domingo, 9 de dezembro de 2018

Intervenção do Ministério Público no Urbanismo - o Poder e o Dever

Intervenção do Ministério Público no Urbanismo - o Poder e o Dever


A reforma do Código do Processo Tributário e Administrativo (CPTA) alterou o modelo de intervenção do Ministério Público (MP). O contencioso do Estado na competência administrativa assumiu outra dimensão pela reforma, nomeadamente na expansão em termos da resolução de conflitos em matéria de responsabilidade contratual e pré‐contratual e em matéria de responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público.

Para além destas novas matérias está a atribuição ao MP da recorrente competência de defesa da legalidade democrática e a promoção do interesse público. Este poder/dever, que deriva dum mandato inscrito no artigo do 219.º da Constituição da República Portuguesa, consta no artigo 51.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), no artigo 3.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, atravessa o Estatuto do Ministério Público e consta também do artigo 85.º do CPTA, aonde aparece associado à defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Como noção de defesa da legalidade democrática, optamos pela que nos é transmitida por Paulo Dias Neves: "... é uma defesa orientada para a tutela da ordem constitucional democrática instituída, com todos os valores que a suportam e preservam, encabeçados pela sujeição e cumprimento da lei, por todos, em condições de igualdade e no respeito pela dignidade humana, mas que igualmente anseia a proteção e promoção social, cultural e ambiental" (Neves, 2017: 524).

No contencioso administrativo a intervenção do MP parece estar tão subordinada ao princípio de oportunidade, assim como ao da legalidade e da objetividade, constitucionalmente impostos, facto que impõe ao magistrados um elevado grau de exigência para exercerem o poder judiciário de forma segura e autónoma. "Será preciso ter presente, todavia, que muitas das necessidades de colaboração sentidas pelo MP se situam verdadeiramente ao nível de obtenção de prestações ativas, de apoio técnico, por parte das entidades chamadas a colaborar..." (Neves, 2017: 531).

O artigo 85.º do CPTA confere ao MP o poder de requerer a realização de diligências instrutórias e o poder de dar parecer sobre o mérito da causa, mas apenas em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes, ou de valores ou bens constitucionalmente protegidos, mencionados no artigo 9.º/2, do CPTA, ou seja, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida e património cultural.

De acordo com o estipulado no artigo 85.º/2, o MP pode também, invocar causas de invalidade diversas das que tenham sido invocadas na petição nos processos impugnatórios. Para tal, além da suficiência ou não do número de Procuradores-Adjuntos, de Procuradores da República e de Procuradores-Gerais-Adjuntos, o que mais releva é o acentuado grau de complexidade das matérias a apreciar e a escassez de recursos técnicos e materiais, ou seja, a insuficiente assessoria técnica e insuficiente formação atualizada e especializada.

Na área do urbanismo e licenciamento de obras, uma intervenção seguindo critérios de oportunidade poderá servir como forma de prevenção contra a criminalidade ligada à administração pública local relacionada com o urbanismo, mas essencialmente contra procedimentos ilegais que atentem contra o património "comum" e que invulgarmente se tornam irreversíveis.

Atendendo aos deveres a que o MP está constitucionalmente obrigado, os quais se refletem no artigo. 9.º/2, ex vi do artigo 85.º/2, ambos do CPTA, para além de outros valores como o ambiente e a qualidade de vida, releva por ora, a defesa do património cultural associado ao projeto de requalificação urbanística promovido pela Câmara Municipal de Lisboa  (CML), denominado Operação Integrada de Entrecampos (OIE), que integra os terrenos da antiga Feira Popular de Lisboa, e um outro localizado nas imediações.

A Lei nº 107/2001, de 08 de setembro  (Lei de Bases do Património Cultural - LBPC), no artigo 2.º, estabelece o conceito e âmbito do património cultural, e nele se enquadra:
 3 - O interesse cultural relevante, designadamente histórico, paleontológico, arqueológico, arquitectónico, linguístico, documental, artístico, etnográfico, científico, social, industrial ou técnico, dos bens que integram o património cultural reflectirá valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade.

No Decreto-Lei nº 309/2009, de 23 de Outubro (Património Cultural Imóvel), lê-se que relativamente ao procedimento de classificação constante no artigo 21.º, a atual Direção Geral do Património Cultural (DGPC), verifica e documenta o interesse cultural relevante do bem imóvel, em vários domínios, nomeadamente, o social e esse interesse cultural deve demonstrar, entre outros, valores de memória.

Também no Decreto-Lei nº 309/2009, de 23 de Outubro (Regime Jurídico Da Reabilitação Urbana), podemos ler no artigo 3.º, que:
A reabilitação urbana deve contribuir, de forma articulada, para a prossecução dos seguintes objetivos: 
...
d) Garantir a proteção e promover a valorização do património cultural;
...
e) Afirmar os valores patrimoniais, materiais e simbólicos como fatores de identidade, diferenciação e competitividade urbana;
...

Retomamos à LBPC e ao seu artigo 9.º, onde se lê:
3 - Sem prejuízo da iniciativa processual dos lesados e do exercício da acção popular, compete também ao Ministério Público a defesa dos bens culturais e de outros valores integrantes do património cultural contra lesões violadoras do direito, através, nomeadamente, do exercício dos meios processuais referidos no n.º 1 do presente artigo. 

