Providências Cautelares e os critérios de atribuição
As providências
cautelares inserem-se no contexto dos processos cautelares, que vêm regulados
nos artigos 112.º a 134.º do CPTA. Para percebermos em que consistem estas
providências temos exatamente de analisar o disposto nestes artigos, com
destaque para os artigos 112.º, 113.º, 114.º e 120.º. Logo no número 1 do
artigo 112.º constatamos que as providências cautelares vão estar ligadas a um
objetivo, o de “assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo”.
Ainda deste número retiramos que existem dois tipos de providências cautelares,
as antecipatórias e as conservatórias, embora aqui não pretendamos centrar-nos
nessa distinção.
Do artigo
seguinte, do artigo 113.º, importa para a noção de providência cautelar olhar
para os números 1 e 2. Do número 1 podemos retirar que o processo cautelar, que
vai ter por objeto as providências cautelares, pode ser “intentado como
preliminar ou como incidente do processo”, chamado de principal. O número 2
indica-nos, por sua vez, que se trata de um processo urgente e que detém uma
tramitação autónoma em relação ao processo principal. Mas é com o número 1, do
artigo 120.º que, no fundo, podemos preencher a noção de providência cautelar.
Podemos retirar que ela é adotada “quando haja fundado receio de constituição de
uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil
reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo
principal.”
Portanto, ao
adotar uma providência cautelar pretende-se “salvaguardar” este tipo de
situações que não se coadunam com a normal morosidade de toda a tramitação do
processo administrativo, exigindo desse modo tutela, sob a pena de a sentença,
quando finalmente proferida, não ter qualquer utilidade.
Quanto à
caracterização das providências cautelares podemos ainda fazer menção aos seus
traços que resultam do regime que as regula, no CPTA: instrumentalidade,
provisoriedade e sumariedade.
O traço da
instrumentalidade prende-se com as ideias subjacentes aos artigos já
mencionados, artigo 112.º e 113.º. Há uma instrumentalidade do processo
cautelar que se verifica, desde logo, no pressuposto da legitimidade, sendo que
só tem legitimidade para intentar um processo cautelar, quem tiver igualmente
legitimidade para intentar um processo principal, estando ambos conectados pelo
objeto. Esta ideia, aliás, decorre também do disposto no artigo 113.º/1, 1.ª
parte: “o processo cautelar depende da causa que tem por objeto a decisão sobre
o mérito.”.
Quanto à
provisoriedade, é um traço que resulta, em grande medida, do disposto no artigo
124.º CPTA e que significa que com a decisão de adotar ou não uma providência
não se pretende pôr um ponto final no processo principal. Ou seja, a
provisoriedade das providências vai estar ligada à ideia de um título
provisório de uma decisão e que por ser provisório se pode alterar se se
chegarem a conclusões que vão no sentido contrário.
Na ótica de Mário
Aroso de Almeida podemos dizer que a “antecipação da produção do mesmo efeito,
que a decisão a proferir no processo principal poderá determinar a título
definitivo”1, deve ter lugar a título provisório; e, “portanto, deve
ser possível que ela possa caducar se, no processo principal, o juiz chegar a
conclusões que sejam incompatíveis (…)”. “ O que a providência cautelar não
pode fazer é antecipar a título definitivo a constituição de situações que só a
decisão a proferir no processo principal pode determinar a título definitivo,
em tais condições que essa situação já não possa ser alterada se, no processo
principal, o juiz chegar, afinal, a conclusões que não consintam a sua
manutenção.”.2
O autor refere um
exemplo bastante ilustrativo que cabe aqui mencionar: tratando-se de uma
situação em que o interessado pretenda obter uma licença para demolir um
imóvel, o tribunal não pode impor como providência cautelar, que a licença seja
concedida; podendo dizer o mesmo quanto a uma autorização para realizar uma
sessão de fogos de artifício, que não pode ser concedida no contexto de um
processo cautelar.3
Por fim, o último
traço, a sumariedade vai estar ligada à ideia de uma certa urgência que caracteriza
esta figura do processo cautelar, que por sua vez está ligada a uma análise
muito menos aprofundada dos factos que se prende com o objetivo último de
evitar que a sentença final do processo principal deixe de ter utilidade quando
proferida. Portanto, é um traço que tem que ver com o modo como as questões vão
ser colocadas no âmbito do processo cautelar, limitando-se ao essencial para
esclarecer o juiz quanto ao preenchimento dos requisitos ou critérios
necessários para a adoção da providência cautelar.
