segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Providências Cautelares e os critérios de atribuição


Providências Cautelares e os critérios de atribuição

As providências cautelares inserem-se no contexto dos processos cautelares, que vêm regulados nos artigos 112.º a 134.º do CPTA. Para percebermos em que consistem estas providências temos exatamente de analisar o disposto nestes artigos, com destaque para os artigos 112.º, 113.º, 114.º e 120.º. Logo no número 1 do artigo 112.º constatamos que as providências cautelares vão estar ligadas a um objetivo, o de “assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo”. Ainda deste número retiramos que existem dois tipos de providências cautelares, as antecipatórias e as conservatórias, embora aqui não pretendamos centrar-nos nessa distinção.
Do artigo seguinte, do artigo 113.º, importa para a noção de providência cautelar olhar para os números 1 e 2. Do número 1 podemos retirar que o processo cautelar, que vai ter por objeto as providências cautelares, pode ser “intentado como preliminar ou como incidente do processo”, chamado de principal. O número 2 indica-nos, por sua vez, que se trata de um processo urgente e que detém uma tramitação autónoma em relação ao processo principal. Mas é com o número 1, do artigo 120.º que, no fundo, podemos preencher a noção de providência cautelar. Podemos retirar que ela é adotada “quando haja fundado receio de constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal.”
Portanto, ao adotar uma providência cautelar pretende-se “salvaguardar” este tipo de situações que não se coadunam com a normal morosidade de toda a tramitação do processo administrativo, exigindo desse modo tutela, sob a pena de a sentença, quando finalmente proferida, não ter qualquer utilidade.
Quanto à caracterização das providências cautelares podemos ainda fazer menção aos seus traços que resultam do regime que as regula, no CPTA: instrumentalidade, provisoriedade e sumariedade.
O traço da instrumentalidade prende-se com as ideias subjacentes aos artigos já mencionados, artigo 112.º e 113.º. Há uma instrumentalidade do processo cautelar que se verifica, desde logo, no pressuposto da legitimidade, sendo que só tem legitimidade para intentar um processo cautelar, quem tiver igualmente legitimidade para intentar um processo principal, estando ambos conectados pelo objeto. Esta ideia, aliás, decorre também do disposto no artigo 113.º/1, 1.ª parte: “o processo cautelar depende da causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito.”.
Quanto à provisoriedade, é um traço que resulta, em grande medida, do disposto no artigo 124.º CPTA e que significa que com a decisão de adotar ou não uma providência não se pretende pôr um ponto final no processo principal. Ou seja, a provisoriedade das providências vai estar ligada à ideia de um título provisório de uma decisão e que por ser provisório se pode alterar se se chegarem a conclusões que vão no sentido contrário.
Na ótica de Mário Aroso de Almeida podemos dizer que a “antecipação da produção do mesmo efeito, que a decisão a proferir no processo principal poderá determinar a título definitivo”1, deve ter lugar a título provisório; e, “portanto, deve ser possível que ela possa caducar se, no processo principal, o juiz chegar a conclusões que sejam incompatíveis (…)”. “ O que a providência cautelar não pode fazer é antecipar a título definitivo a constituição de situações que só a decisão a proferir no processo principal pode determinar a título definitivo, em tais condições que essa situação já não possa ser alterada se, no processo principal, o juiz chegar, afinal, a conclusões que não consintam a sua manutenção.”.2
O autor refere um exemplo bastante ilustrativo que cabe aqui mencionar: tratando-se de uma situação em que o interessado pretenda obter uma licença para demolir um imóvel, o tribunal não pode impor como providência cautelar, que a licença seja concedida; podendo dizer o mesmo quanto a uma autorização para realizar uma sessão de fogos de artifício, que não pode ser concedida no contexto de um processo cautelar.3
Por fim, o último traço, a sumariedade vai estar ligada à ideia de uma certa urgência que caracteriza esta figura do processo cautelar, que por sua vez está ligada a uma análise muito menos aprofundada dos factos que se prende com o objetivo último de evitar que a sentença final do processo principal deixe de ter utilidade quando proferida. Portanto, é um traço que tem que ver com o modo como as questões vão ser colocadas no âmbito do processo cautelar, limitando-se ao essencial para esclarecer o juiz quanto ao preenchimento dos requisitos ou critérios necessários para a adoção da providência cautelar.
