse da parte que alega que tal suspensão prejudica o interesse público, portanto a sua decisão tem de ser imparcial e assentar num juízo ponderativo acerca dos interesses e danos em causa. A suspensão do ato de adjudicação, ou da execução do contracto, originará sempre uma lesão do interesse público, sendo este um ato da administração, cujo escopo passa pela prossecução do interesse público, mas isso não significa que o interesse da outra parte, neste caso do demandante, não possa ser considerado merecedor de maior tutela.
O juiz ficará incumbido de avaliar o efeito que o diferimento da ação terá para o interesse público e demais interesses, bem como ponderar se será mais prejudicial manter ou afastar tal efeito suspensivo. Caber-lhe-ia também averiguar se no caso de resultar um prejuízo grave do diferimento da ação principal as consequências lesivas que resultariam da manutenção do efeito suspensivo seriam desproporcionadas em relação ao dano que para o impugnante resultaria do levantamento desse efeito.
O professor Mário Aroso de Almeida fez faz ainda uma ressalva quanto à problemática do mecanismo consagrado no art. 103º - A, n.º2, 3 e 4, uma vez que foi não estipulado nenhum prazo para que os demandados e contrainteressados possam requerer junto do tribunal o levantamento do efeito suspensivo[6]. Deste modo, este pedido poderá ser feito até que a discussão seja dada por terminada. Esta possibilidade prende-se com o facto de se tratar de uma iniciativa pela qual se deduz uma pretensão que vai desencadear um incidente, assim sendo apenas existiria um prazo se a lei o determinasse e tal não aconteceu. Esta omissão poderá desencadear alguma insegurança jurídica para a parte que beneficia com a suspensão automática e que poderá vir a ser afetada pelo levantamento deste mecanismo, a todo o tempo.
Duarte Rodrigues da Silva, numa análise ao procedimento em causa, defende que a transposição da diretiva também apresentou falhas no CPTA de 2015, uma vez que da interpretação das normas portuguesas parece resultar a possibilidade de o efeito suspensivo perpetuar ainda que o autor não invoque qualquer prejuízo, sendo que desta situação poderão resultar outras manifestamente injustas, no limite poder-se-á estar a premiar intuitos ocultos meramente dilatórios. Deste modo, apesar de se ter alargado a tutela do autor da impugnação do ato, diminui-se a proteção a conferir àquele que do ato de adjudicação beneficiava. A automaticidade do efeito desobriga a que o demandante tenha de invocar um prejuízo derivado do ato que quer impugnar ou da celebração do contracto e por isso, a entidade adjudicante fica submetida a tal efeito suspensivo, ainda que o autor da impugnação não tenha demonstrado, com fundamentação rigorosa, os danos que a procedência do ato de adjudicação lhe trariam.
O artigo 103.º-A, n.º 2, remete o critério de decisão para o artigo 120.º, n.º 2 e neste sentido, para Duarte Rodrigues da Silva parece resultar que o Tribunal pode incluir no juízo do incidente a adoção de outras medidas provisórias que permitam atenuar ou limitar os efeitos da sua decisão, se bem que o n.º4 deste artigo não parece seguir este entendimento[7].
Segundo o mesmo autor, a ideia parece ser a de que o legislador nacional visou limitar o poder do Tribunal, optando por não o capacitar a substituir o efeito suspensivo automático do ato de adjudicação por qualquer outra medida provisória.
A ideia subjacente à criação deste mecanismo, na Diretiva 2007/66/CE, ia no sentido de proteger as partes e capacitá-las para que se pudessem proteger de um ato da contraparte, numa relação jurídico-administrativa. A primeira transposição que o legislador português elaborara fora em sentido contrário e a segunda acabou por estender para além do que se visava tutelar.
O efeito suspensivo automático não deixou de ser alvo de críticas uma vez que, representando a prevalência dos interesses cautelares ou provisórios do demandante sobre os interesses do adjudicatário, consubstancia uma vertente garantística levada ao extremo. Por um lado, o autor não precisa de invocar qualquer prejuízo para que a suspensão ocorra, esta é automática, por outro, mesmo que de forma objetiva, o procedimento cautelar não provoque quaisquer danos na esfera do autor, esta suspensão vai ter efeitos, podendo originar situações injustas e premiar situações que apenas visam ser dilatórias. A par destas críticas alguns autores fazem referência a outro tipo de soluções que visassem alcançar os objetivos do efeito suspensivo automático.
O Dr. Marco Caldeira, por exemplo, entende que o efeito suspensivo automático não deveria existir e em vez de uma suspensão automática poder-se-ia ter optado por uma suspensão determinada pelo autor, mediante a existência de um direito potestativo deste em requerer a suspensão, ainda que não tivesse de justificá-la. Desta forma continuava a garantir-se a tutela efetiva e ao mesmo tempo a garantir um equilíbrio dos vários interesses envolvidos. Outra posição é apresentada pelo Professor Pedro Cerqueira Gomes, que enfatiza a celeridade no contencioso pré-contratual, enquanto o verdadeiro interesse dos concorrentes. Para o autor, outros mecanismos poderiam ter sido adotados ao invés do efeito suspensivo automático e dá o exemplo do sistema espanhol e dinamarquês. Em Espanha prevê-se que juiz tenha de resolver a questão de fundo em 5 dias uteis e portanto a duração média do recurso é de 15 a 25 dias desde a entrada na esfera da entidade responsável, que é no caso concreto uma entidade administrativa detentora de poderes especiais. No caso da Dinamarca há um sistema de recurso que assenta em providências cautelares e apresenta uma duração média de 30 dias, ficando também a cargo de uma entidade administrativa independente, com poderes parajudiciais. Estes dois autores entendem que em vez de existir este efeito suspensivo automático deviam existir outros mecanismos.
Existe, no entanto, uma outra parte da doutrina que entende que o efeito suspensivo automático, tal como consagrado no artigo 103.º-A, n.º1, representa uma solução equilibrada do sistema jurídico. O Professor Rodrigo Esteves de Oliveira considera que a solução materializa um equilíbrio possível e justo dos interesses envolvidos na relação triangular originada pela adjudicação, permitindo que o tribunal possa resolver atempadamente o incidente provisório.