Depois de termos
visto em que consiste uma providência cautelar e os traços gerais que a
caracterizam, estamos agora em condições de nos debruçarmos sobre a temática
dos critérios de atribuição das providências cautelares, que se podem dividir
em critério gerais e critérios ou regimes especiais.
Os critérios
gerais encontram-se dispostos no artigo 120.º CPTA, mais concretamente, nos
números 1 e 2, existindo: o critério do periculum
in mora; o critério da aparência de bom direito; e o critério da ponderação
de interesses.
Começando pelo
critério do periculum in mora podemos
afirmar que ele resulta da primeira parte, do número 1, do artigo 120.º: “(…)
quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado
ou da produção de prejuízos de difícil reparação (…)”. Podemos dizer que este,
no fundo, é um critério base de todo o processo cautelar e é o critério que vai
estar intimamente ligado ao objetivo último que consta da última parte do
número 1, do artigo 112.º.
Para verificar o
preenchimento deste critério tem de se ter em conta que “Nestas situações, em
que a providência é necessária para evitar o risco de infrutuosidade da
sentença a proferir no processo principal, o critério não pode ser, portanto, o
da suscetibilidade ou insuscetibilidade de avaliação pecuniária dos danos, mas
tem de ser o da viabilidade do restabelecimento da situação que deveria existir
se a conduta ilegal não tivesse tido lugar.”4. Assim o afirma Mário
Aroso de Almeida, acrescentando que se os critérios utilizados tivessem por
base a suscetibilidade de avaliação pecuniária dos danos seriam critérios de “caráter
variável, aleatório ou difuso.”.5
Mas o periculum in mora não abrange apenas
situações em que houve uma situação de facto consumado. Para que este critério
de atribuição esteja preenchido é suficiente que se constate um fundado receio
da “produção de prejuízos de difícil reparação”6, “seja porque a
reintegração no plano dos factos se
perspetiva difícil, seja porque pode haver prejuízos que, em qualquer caso se
produzirão ao longo do tempo e que a reintegração da legalidade não é capaz de
reparar, ou, pelo menos de reparar integralmente.”.7 Para que, por
sua vez, se constate um fundado receio não será necessário um juízo de certeza,
bastará aqui, um juízo de probabilidade; o que vai de acordo com o traço da
sumariedade que já mencionámos.
O segundo critério
geral é o critério da aparência de bom direito, ou, para utilizar a expressão
em latim, o critério do fumus boni iuris.
Este critério decorre também do artigo 120.º/1, mas desta vez, da última parte:
“e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a
ser julgada procedente.”. O que podemos retirar daqui essencialmente é que o
juiz tem de fazer um juízo de probabilidade relativamente à procedência da
pretensão formulada ou a formular no processo declarativo. Devemos acrescentar,
no entanto, que “Essa avaliação deve (…) conservar-se dentro dos estritos limites
que são próprios da tutela cautelar para não comprometer nem antecipar o juízo
de fundo que caberá formular no processo principal.”8. Portanto,
para que as providências cautelares sejam adotadas é necessário que haja uma
certa probabilidade de a pretensão formulada ou a formular no processo
principal vir a ser julgada procedente.
A este regime
atual, Mário Aroso de Almeida tece várias críticas, pois não vê razão para que
se tenha acabado com as diferenças de regime, previstas no artigo 120.º/1,
antes da revisão de 2015, das providências antecipatórias e das providências
conservatórias. Defende que o critério fumus
boni iuris só devia assumir-se verdadeiramente como critério de atribuição
das providências cautelares antecipatórias, pois só nestes casos faria sentido
“impender sobre o requerente da providência o encargo de fazer prova
perfunctória do bem fundado da pretensão por si deduzida no processo
principal.”9.
Por último,
surge-nos o critério da ponderação de interesses que decorre do número 2, do artigo
120.º CPTA: “ a adoção da providência ou das providências é recusada quando,
devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos
que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem
resultar da sua recusa (…)”. Este preceito e este critério pretende trazer um
equilíbrio ao regime das providências cautelares, no sentido em que permite ter
em conta os interesses dos demais envolvidos, quer sejam de
contra-interessados, quer sejam da entidade demandada, e, com isso ponderar
quais são os interesses que devem prevalecer. Mário Aroso de Almeida inclusive,
chama a este preceito do número 2, uma “cláusula de salvaguarda”10,
ou seja, mesmo que o requerente consiga preencher os requisitos previstos no
número 1, será necessário ainda ter em conta as posições dos outros
interessados num contexto processual. Desta forma, as suas posições estarão de
certa forma salvaguardadas no âmbito do processo cautelar.