E no artigo 9.º/1, consta:

1 - Aos titulares de direitos e interesses legalmente protegidos sobre bens culturais, ou outros valores integrantes do património cultural, lesados por actos jurídicos ou materiais da Administração Pública ou de entidades em que esta delegar tarefas nos termos do artigo 4.º e do n.º 2 do artigo 26.º são reconhecidas as garantias gerais dos administrados, nomeadamente:

a) O direito de promover a impugnação dos actos administrativos e das normas emitidas no desempenho da função administrativa;
...

Aqui chegados, vamos até ao Edital nº 41/2018, do Boletim Municipal da CML, publicado a 6 de setembro de 2018, no qual foi divulgada a hasta pública para alienação de ativos imobiliários municipais, concretamente de 4 (quatro) ativos integrantes da denominada OIE, que correspondem aos terrenos da antiga Feira Popular de Lisboa, que há cerca de 15 (quinze) anos se encontram desocupados.
À alienação de bens imóveis das autarquias aplica-se o DL nº 280/2007, de 7 de agosto, e a Lei nº 169/99, de 18 de setembro, na redação dada pela Lei nº 5-A/2002, de 11 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de competências e do funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias e estipula regras gerais sobre a alienação de bens imóveis.
Estas regras são da competência da Câmara Municipal e da Assembleia Municipal e estão previstas, respetivamente, no art. 64.º/2, als. f) e g) e no art. 53.º/2, al. i). Foi nestes termos e no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços, que a CML decidiu alienar os terrenos da antiga Feira Popular em hasta pública, nas condições que constam do Edital nº 41/2018.
O 1.6 do referido Edital refere, que os ativos serão alienados livres de quaisquer ónus encargos e desocupados de pessoas e bens e do 23.2, consta que "foram previamente obtidos pareceres favoráveis das entidades externas que, nos termos da lei deverão emitir parecer obrigatório".

Entretanto, o MP colocou algumas questões à CML. Ao que se apurou, as questões suscitadas referiam-se à legalidade urbanística da OIE, nomeadamente, quanto aos instrumentos de gestão e às restrições das servidões militares e aeronáuticas.
Hoje, como se vê, a intervenção não é obrigatória nem ocorre mais de uma vez em cada processo: tem lugar uma única vez, na fase processual em que o artigo 85.° a prevê, e só quando o Ministério Publico considere que ela se justifica, em função da relevância da matéria em causa; e não pode versar sobre" questões de índole processual, mas apenas sobre questões de carácter substantivo (Aroso, 2010: 65).

No entanto, tendo em conta a questão de avaliação quanto ao património cultural, mais precisamente quanto aos valores de memória coletiva associados ao espaço em questão, assistimos a uma total  E injustificada omissão e demissão do MP. Assim, julgamos que subsiste a necessidade do procedimento de avaliação deste valor patrimonial, por parte da entidade competente, a DGPC.
Importa referir que os terrenos em questão foram ocupados pela Feira Popular de Lisboa entre os anos de 1961 a 2003. A Feira Popular era um local visitado por um público heterogéneo, de várias origens e de vários estatutos sociais. Na Feira Popular havia espectadores, atores, consumidores, todos participavam numa festa coletiva. A Feira tinha uma enorme capacidade de atrair públicos tanto nos meios urbanos como nos rurais. Nas zonas rurais organizavam-se regularmente excursões para a visitar a Feira Popular, que em 1975 atingiu um total de 2.170.323 visitantes.
A fragilidade dos bens que incorporam uma dimensão imaterial de memória e testemunho de civilização convoca a título principal a máxima prevenção, que se traduz, não só no envolvimento do bem, por mero efeito de abertura de procedimento, numa espécie de redoma de intangibilidade que abarca as suas zonas envolventes no caso dos imóveis - a fim de preservar a integridade da sua "aura", da dignidade histórica e estética que o caracteriza... (Gomes, 2005: 16).

Tendo em conta toda a legislação invocada e a memória como valor do património cultural, deveria de haver uma sujeição do projeto ao parecer da DGPC, sendo que este, a existir, deveria constar do Edital. Assim, o Edital da CML (norma que rege a hasta pública), nomeadamente nos citados 1.6 e 22.3, encontra-se ferido de nulidade, de acordo com o artigo 161.º, al. j) do CPA.
A nosso ver, após verificados os contornos da operação de venda e nos termos do conjugado dos artigos 72.º/1 e 73.º/1 ex vi dos artigo 9.º/2 e 85.º, todos do CPTA, somos da opinião que o MP podia e devia ter impugnado a norma (Edital), e consequentemente, por defesa de valores constitucionalmente protegidos, e nos termos do conjugado do artigo 9.º/2, do artigo 85.º, ambos do CPTA, somos da opinião que deve ser tomada medida cautelar, nomeadamente, a prevista no artigo 130.º/2, do CPTA, ou seja, a suspensão, com força obrigatória geral, da hasta pública de venda. 
Luís Marques Pereira, Aluno 26474 - 4º TA


BIBLIOGRAFIA

Almeida de, Mário Aroso (2010), Manual do Processo Administrativos, Coimbra, Almedina.

Gomes, Carla Amado (2005) "Desclassificação e desqualificação do património cultural: ideias avulsas" Revista do Ministério Público (101), pp. 9-50.


Neves, Paulo Dias Neves (2017), "Notas sobre a defesa da legalidade pelo Ministério Público no CPTA revisto", em Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão (Orgs.), Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, Lisboa, AAFDL, pp. 521-544.








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