Depois de termos visto em que consiste uma providência cautelar e os traços gerais que a caracterizam, estamos agora em condições de nos debruçarmos sobre a temática dos critérios de atribuição das providências cautelares, que se podem dividir em critério gerais e critérios ou regimes especiais.
Os critérios gerais encontram-se dispostos no artigo 120.º CPTA, mais concretamente, nos números 1 e 2, existindo: o critério do periculum in mora; o critério da aparência de bom direito; e o critério da ponderação de interesses.
Começando pelo critério do periculum in mora podemos afirmar que ele resulta da primeira parte, do número 1, do artigo 120.º: “(…) quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação (…)”. Podemos dizer que este, no fundo, é um critério base de todo o processo cautelar e é o critério que vai estar intimamente ligado ao objetivo último que consta da última parte do número 1, do artigo 112.º.
Para verificar o preenchimento deste critério tem de se ter em conta que “Nestas situações, em que a providência é necessária para evitar o risco de infrutuosidade da sentença a proferir no processo principal, o critério não pode ser, portanto, o da suscetibilidade ou insuscetibilidade de avaliação pecuniária dos danos, mas tem de ser o da viabilidade do restabelecimento da situação que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse tido lugar.”4. Assim o afirma Mário Aroso de Almeida, acrescentando que se os critérios utilizados tivessem por base a suscetibilidade de avaliação pecuniária dos danos seriam critérios de “caráter variável, aleatório ou difuso.”.5
Mas o periculum in mora não abrange apenas situações em que houve uma situação de facto consumado. Para que este critério de atribuição esteja preenchido é suficiente que se constate um fundado receio da “produção de prejuízos de difícil reparação”6, “seja porque a reintegração no plano dos factos  se perspetiva difícil, seja porque pode haver prejuízos que, em qualquer caso se produzirão ao longo do tempo e que a reintegração da legalidade não é capaz de reparar, ou, pelo menos de reparar integralmente.”.7 Para que, por sua vez, se constate um fundado receio não será necessário um juízo de certeza, bastará aqui, um juízo de probabilidade; o que vai de acordo com o traço da sumariedade que já mencionámos.
O segundo critério geral é o critério da aparência de bom direito, ou, para utilizar a expressão em latim, o critério do fumus boni iuris. Este critério decorre também do artigo 120.º/1, mas desta vez, da última parte: “e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.”. O que podemos retirar daqui essencialmente é que o juiz tem de fazer um juízo de probabilidade relativamente à procedência da pretensão formulada ou a formular no processo declarativo. Devemos acrescentar, no entanto, que “Essa avaliação deve (…) conservar-se dentro dos estritos limites que são próprios da tutela cautelar para não comprometer nem antecipar o juízo de fundo que caberá formular no processo principal.”8. Portanto, para que as providências cautelares sejam adotadas é necessário que haja uma certa probabilidade de a pretensão formulada ou a formular no processo principal vir a ser julgada procedente.
A este regime atual, Mário Aroso de Almeida tece várias críticas, pois não vê razão para que se tenha acabado com as diferenças de regime, previstas no artigo 120.º/1, antes da revisão de 2015, das providências antecipatórias e das providências conservatórias. Defende que o critério fumus boni iuris só devia assumir-se verdadeiramente como critério de atribuição das providências cautelares antecipatórias, pois só nestes casos faria sentido “impender sobre o requerente da providência o encargo de fazer prova perfunctória do bem fundado da pretensão por si deduzida no processo principal.”9.
Por último, surge-nos o critério da ponderação de interesses que decorre do número 2, do artigo 120.º CPTA: “ a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa (…)”. Este preceito e este critério pretende trazer um equilíbrio ao regime das providências cautelares, no sentido em que permite ter em conta os interesses dos demais envolvidos, quer sejam de contra-interessados, quer sejam da entidade demandada, e, com isso ponderar quais são os interesses que devem prevalecer. Mário Aroso de Almeida inclusive, chama a este preceito do número 2, uma “cláusula de salvaguarda”10, ou seja, mesmo que o requerente consiga preencher os requisitos previstos no número 1, será necessário ainda ter em conta as posições dos outros interessados num contexto processual. Desta forma, as suas posições estarão de certa forma salvaguardadas no âmbito do processo cautelar.