Tendo abordado os
critérios gerais, iremos debruçar-nos, agora, na temática dos critérios ou
regimes especiais. Podemos, antes de mais, apontar que existem cinco situações
específicas que requerem ou mais requisitos para além dos gerais; ou outros
requisitos excluindo alguns dos gerais, para que possa ser atribuída a ou as
providências cautelares.
Começando pela
situação prevista no artigo 120.º/6, que se prende com o pagamento de uma
quantia certa sem natureza sancionatória, podemos referir que se trata de uma
situação em que os critérios previstos no número 1 podem ser afastados,
existindo como que um fenómeno de substituição desses critérios gerais por
outro critério especial. Estabelece-se que: “Quando no processo principal,
esteja apenas em causa o pagamento de quantia certa, sem natureza
sancionatória, as providências cautelares são adotadas independentemente dos
requisitos do número 1, se tiver sido prestada garantia por uma das formas
previstas na lei tributária.”
Resulta do
preceito, então, que o preenchimento dos critérios do periculum in mora e do fumus
boni iuris, não será necessário para que a providência seja adotada, caso
já tenha sido prestada garantia. Apesar disto, não resulta do preceito o
possível afastamento do terceiro critério geral consagrado no número 2, do
artigo 120.º CPTA. Contudo, há que ter em conta, também, que ao estar-se a
prestar uma garantia, de certo modo, está-se a assegurar o interesse de um
eventual contra-interessado. Portanto, é um critério que não deve ser excluído,
num plano teórico, embora, num plano prático, “seja difícil de conceber uma
hipótese em que, estando em causa apenas o pagamento de quantia certa, a
concessão da providência mediante prestação de garantia possa provocar danos
desproporcionados ao interesse da entidade requerida em obter a quantia em
causa”.11
Quanto a este
preceito cabe ainda chamar a atenção para outro mecanismo previsto no CPTA para
situações idênticas, nomeadamente expresso no artigo 50.º/2: “Sem prejuízo das
demais situações previstas na lei, a impugnação de uma ato administrativo
suspende a eficácia desse ato quando, cumulativamente, esteja apenas em causa o
pagamento de uma quantia certa, sem natureza sancionatória, e tenha sido
prestada garantia por qualquer das formas previstas na lei tributária.”.
Portanto, trata-se
de outro preceito que tutela este tipo específico de situações e que permite ao
interessado dispor de diferentes mecanismos de tutela. Assim sendo, o
interessado pode avançar para a impugnação do ato, com prestação de garantia, o
que se vai traduzir numa suspensão automática dos efeitos do ato
administrativo, nos termos do artigo 50.º/2 CPTA; pode não impugnar logo o ato,
ou impugnar sem prestar garantia e pedir a suspensão da eficácia do ato, com
prestação de garantia, pelo que nos termos do artigo 120.º/6 não terá de
preencher os dois critérios gerais – periculum
in mora e fumus boni iuris – para
que a providência cautelar seja decretada. Finalmente, há ainda uma terceira
opção, que corresponde a um pedido de suspensão da eficácia, sem prestação de
garantia em sede de processo cautelar, onde já será necessário preencher os
requisitos previstos nos números 1 e 2 do artigo 120.º CPTA.
A segunda situação
especial surge-nos no artigo 129.º CPTA e prende-se com a suspensão da eficácia
do ato já executado, sendo um preceito que, ao contrário do critério previsto
no artigo 120.º/6 que permite substituir critérios gerais, vem acrescentar um
outro requisito para além dos critérios gerais que têm de se verificar em
conjunto.
Portanto, esta
situação especial obriga, para que seja possível a adoção de uma providência
cautelar, a que os critérios gerais estejam preenchidos, e para além deles, um
outro específico: “ A execução de um ato não obsta à suspensão da sua eficácia
quando desta possa advir, para o requerente ou para os interesses que este
defenda ou venha a defender, no processo principal, utilidade relevante no que
toca aos efeitos que o ato ainda produza ou venha a produzir.”. É necessário,
então, que haja uma utilidade relevante associada à suspensão do ato já executado,
dizendo Mário Aroso de Almeida: “o que bem se compreende, na medida em que a
suspensão do ato já executado não se justificará, por falta de interesse do
requerente, se todos os seus efeitos nocivos já se tiverem consumado e as consequências
da execução realizada forem materialmente irreversíveis.”.12
O terceiro regime
especial encontra-se contido no artigo 130.º CPTA e prende-se com a suspensão
da eficácia de normas. Mais uma vez, estamos aqui num contexto em que os
critérios gerais de atribuição de providências cautelares têm de se verificar
no caso e para além destes, têm ainda de estar preenchidos outros critérios
expressos no preceito que são específicos para este tipo de situações; daí
poder dizer-se que estamos no âmbito de um regime especial.