Beatriz Teixeira
Nº 28266



BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2013
ANDRADE, Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 12ª Edição, 2012
OLIVEIRA, Mário Esteves e OLIVEIRA, Rodrigo Esteves, "Código de Processo nos Tribunais Administrativos", Vol. I, Almedina, 2006
OLIVEIRA, Rodrigo Esteves; CALDEIRA, Marco; CABRAL, Margarida Olazabal; FERREIRA, Rui Cardona; CARDILHA, Carlos; SÁNCHEZ, Pedro Fernández– “Contencioso Pré-Contratual” Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, Fevereiro, 2017
OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de, in, “A tutela "cautelar" ou provisória associada à impugnação da adjudicação de contratos públicos”, CJA 115, Janeiro-Fevereiro 2016
SILVA, Duarte Rodrigues in “O levantamento do Efeito Suspensivo Automático no Contencioso Pré-Contratual”, Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo Arbitragem #01/2016, Coleção Sérvulo, consultável in,



[2] Cláusula de standstill corresponde ao prazo de 10 dias úteis contados da notificação da decisão de adjudicação, período em que não se poderá celebrar contracto, artº 95º nº 3 e art. 104º nº 1 alínea a) do CCP
[3] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 1ª Secção, de 05.04.2017 P.031/17
[4] SILVA, Duarte Rodrigues in “O levantamento do Efeito Suspensivo Automático no Contencioso Pré-Contratual”, Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo Arbitragem #01/2016, Coleção Sérvulo

[5] SILVA, Duarte Rodrigues in “O levantamento do Efeito Suspensivo Automático no Contencioso Pré-Contratual”, Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo Arbitragem #01/2016, Coleção Sérvulo
[6] ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, página 398 e seguintes, Almedina, 2013
[7] SILVA, Duarte Rodrigues in “O levantamento do Efeito Suspensivo Automático no Contencioso Pré-Contratual”, Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo Arbitragem #01/2016, Coleção Sérvulo


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