Tendo abordado os critérios gerais, iremos debruçar-nos, agora, na temática dos critérios ou regimes especiais. Podemos, antes de mais, apontar que existem cinco situações específicas que requerem ou mais requisitos para além dos gerais; ou outros requisitos excluindo alguns dos gerais, para que possa ser atribuída a ou as providências cautelares.
Começando pela situação prevista no artigo 120.º/6, que se prende com o pagamento de uma quantia certa sem natureza sancionatória, podemos referir que se trata de uma situação em que os critérios previstos no número 1 podem ser afastados, existindo como que um fenómeno de substituição desses critérios gerais por outro critério especial. Estabelece-se que: “Quando no processo principal, esteja apenas em causa o pagamento de quantia certa, sem natureza sancionatória, as providências cautelares são adotadas independentemente dos requisitos do número 1, se tiver sido prestada garantia por uma das formas previstas na lei tributária.”
Resulta do preceito, então, que o preenchimento dos critérios do periculum in mora e do fumus boni iuris, não será necessário para que a providência seja adotada, caso já tenha sido prestada garantia. Apesar disto, não resulta do preceito o possível afastamento do terceiro critério geral consagrado no número 2, do artigo 120.º CPTA. Contudo, há que ter em conta, também, que ao estar-se a prestar uma garantia, de certo modo, está-se a assegurar o interesse de um eventual contra-interessado. Portanto, é um critério que não deve ser excluído, num plano teórico, embora, num plano prático, “seja difícil de conceber uma hipótese em que, estando em causa apenas o pagamento de quantia certa, a concessão da providência mediante prestação de garantia possa provocar danos desproporcionados ao interesse da entidade requerida em obter a quantia em causa”.11
Quanto a este preceito cabe ainda chamar a atenção para outro mecanismo previsto no CPTA para situações idênticas, nomeadamente expresso no artigo 50.º/2: “Sem prejuízo das demais situações previstas na lei, a impugnação de uma ato administrativo suspende a eficácia desse ato quando, cumulativamente, esteja apenas em causa o pagamento de uma quantia certa, sem natureza sancionatória, e tenha sido prestada garantia por qualquer das formas previstas na lei tributária.”.
Portanto, trata-se de outro preceito que tutela este tipo específico de situações e que permite ao interessado dispor de diferentes mecanismos de tutela. Assim sendo, o interessado pode avançar para a impugnação do ato, com prestação de garantia, o que se vai traduzir numa suspensão automática dos efeitos do ato administrativo, nos termos do artigo 50.º/2 CPTA; pode não impugnar logo o ato, ou impugnar sem prestar garantia e pedir a suspensão da eficácia do ato, com prestação de garantia, pelo que nos termos do artigo 120.º/6 não terá de preencher os dois critérios gerais – periculum in mora e fumus boni iuris – para que a providência cautelar seja decretada. Finalmente, há ainda uma terceira opção, que corresponde a um pedido de suspensão da eficácia, sem prestação de garantia em sede de processo cautelar, onde já será necessário preencher os requisitos previstos nos números 1 e 2 do artigo 120.º CPTA.
A segunda situação especial surge-nos no artigo 129.º CPTA e prende-se com a suspensão da eficácia do ato já executado, sendo um preceito que, ao contrário do critério previsto no artigo 120.º/6 que permite substituir critérios gerais, vem acrescentar um outro requisito para além dos critérios gerais que têm de se verificar em conjunto.
Portanto, esta situação especial obriga, para que seja possível a adoção de uma providência cautelar, a que os critérios gerais estejam preenchidos, e para além deles, um outro específico: “ A execução de um ato não obsta à suspensão da sua eficácia quando desta possa advir, para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender, no processo principal, utilidade relevante no que toca aos efeitos que o ato ainda produza ou venha a produzir.”. É necessário, então, que haja uma utilidade relevante associada à suspensão do ato já executado, dizendo Mário Aroso de Almeida: “o que bem se compreende, na medida em que a suspensão do ato já executado não se justificará, por falta de interesse do requerente, se todos os seus efeitos nocivos já se tiverem consumado e as consequências da execução realizada forem materialmente irreversíveis.”.12