Apesar de assim
ser, o artigo 130.º contém nos seus números dois tipos de situações distintas,
que importa referir: os pedidos que visam a suspensão da eficácia de uma norma,
com efeitos circunscritos ao caso (artigo 130.ª/1); e os pedidos que visam a
suspensão da eficácia de uma norma, com força obrigatória geral (artigo 130.º/2).
Quanto à primeira situação, do artigo 130.º/1, exige-se que a norma seja
emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo e que os efeitos da
mesma se produzam imediatamente sem dependência de um ato administrativo ou
jurisdicional de aplicação.
Quanto à segunda
situação, do artigo 130.º/2, o que é de relevar são as entidades que têm
legitimidade para fazer este pedido e o porquê de a terem. As entidades que
podem requerer a suspensão da norma com força obrigatória geral serão assim: o
Ministério Público, autarquias locais, associações e fundações defensoras dos
interesses em causa e qualquer pessoa nos termos do artigo 73.º/1 CPTA. Na
ótica de Mário Aroso de Almeida, aqui devem também incluir-se os presidentes de
órgãos colegiais, dado que com a revisão de 2015, estes passaram a configurar
no elenco do artigo 73.º/1. Quanto ao porquê da sua legitimidade, este
prende-se com a ideia de reintegração da legalidade, proteção do interesse
público e dos interesses difusos previstos no artigo 9.º/2.
O quarto regime
especial encontra-se consagrado no artigo 132.º, mais concretamente, no número
4, e tem que ver com procedimentos de formação de contratos; no entanto, é de
ressalvar que este regime apenas se verifica para os procedimentos não
abrangidos pelo âmbito dos artigos 100.º a 103.º-B. O critério presente no
número 4 assemelha-se ao presente no número 2 do artigo 120.º, ligado à
ponderação de interesses no âmbito do processo cautelar. Para além disto, o
critério do periculum in mora também
surge como critério de atribuição, mas aqui dotado de outros contornos,
diferentes dos que resultam do artigo 120.º/1 CPTA. E, portanto, não há uma
circunscrição do âmbito dos prejuízos atendíveis. Quanto ao critério fumus boni iuris, parece que é afastado
pelo preceito, logo, ao juiz não cabe formular qualquer tipo de juízo a cerca
da probabilidade da procedência ou improcedência do processo principal.
Por último e para
concluir, há que mencionar o regime previsto no artigo 133.º, que se
circunscreve ao âmbito de situações de grave carência económica. Trata-se de um
regime especial pela forma como configura o critério do periculum in mora, excluindo, ainda, o critério da ponderação de
interesses do artigo 120.º/2. Os critérios propriamente ditos surgem no número
2, do artigo 133.º, exigindo-se que a situação de grave carência económica
esteja adequadamente provada e, portanto, não basta um mero receio de que a
carência se venha a verificar. Para além disto, tem de ser de prever que o
prolongamento dessa situação possa acarretar consequências graves e
dificilmente reparáveis. Na alínea c), surge ainda uma concretização do
critério do fumus boni iuris, tendo
de se formular um juízo de probabilidade quanto à procedência do pedido.
1, 2 e 3 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª
edição, Almedina, p. 417.
4, 5 e 6 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª
edição, Almedina, p. 449.
7 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª
edição, Almedina, pp.449-450.
8 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª
edição, Almedina, p. 451.
9 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª
edição, Almedina, p. 452.
10 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª
edição, Almedina, p. 453.
11 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª
edição, Almedina, p. 456.
12 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª
edição, Almedina, p. 458.
Bibliografia
ALMEIDA,
Mário Aroso; CADILHA, Carlos Fernandes (2017), Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª
edição, Almedina, pp 517-532; 911-929; 966-988; 1031-1036; 1045-1054.
Fonseca,
Rui Guerra (2014), A suspensão de eficácia de atos administrativos no projeto
de revisão do código de processo nos tribunais administrativos, e-pública,
volume I, número 2, p. 29. Acedido em:
Catarina
Alexandra Niza Madeira, número 28263, subturma 8.
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