O terceiro regime especial encontra-se contido no artigo 130.º CPTA e prende-se com a suspensão da eficácia de normas. Mais uma vez, estamos aqui num contexto em que os critérios gerais de atribuição de providências cautelares têm de se verificar no caso e para além destes, têm ainda de estar preenchidos outros critérios expressos no preceito que são específicos para este tipo de situações; daí poder dizer-se que estamos no âmbito de um regime especial.
Apesar de assim ser, o artigo 130.º contém nos seus números dois tipos de situações distintas, que importa referir: os pedidos que visam a suspensão da eficácia de uma norma, com efeitos circunscritos ao caso (artigo 130.ª/1); e os pedidos que visam a suspensão da eficácia de uma norma, com força obrigatória geral (artigo 130.º/2). Quanto à primeira situação, do artigo 130.º/1, exige-se que a norma seja emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo e que os efeitos da mesma se produzam imediatamente sem dependência de um ato administrativo ou jurisdicional de aplicação.
Quanto à segunda situação, do artigo 130.º/2, o que é de relevar são as entidades que têm legitimidade para fazer este pedido e o porquê de a terem. As entidades que podem requerer a suspensão da norma com força obrigatória geral serão assim: o Ministério Público, autarquias locais, associações e fundações defensoras dos interesses em causa e qualquer pessoa nos termos do artigo 73.º/1 CPTA. Na ótica de Mário Aroso de Almeida, aqui devem também incluir-se os presidentes de órgãos colegiais, dado que com a revisão de 2015, estes passaram a configurar no elenco do artigo 73.º/1. Quanto ao porquê da sua legitimidade, este prende-se com a ideia de reintegração da legalidade, proteção do interesse público e dos interesses difusos previstos no artigo 9.º/2.
O quarto regime especial encontra-se consagrado no artigo 132.º, mais concretamente, no número 4, e tem que ver com procedimentos de formação de contratos; no entanto, é de ressalvar que este regime apenas se verifica para os procedimentos não abrangidos pelo âmbito dos artigos 100.º a 103.º-B. O critério presente no número 4 assemelha-se ao presente no número 2 do artigo 120.º, ligado à ponderação de interesses no âmbito do processo cautelar. Para além disto, o critério do periculum in mora também surge como critério de atribuição, mas aqui dotado de outros contornos, diferentes dos que resultam do artigo 120.º/1 CPTA. E, portanto, não há uma circunscrição do âmbito dos prejuízos atendíveis. Quanto ao critério fumus boni iuris, parece que é afastado pelo preceito, logo, ao juiz não cabe formular qualquer tipo de juízo a cerca da probabilidade da procedência ou improcedência do processo principal.
Por último e para concluir, há que mencionar o regime previsto no artigo 133.º, que se circunscreve ao âmbito de situações de grave carência económica. Trata-se de um regime especial pela forma como configura o critério do periculum in mora, excluindo, ainda, o critério da ponderação de interesses do artigo 120.º/2. Os critérios propriamente ditos surgem no número 2, do artigo 133.º, exigindo-se que a situação de grave carência económica esteja adequadamente provada e, portanto, não basta um mero receio de que a carência se venha a verificar. Para além disto, tem de ser de prever que o prolongamento dessa situação possa acarretar consequências graves e dificilmente reparáveis. Na alínea c), surge ainda uma concretização do critério do fumus boni iuris, tendo de se formular um juízo de probabilidade quanto à procedência do pedido.


1, 2 e 3 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 417.
4, 5 e 6 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 449.
7 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, pp.449-450.
8 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 451.
9 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 452.
10 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 453.
11 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 456.
12 ALMEIDA, Mário Aroso (2016), Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 458.


Bibliografia

ALMEIDA, Mário Aroso; CADILHA, Carlos Fernandes (2017), Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Almedina, pp 517-532; 911-929; 966-988; 1031-1036; 1045-1054.
Fonseca, Rui Guerra (2014), A suspensão de eficácia de atos administrativos no projeto de revisão do código de processo nos tribunais administrativos, e-pública, volume I, número 2, p. 29. Acedido em:

Catarina Alexandra Niza Madeira, número 28263, subturma 8.

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